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  1. “Conhece-te a ti mesmo”
    Conta-se que num templo do Oriente as pessoas buscavam achar a resposta para o sentido da vida e a verdade de si mesmas. Na peregrinação, deviam atravessar inúmeras e monumentais salas sempre vazias. Ao chegarem à ultima das salas, na doce expectativa de alcançar a resposta definitiva, eis que se deparam com imenso espelho que reflete apenas sua própria face…
    Crente ou não crente, religiosa ou não, cada pessoa percebe, intui, no profundo de si mesma, que é “mistério” ou pelo menos “enigma” que não se deixa decifrar. Há como que um núcleo íntimo ao qual ninguém tem acesso, nem o próprio sujeito. É que somos pessoas, seres espirituais, sujeitos da própria caminhada, daí nossa dimensão subjetiva, interior. Mas, ao mesmo tempo, temos, ou melhor, somos uma dimensão objetiva. A materialidade que nos faz uma “coisa” entre tantas outras, é verdade, não equivale totalmente a nosso ser, mas é todo o nosso ser. Vivemos interiormente uma relação dialética, constante tensão entre o ser pessoal profundo, espiritual, imanipulável, e a realidade concreta, submetida ao tempo e ao espaço. Não há coincidência total, perfeita identidade entre o eu profundo e o ser histórico. Por isso, sempre, até o fim temos a sensação de que não somos inteiramente nós mesmos, de que nos relacionamos conosco como se “eu” fosse parcialmente “outro”. Relacionamo-nos com nosso corpo, por exemplo, como se se tratasse de “outro”, assim como com muitos de nossos sentimentos e pensamentos. “Convivemos” conosco, “ouvimos” e “falamos” a nós, às vezes até é possível sentir o peso de que não gostaríamos de ser como somos. Há pessoas que têm extrema dificuldade de se aceitar como são, o que é fonte de infelicidade na vida.
    Daí, a vida inteira ser como uma viagem, constante e incansável busca, tão belamente expressa na canção de Milton Nascimento, ao referir-se ao abismo de contrastes que cada qual de nós representa: “Doce ou atroz, manso ou feroz EU, caçador de mim”. “Caçador de mim” imagem forte de quem se persegue a sim mesmo, agressivamente, sempre a experimentar-se inalcançável em busca de totalidade infinita, por isso transcendente, sempre mais além do que conseguimos ser e sempre adiante do presente de nossa vida.
    Uma das manifestações elementares da relação com a transcendência , isto é, com a dimensão que ultrapassa o limite de cada coisa e pessoa, e também de qualquer realização ou forma presente, é o que a Sociologia chama de “coesão social” que se dá mediante a aceitação (submissão) e, no melhor dos casos, a internalização das normas de convivência social humana. Para Emílio Durkheim, famoso cientista social e pensador francês, um dos clássicos da Sociologia, é daí que nascem as “formas elementares da religião”.
    Duas manifestações bastante eloquentes, em nossa época, são a explosão de busca religiosa que aponta para a profunda angústia espiritual em face do racionalismo, tecnicismo e materialismo moderno que tentaram estabelecer-se como o padrão de relacionamento com o universo e consigo mesmo; e a explosão patológica que se manifesta mediante perversões sexuais e de caráter, a violência de todo tipo, e a criminalidade em geral, e a onda avassaladora da droga, trágicos sintomas da dissolução de vínculos coletivos que são justamente os fios de tecido que compõem a coesão social. A crise já é prenúncio de que a situação presente da sociedade parece não caber mais em nós, isto é, torna-se intolerável e exige ser superada.
    “Conhece-te a ti mesmo”(Sócrates). O que é próprio e constitui a grandeza ímpar do ser humano e, como dito acima, é a tarefa precípua da vida toda, é a capacidade de CONHECER, conhecer a si mesmo(a), como dizia Sócrates. Só que o ser humano não é uma ilha (o título de um livro já antigo dizia: “Homem algum é uma ilha”), está “no mundo “ e “com o mundo”. É, na verdade, o ponto mais alto, culminante, do próprio processo de toda a natureza e é ser coletivo, por isso, interrelação profunda com a natureza e a sociedade. Não é possível conhecer-se, perceber a sim mesmo, sem, ao mesmo tempo, voltar-se para o mundo exterior, pois cada qual de nós não é outra coisa, senão o mundo consciente de si mesmo, já que cada pessoa é o ponto culminante da realidade do mundo: cada qual é totalmente o mundo, embora não seja o mundo todo.
