Colocava-se mel no prato e, em seguida, farinha. Surgia um mingau viscoso, a cor do mel predominando. E aí era o momento de devorá-lo, com o uso de colher. Também, no prato, se cobria de farinha e, depois, tocava a banda da laranja para absorvê-la. Tudo depois do almoço. Como se fosse doce. A batata, com casca e tudo, era assada na fogueira ou no fogão a lenha, no meio das brasas. Depois, era só despojá-la da casca e mastigar. Para acender o fogo, sob a roupagem do combustível, usava-se a casca de laranja, pendurada na parte mais baixa do telhado, o tempo a torná-la seca. Era só bater o fogo em cima e a casca, endurecida, ganhava nova função, acendendo o fogo. Da laranja, então, só se jogava fora o caroço.

O jenipapo, ah, o jenipapo era descascado, retirados os caroços, e cortado em pedaços bem minúsculos. Era o suco, na dicção de hoje; refresco, na linguagem de ontem. Os pedaços tão finos e pequenos que o mastigar se tornava fácil. Denominava-se de jenipapada, a mistura do sumo com o sólido, em incursões para se aproveitar o jenipapo. O liquidificador chegaria depois como corolário de tempos mais modernos. Antes, a conquista desafiava a imaginação de todos, o jenipapo tomando conta, caindo de maduro, a desafiar os agregados da cozinha no seu aproveitamento. Não me lembro quando o liquidificador passou a integrar os utensílios da cozinha lá de casa. Acho que a geladeira chegou primeiro.

Um detalhe: o caroço do jenipapo era veículo de entupimento. Quem muito comia, assumia o risco de ficar entupido, ou seja, não conseguia defecar. Uso o verbo que daqueles tempos – entupir, me fornecendo o dicionário seu significado: obstruir, atulhar, entulhar. Encontro, também, no dicionário, o derivado entupitivo: “diz-se especialmente de alimentos pesados ou ingeridos em demasia”. Era o caso, traduzido no caroço do jenipapo. O resultado era o uso da lavagem, para desobstruir o canal. A meninada se arrepiava de medo. A lavagem – que os de minha idade ouviram falar – era o terror que fazia com que o caroço do jenipapo fosse respeitado e temido, a fim de não se submeter a tamanho suplício. Não sei quando deixei de ouvir a palavra lavagem. Acho que ainda no tempo do primário.

Acrescento, então, o cuscuz de milho ralado, ovos estrelados com água e manteiga, a clara resplandecendo de brancura, a gema no meio toda durinha, e, então, fazia-se a mistura de tudo, o amarelo do cuscuz e o branco da clara conservando suas cores, a gema em pedaços miúdos, uma operação rápida, e, depois, de garfo, que eu não me lembro do tempo em que ainda me utilizava da colher -, ia tirando um tanto do prato e levando à boca, devagar, para depois encerrar a jactância com uma xícara de café, à época com açúcar – mamãe não deixando que ficasse uma garapa -, já de olho no pão com manteiga, etapa final do que chamávamos de café. Hoje se diz jantar.

A idade me deu um passado, que, em menino, não o tinha. O passado me invade e me coloca em marcha a ré, fantasmas surgindo de todos os lados, eu a encará-los, olho no olho, a cara fechada, cara de velho ranzinza, até me deparar com um menino que sai da mesa e não tem o hábito de escovar os dentes depois das refeições. Não custo a identificá-lo. Sou eu mesmo, retirado dos escombros sei lá de onde. Silenciosamente, vou seguindo o menino, que senta ao lado do rádio RCA Victor para ouvir um capítulo de Jerônimo, o herói do sertão. Fico a distância, ouvindo, também, até que a razão me domina e retorno a minha realidade de hoje. O passado é apenas um ponto que cada vez mais se retrai. 31 de agosto de 2019

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras  

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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