    Se somos essa realidade distinta e constrastante de sujeito e objeto ao mesmo tempo, é impossível, portanto, haver perfeita identificação consigo e com as demais pessoas e coisas, pois isso levaria ao pleno conhecimento, à autoconsciência total, à perfeita identidade entre o ser humano e o conjunto da realidade, o que não é a condição humana. Só é possível perceber-se mediante a linguagem a qual já é mediação entre MIM e EU mesmo, entre o eu profundo – sujeito — e o ser concreto, objetivo. Por isso, há sempre zonas opacas, ademais só é possível conhecer-nos a partir e por meio do que é nossa dimensão de “coisa”, dimensão essa com a qual nosso núcleo pessoal tem sempre de contar no próprio processo de constituição de si mesmo.
    A linguagem me é oferecida pelo ambiente cultural no qual estou inserido(a) e é produzida ao longo da história dos povos. É interessante: meu ser e a compreensão que vou tendo sobre ele, no começo, tem mais a ver com a vida e a história de outras pessoas (pais, família, vizinhança, escola…) e nosso fim só pode ser conhecido por outras pessoas, não vamos poder falar dele e nem poderemos conhecê-lo segundo categorias de quem está aqui, na dimensão espaciotemporal do viver.
    Uma prova de que o autoconhecimento se dá mediante as relações, na interação entre vidas, é o fato de que narrar a vida de outras pessoas (testemunhos, biografias, histórias…) nos ajuda a conhecer a nós mesmos(as), ou seja, a aprofundar o conhecimento de nossa própria identidade através do processo de identificação com outras personagens. Daí, a importância da literatura como instrumento de autoconhecimento, seja biográfica (testemunho histórico), seja de ficção (elaboração de modelos em romances, novelas, poemas…), assim como o teatro, o cinema, a pintura, a escultura, etc. Outra pessoa exerce frequentemente o papel de “espelho”, reflexo, semelhança ou projeção que me confirma no caminho, ou encarna a diferença que me critica e interpela. Poderíamos usar a imagem da sombra, que me reproduz e acompanha, e da luz que me revela e desmascara.
    Por isso, a verdade que coincide com o bem e a beleza do ser, é, ao final das contas, a verdade da justiça, contemplada pelo conhecimento e posta em operação mediante relações de amor. A verdade que se expressa e se comunica pela linguagem é, em última instância, a maneira, generosa ou opressiva, de entregar o meu mundo a outrem e, assim, compartilhá-lo, reconhecendo implicitamente que ainda não está acabado, mas em processo de criação, o que se faz pela comunhão ou a opressão, pela partilha ou a apropriação. De fato, a realidade manifesta sua verdade mediante a justiça ou a injustiça.
    Por isso, “conhecer-se a si mesmo” não pode ser um processo intimista, individualista, apartado da realidade que nos cerca e de fato já está em nós. Muito menos pode ser um processo intelectualista, abstrato, construtor de um mundo mental que nos isole em nós mesmos(as). Também não se trataria de imaginar ser possível um caminho de contemplação espiritualista, pretendendo negar a dimensão material e objetiva da vida, considerada inferior e desprezível, conforme uma visão dualista da realidade, que já nos vem desde a Antiguidade.
    Se centramos o processo de autoconhecimento no ser humano enquanto racional, com o esquecimento de que a razão é também sensorial, emocional, afetiva; se nos esquecemos ainda de que, ao lado da racionalidade do “homo sapiens” somos, ao mesmo tempo, “homo demens”, demente e até louco, corremos o risco do intelectualismo abstrato que isola a pessoa em si mesma e a entroniza despoticamente acima do conjunto da vida no cosmos. Se o centramos na busca individual – o que é só outro aspecto do racionalismo – o constituímos em potencial inimigo de outros seres humanos. A história mostra sobejamente a tragédia provocada por essa atitude que tem raiz no racionalismo: o individualismo ocidental que leva à conquista e à imposição, desde econômica e política até cultural (as Cruzadas, por exemplo), o colonialismo que subjugou continentes inteiros, a injustiça e a opressão internacionais, as guerras… Com efeito, a razão como tal é abstrata, o que existe de fato são as razões de cada qual, daí é muito curto o passo para que a suposta “força da razão” se imponha pela “razão da força”.
    Além disso, não podemos ter a pretensão de conhecer-nos completamente, como nos alertaram justamente Freud, Jung e Marx : este, chamando a atenção para o quanto a organização e as estruturas da sociedade marcam nossos sentimentos, pensamentos, atitudes e comportamentos ( o que ele chamou de “ideologia”, e Paulo Freire, pedagogo, traduziu em termos mais concretos falando de “introjeção do opressor no oprimido”); aqueles, mostrando como nosso eu psíquico já se forma a partir de experiências anteriores a nós ( arquétipos e inconsciente coletivo) e de vivências infantis que estruturam nossa personalidade básica e das quais não somos conscientes (o “id”, inconsciente). Temos ainda de considerar o papel que tem o erro no processo de aprendizagem, é preciso errar para aprender, como já diziam os antigos romanos: “Errando discitur” (“É errando que se aprende”).
  2. Conhecer é experimentar
    Na cultura ocidental, quando se fala de conhecer, logo se entende tratar-se de processo mental, intelectual, centrado na razão. Nisto somos herdeiros da maneira como os antigos gregos tratavam, sentiam e pensavam o mundo. Herdamos deles o intelectualismo, o racionalismo que se interessa muito mais pelos conceitos das coisas do que pelas próprias coisas. Pensar seria a atividade ideal e suprema do ser humano. Por isso, os pensadores ou filósofos não deveriam trabalhar, mas viver do “ócio” enquanto o “neg-ócio” (negação do ócio), o trabalho, estaria destinado pela própria natureza aos escravos, considerados seres inferiores. Enquanto chegamos ao auge do desenvolvimento científico e tecnológico (conceitos das coisas), grandíssima parte dos seres humanos ainda passa fome e o planeta está gravemente ameaçado de morte, embora hoje haja recursos para alimentar o dobro da população mundial e cuidar da Terra, claro sinal de que não nos interessam as “coisas”, a realidade das pessoas e dos processos da vida.
    A tradição bíblica e oriental e geral, pensemos no Budismo por exemplo, compreende o conhecimento no horizonte da experiência, conhecer é experimentar, mais do que entendimento teórico, é sentir e sentir-se, é ter intimidade com o ser, em nós e fora de nós, experimentar, como se fora apalpar com as próprias mãos, o intimo de nós e o que nos rodeia e também, de certa maneira, nos faz, pois entra em nós, quer queiramos ou não. Daí, na linguagem bíblica “conhecer” quer dizer em muitos casos experimentar, relacionar-se intimamente, sexualmente, interpenetrar-se. Assim, conhecer-se é perceber-se a si mesmo EM e COM o mundo e assumir o processo da própria liberdade (o núcleo de si) ao amadurecer em unidade interior, em solidariedade e crescente comunhão com o todo infinitamente plural do universo. É identificar-se, adquirir a própria identidade enquanto nos vamos tornando um com a totalidade, a saber, a diversidade do conjunto da realidade. Isto é particularmente verdadeiro nos dias de hoje quando tudo se faz próximo de cada qual de nós. Pelos meios de comunicação, até o mais remoto entra em nossa sala de visitas ou de jantar.
    Temos de convencer-nos profundamente de que, para conhecer, é preciso “hospedar” outras pessoas em nossa “casa”, ou seja, em nosso corpo e em nosso mundo, assim como temos de nos “exilar” de nosso costumeiro “território” (espaço e tempo) e pedir abrigo em casa de outrem. Dizia o saudoso educador Paulo Freire que “ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, nós nos educamos e nos libertamos em comunhão”. Daí, por que “abrir-se ao outro é acolhê-lo como mestre”.
    Os medos, a culpa, as frustrações, os recalques e complexos, as ambiguidades do quotidiano…decorrentes da experiência pessoal de cada qual no mundo, experiência que já é necessariamente, por si mesma, interpessoal e dependente da sociedade e do inteiro universo, não se pode superar isoladamente. Em cada vida, o percurso biográfico tem de abrir-se ao percurso histórico que é essencialmente coletivo, isto porque o próprio “percurso biográfico” já se dá em interação com o “percurso histórico”, ou seja, com a vida de outrem e do mundo.
    Tudo isto quer dizer que o núcleo profundo do ser pessoal não é algo simplesmente produzido por si mesmo, nem já dado uma vez por todas. De fato, está em permanente processo de fazer-se. Assim, o dinamismo da vida projeta a pessoa sempre para além de si e para o futuro. Por isso não é possível conhecer a pessoa em si mesma, nem mesmo o meu próprio eu, não é possível entendê-la, isto é, penetrá-la em si. Só é possível aproximar-se dela, senti-la, ter experiências com ela mediante a convivência que se dará por “sim-patia” (sentimento de proximidade e comunhão) ou “anti-patia” (distância e até hostilidade). Não conhecemos apenas pela razão mental, mas também pela razão emocional.
    Portanto o autoconhecimento tem tudo a ver com “sentir-se bem”, sentir-se feliz por conviver consigo (ecologia interna a partir de tudo o que entra em nós e assimilamos: ar, alimento, sentimentos, pensamentos) e conviver com as demais pessoas, e com o mundo em geral, o meio ambiente cósmico (ecologia externa). Não se trata de conhecimento mental, intelectual, racional, simplesmente, mas, sobretudo, de lucidez que brota da experiência prática, existencial, que se traduz na práxis (prática e reflexão teórica) e tem culminância na relação de amor. Como dizia o Pequeno Príncipe, “só se vê bem com o coração”, e o grande sábio Pascal: “ O coração tem razões que a própria razão desconhece”.“Eu sou eu e minha circunstância”, dizia o filósofo espanhol Ortega y Gasset. Ora, minha circunstância, na verdade, é o conjunto do espaço do mundo e do tempo histórico, isto é, a universalidade das pessoas e das coisas.
    Daí por que tem razão Milton Nascimento: “Eu, caçador de mim”, sempre. A Bíblia se refere a isso ao propor que o ser humano, coletivo e sexuado – todos os homens e todas as mulheres – é a imagem de Deus e por isso participante de seu mistério abscôndito (cf. Genesis 1).
  3. Obstáculos a conhecer-se
    Como se aludia acima, o dualismo pervade a cultura ocidental, indo além da experiência da dualidade de dimensões da realidade. Na verdade, a realidade da natureza, da pessoa e da sociedade tem dimensões distintas, mas não separadas, pois tudo compõe imensa teia de aspectos e dimensões contrastantes e ao mesmo tempo complementares. O dualismo, porém, não articula aspectos distintos, antes, os separa e opõe: matéria e espírito, corpo e alma, terra e céu, profano e sagrado, ação e oração, materialidade do quotidiano e espiritualidade, política e fé, trabalho e estudo, prática e teoria, sociedade e individuo, servo e senhor, trabalhador e intelectual, pobre e rico, negativo e positivo… quando, na verdade, trata-se de pensar segundo o esquema dialético: não “sim ou não” (exclusão), mas “sim e não” (inclusão). Pois o que designamos espiritual, espiritualidade, tem como eixo a realidade material e o quotidiano material da vida; “espírito” não é outra coisa senão o nível de consciência que a matéria do mundo alcança no ser humano, chegando a ser capaz de conhecer, amar e projetar-se a si mesma no futuro.
    A partir do equívoco do dualismo, gera-se o desprezo pela materialidade da vida, tida como sem valor, decorrendo daí duas atitudes opostas, mas complementares, que marcam profundamente nossa civilização: de um lado, o edonismo, excesso de prazer, esbanjamento, consumismo, pornografia, que sempre produz sofrimento em redor, por isso, em termos psicológicos, sadismo; doutro lado, a ascese, aceitação da privação, da repressão e da opressão, “autoflagelação”, em termos psicológicos, masoquismo. Ambas atitudes confluem, paradoxalmente, na mesma direção negativa e se unem na mesma atitude de renúncia ao cuidado com a vida e o mundo porque, de fato, não lhes dão valor, pela ilusão de que só o espiritual teria importância. Pelas consequências, essa ilusão mostra bem sua falsidade. Baste pensar qual é nossa atitude em relação à cada vez mais importante questão da poluição e do lixo, seja urbano, seja rural. O poder público se esforça por facilitar e garantir os automóveis e não enfrenta o gravíssimo problema, e a sociedade civil, nós, não exige a solução. Facilmente os valores são invertidos e se confundem, e já não se consegue distinguir mais principal e secundário, como aparece claramente no consumismo que marca a sociedade hoje em dia, manifestação da superficialidade e infantilidade sobremodo evidentes em nosso tempo, como tão bem tem percebido a intuição popular desde tempos imemoriais, com os contos da “galinha dos ovos de ouro” e do “gato que caga dinheiro”. Correr atrás do ouro é encantar-se com a própria “merda”. A Bílbia falaria aqui de idolatria, deixar-se seduzir pela ilusão da própria “obra”. Na mesma linha, Freud falava do capitalismo como regressão da humanidade à fase anal. O encantamento com o ouro, o dinheiro, na verdade, é encantar-se com a própria ”obra”, arriscando degradar-se no processo de autodestruição. Sobre isso foi muito expressivo o filme de alguns anos atrás, “Comilança”.
  4. O caminho para o autoconhecimento
    O caminho para conhecer-se a si mesmo é a construção do que chamamos “espiritualidade”. Aqui devemos distinguir espiritualidade positiva e negativa. Assim como devemos ter presente que espiritualidade não equivale e nem mesmo se liga necessariamente a religião ou crenças.
    Espiritualidade “positiva” é o caminho existencial no qual a pessoa se abre ao grande Mistério da vida, a Bíblia fala aqui de “Deus vivo”, experimentado na realidade da vida; enquanto espiritualidade “negativa” é fechar-se em si mesmo(a), julgando-se o centro do mundo, narcisismo, em termos psicológicos, em termos bíblicos, idolatria, pois o ídolo não passa de imagem, reflexo de nós mesmos(as), expressão de nosso vazio projetado ilusoriamente como poder, tão visível hoje no culto às coisas, como se vê, por exemplo, na importância que adquire o símbolo do automóvel e no culto da aparência em geral. Fala-se de “cultura do espetáculo”, da “amostração”, como dizem as crianças.
    De um modo ou de outro, espiritualidade é de fato o estilo de vida, o jeito de ser no qual cada pessoa acha o sentido da vida. Concretamente se traduz no conjunto de valores que informam nossa personalidade, isto é, no conjunto daquilo que julgamos apreciável, que vale a pena. Na prática existencial de valores, fazemos experiência de um “espírito” que, como rajada de vendaval ou “brisa leve” nos impele a caminhar, ou, como inspiração, nos nutre, motiva e renova as forças para prosseguir adiante. Daí, pela prática de nossas ações, transparecem os valores que nos guiam e por estes se revela “de que espírito somos”. É nos aspectos mais materiais da vida que se manifesta nossa espiritualidade. Na verdade, o que há de mais espiritual, por incrível que possa parecer à primeira vista, são sexo, o máximo da relação interpessoal, e dinheiro, revelador de nossa relação com as coisas. Nisto as análises de Freud e de Marx nos podem ajudar muito.
  5. Autoconhecimento e ética: a experiência da liberdade
    Falar de valores ou de jeito de ser é falar de relações, relações nossas com pessoas e coisas, pelas quais se revela, na verdade, quem somos. Ora, tocar o campo das relações humanas é naturalmente aproximar-se da ética. Se espiritualidade é atitude fundamental frente à vida, temos de dizer que é o fundamento da ética. E, justamente, se se trata de escolha de valores que orientem a própria vida, trata-se necessariamente da liberdade. Ora, a liberdade é o eixo do que chamamos ética, ou seja, os valores que, uma vez escolhidos, constituem, formam como que o lugar de nossa habitação no mundo, lugar próprio nosso entre outros seres humanos e a partir do qual travamos relações entre nós e com a natureza.
    Aqui devemos ter atenção, pois liberdade não equivale a livre arbítrio. Não quer dizer apenas poder escolher entre isto e aquilo, podendo até escolher entre o que não convém ou é visto como mal. É mau o que ao menos potencialmente faz mal a outrem (pessoa ou coisa) ou a mim mesmo. Por isso simplesmente fazer o que quero não equivale a ser livre, livre arbítrio é defeito da liberdade, já o explicava Santo Agostinho no século IV d.C.
    Liberdade, com efeito, é responsabilidade, é responder frente a outra pessoa e aos desafios da realidade da vida, em coerência com o bem, a beleza e a verdade, atributos básicos que compõem a unidade do ser e de seu centro irradiam em todas as direções. Quem alcançasse a liberdade perfeita, já não teria mais livre arbítrio, pois só se fixaria no bem.
    Por isso, a grande contradição é entre liberdade e narcisismo, pois narcisismo é falsa consciência da realidade, é não ter capacidade de “responder”, é infantilidade e não passa de ilusão. De fato, o grande desafio do qual decorre a ética é que o processo da liberdade gira em torno do poder nas relações com as pessoas e as coisas, ou seja, com a totalidade do mundo a nosso redor.
    Para compreender isto é preciso perguntar: o que é ser pessoa? É, antes de tudo, experimentar-se como consciência do mundo e, como tal, centro de todas as coisas. Nosso encontro com a realidade se desdobra em três atos: conhecer, desejar e agir. Ao despertar para a vida começamos por conhecer as pessoas e as coisas. E o dinamismo do conhecimento é irrefreável. Não se trata de conhecer parcialmente, na verdade, tendemos a conhecer a totalidade: conhecer tudo de cada coisa e pessoa e conhecer todas as coisas e pessoas. Por isso, dizia o famoso filósofo grego Aristóteles: “A alma (o ser humano enquanto racional) é, de certo modo, todas as coisas”. Conhecer é apreender, tomar para si, alcançar e trazer para dentro todo o universo.
    Mas não basta conhecer tudo, deixando a realidade exterior a nós. Na verdade, também desejamos tudo, queremos que tudo faça parte de nós. Queremos possuir tudo, tudo abarcar, como se nosso corpo devesse coincidir faticamente com as dimensões do universo. É por essa razão que “o saco do ter nunca enche”, não nos contentamos enquanto não possuímos tudo. Provocados(as) pelo desejo, elaboramos projetos de “conquista” e agimos, trabalhamos, lutamos para que todo o universo seja efetivamente nosso, mais ainda, faça parte de nós. Não é suficiente que tudo seja nosso, profundamente é muito mais, que tudo seja em nós, que a totalidade da vida coincida com o nosso ser, que nós, isto é, cada pessoa, sejamos, de fato, “a medida de todas as coisas”.
    Só que interfere outra experiência, exatamente contraditória a essa, percebemos que não temos capacidade de conhecer tudo, nem desejar tudo, pois se escolhemos algo, temos de abrir mão de outras coisas, e nosso agir é sempre limitado. Ao perceber que somos seres materiais, sentimos que somos uma entre tantas outras coisas do universo, somos “indivíduos”, a saber, somos isto e não aquilo, e muito menos tudo. Doutro lado, mesmo sendo pessoas, e assim centro de tudo, percebemos que há infinito número de outras pessoas que também se sentem e se comportam como centro, exatamente como nós. É o duplo aspecto de nosso limite. Poder e limite, eis o eixo por onde passam o autoconhecimento, como experiência de si, e as relações com as outras pessoas e o universo como o vasto campo da ética. Se, de um lado, nos experimentamos como poder, doutra parte, nos percebemos como não poder e finitude.
    Abrem-se aqui dois caminhos: ou, mesmo tateando nas sombras, nos confiamos à vida e aceitamos profundamente partilhar as coisas e compartilhar o poder na relação com as pessoas, mediante o serviço recíproco, essa confiança é o que podemos chamar de fé; ou temos medo das pessoas e do mundo, não nos sentimos autoconfiantes, tememos que nos arrebatem o “brinquedo” – a vida é nosso brinquedo – e, como crianças inseguras e acuadas, agarramo-nos conosco mesmos(as) e tentamos autoafirmar-nos pela apropriação das coisas e pela dominação sobre as pessoas. É o narcisismo, fechamento em si, impondo-nos às coisas e às pessoas como senhores(as) divinos(as), na verdade, apenas crianças necessitadas de chamar a atenção para si mesmas.
    Incrivelmente, porém, o medo também produz outra reação que corresponde a essa, digamos assim, como o avesso ao direito. O medo, a partir de marcantes experiências de vida, pode produzir a resignação, a aceitação da injustiça (aceitar ser despojado das coisas) e da opressão e dominação (aceitar ser despojado de poder na relação com as pessoas). Procede-se assim, temerosamente, na expectativa de encontrar um jeito de não perder de todo o “brinquedo”, à sombra dos poderosos se julga achar uma réstia de poder viver. Na raiz, está o mesmo medo de perder a vida, são os dois polos correspondentes da mesma atitude de medo: dominar ou deixar-se dominar.
    O medo se caracteriza sempre, em última análise, como medo de viver no confronto com as pessoas e com o mundo em geral, e se manifesta particularmente diante da ameaça do mal, a qual tem o poder de revelar a impotência e a finitude. Medo é sempre, de certo modo, medo da morte, de não ser ou não valer nada. O contrário do medo é a fé. Esta, porém, não é simples crença, cujo contrário é a descrença. Fé é a confiança, cujo contrário é o medo, confiança diante da contingência e o inesperado da vida, e particularmente frente à ameaça do mal e da morte, sempre percebidos como “assassinato”. Doutro lado, encolher-se no medo e renunciar aos próprios direitos de ser pessoa, não é, de fato, garantir um “cantinho” na posse da vida, mas renunciar a si mesmo(a), antropologicamente suicidar-se.
    Só a grande confiança na vida nos torna pessoas maduras. É que só amadurecemos na medida em que já não necessitamos de nos afirmar sobre as coisas e sobre as pessoas. Em outras palavras, se não necessitamos é que somos livres, pois a liberdade é superar a necessidade, é estar em si e não depender mais do que está fora de nós. Liberdade é autonomia, é ser lei para si mesmo e não estar submetido a norma exterior. Em última análise, ser livre é não precisar conquistar e nem mesmo receber, ao contrário, é dar-se, oferecer a própria vida, já não necessitar de atenção, mas prestar atenção a outrem e ao mundo. Paradoxalmente, o “ser em si” não equivale a “ser para si”, mas “ser para além de si”. Por isso, só é verdadeiramente livre quem já não necessita nem da própria vida, tem tão plena posse de si mesmo que não teme entregar-se, quem está pronto a morrer de amor ou por amor. Em outras palavras, só é livre quem ama, pois só “o amor vence o medo”, e só quem não teme é capaz de amar. Na verdade, liberdade, amor, obediência ou serviço são três atitudes que se implicam reciprocamente : só é livre quem ama e só ama quem serve; só ama quem é livre e só é livre quem serve; só serve quem ama e só ama quem já não teme perder-se…
    É interessante que há profunda coincidência entre a espiritualidade budista centrada na compaixão e o Sermão da Montanha, proclamado por Jesus, centrado na comunidade. Em ambas as propostas, trata-se de superar a necessidade de dominar as pessoas e de apropriar-se das coisas. Por isso, ambos os caminhos se traduzem em simplicidade e sobriedade, tendo como fundamento a grande confiança na vida como dom e reciprocidade, que possibilita ”vivere parvo” (viver com pouco) e ocupar-se livre de preocupar-se. Ambas as correntes apresentam o monaquismo como modelo ideal de vida. “Monaco”, monge, não quer dizer necessariamente viver à parte, retirado em mosteiro isolado. “Monos” quer dizer uno, unificado, refere-se ao caminho de buscar o próprio centro, a unidade interior. Não é o mesmo que buscamos através do yoga? Não se trata de buscar o centro, o ponto de unificação, o “espírito” a partir da consciência do próprio ser corporal, em relação com o meio ambiente no qual se vive: o ar, os sons, as cores, o próprio corpo, as relações com as outras pessoas, em comunhão com a totalidade do universo?
    Em última análise, é nesse processo relacional, muito adequadamente simbolizado pelo yoga, que se dá o conhecimento de si mesmo(a), superando a falsa consciência de ser o centro do mundo pela consciência autêntica de ser em comunhão com o conjunto da realidade, particularmente com as outras pessoas. É o que vai amadurecendo o ser humano para aceitar profundamente os próprios limites e, mais radicalmente, a finitude em relação ao conjunto inabarcável da realidade do universo e em relação à própria vida como tal, isto é, a morte — aceitar confiantemente entregar-se, assumir na própria carne a “lei” vital do “sacrifício”, ou seja, pela entrega de si mesmo, “tornar-se sagrado” (“sacrum fieri”), “reunir-se” no Mistério…
    Por isso, é evidente que autoconhecimento pressupõe humildade, a qual se traduz concretamente em aceitação da crítica e em exercício pessoal de autocrítica. É também isso uma maneira de viver a transcendência, a ultrapassagem, o “ser para além“, pois a crítica por si mesma não pretende destruir-nos, mas provocar-nos a uma crise, a um discernimento, para arrancar-nos da segurança cega e superficial que nos vem do apego ao presente e projetar-nos para o futuro, para além do que já somos e, em última analise, para além de nós. É que “humildade” vem de “ humus“, terra fecunda, chão em que afundam nossas raízes na verdade de nós mesmos, e, assim, nos revelam quem somos “antes de nós”, “descendentes” do chão comum onde se acham em unidade todas as coisas e as pessoas. O sentido do Eu se dá na referência ao próprio passado e na referência ao próprio futuro, ou seja, “antes” e “para além de si”, apenas elo de infindável corrente e momento de inesgotável processo do Todo.
    No processo de autoconhecimento, assim entendido, é fácil perceber: dum lado, os próprios limites, em que precisamos das outras pessoas e do mundo para sobreviver, crescer e nos tornar melhores; doutro lado, o que valemos e podemos ofertar para que as outras pessoas e o mundo possam sobreviver, crescer e tornar-se melhores.
    Aqui, é claro, coincidem autoconhecimento e consciência ética, ou seja, responsabilidade, pois só é possível conhecer-se e reconhecer-se no contexto das relações com as pessoas e todo o universo, e mediante essas mesmas relações.
  6. Conclusão
    Humanizar-se equivale a assumir-se como pessoa, ou seja, como sujeito, por sobre o sistema de vida já dado, no qual nascemos, e que insiste em impor-se a nós ao longo da vida, mediante processos interpessoais e coletivos de “domesticação”, que já começam na família, na igreja, na escola, nas instituições sociais e hoje particularmente mediante os chamados meios de comunicação social, privilegiando-se dentre eles os de propaganda, cujo objetivo principal é criar necessidades, fazendo parecer imprescindível o que, na verdade, é supérfluo.
    Somos vítimas de uma pedagogia de dominação pela qual “o opressor se introjeta no oprimido” e o mundo perde qualquer referência transcendente, isto é, de ultrapassagem, de ir além de si mesmo e de seu estado atual. O futuro já não se propõe como horizonte de superação qualitativa do presente, mas só quantitativa, sempre mais do mesmo, pura continuação determinística do que já está dado.
    Para assumir-se como pessoa e transcender o presente do sistema estabelecido, o passo básico é conhecer-se a si mesmo. É o que mais nos custa, segundo Paulo Freire: “O que mais custa a um homem saber de maneira clara, é sua própria vida, tal como está feita por tradição e rotina de atos inconscientes”. Ora, esse é o início da ação recriadora, pois começamos a “saber quem somos, nós e os outros, compreendemos como chegamos a ser desta maneira e conjecturamos o que poderíamos fazer conosco da forma como somos”. É assim, enquanto memória (passado) e projeto (futuro), que temos a chance de nos tornar e nos sentir nós mesmos(as). Há um filósofo francês, Roger Garaudy, que diz que o ser humano nasce velho e ao entrar na vida é que tem a chance de tornar-se novo. O Apóstolo São Paulo, na Bíblia, vai dizer que, pela liberdade, nos tornamos “nova criatura” (cf. Carta aos Gálatas).
    É esse o conceito de conscientização, elaborado por Paulo Freire. Não se trata de introspecção individualista, mas é o complexo processo de autoconhecimento nas várias dimensões da pessoa: conhecer-se como parte do mundo, imenso sistema de vida (ecologia) e como parte de um povo do qual herdamos o ser no seio de uma tradição que nos confere sentimento de identidade (dimensão antropológica); perceber-se parte de um sistema econômico, social, político e cultural (dimensão sociológica); finalmente, perceber que tudo isso forma nosso psiquismo (dimensão psicológica).
    Com todo esse material de que somos feitos(as), contando com essas múltiplas relações, a vida é convite para que nos recriemos, ao jogar o jogo da liberdade, de olhos voltados para o futuro, conscientes de que temos 04 (quatro) tarefas em que tudo se resume: 1. a tarefa gnoseológica: conhecer a realidade, o ser existente como bom/belo. A experiência do real, e de nós como parte do universo, nos leva a perceber a verdade como revelação da beleza do mundo, ainda que parcial. Essa intuição profunda, tantas vezes implícita, de que a verdade do ser é a beleza, é o que nos provoca paixão de viver e daí o esforço sempre renovado, por cada pessoa e cada geração, de fazer projetos de vida, projetar o futuro, sonhar com libertação de cadeias e uma vida transformada – o que a Bíblia chama de “xalôm” (felicidade, bem-viver, paz); 2. por isso, a segunda tarefa é estética, é a experiência de que, se o mundo é bonito, pode ser ainda mais bonito. Passamos do ser que é ao ser como “poder ser”, ou seja, como projeto que, pela mediação de nossa fantasia, cria o futuro; 3. daí nasce o senso de dever. Se maior beleza é possível, se é possível projetá-la, então, impõe-se como dever ser, é a tarefa ética. A beleza futura se impõe como norma de vida, infundindo-nos o sentimento de obrigatoriedade: se é possível, deve ser de fato; 4. finalmente, chegamos à tarefa política. É a experiência da vida como ação, cumprimento concreto da obrigação, conhecimento do dever como algo possível ao contar com os instrumentos que nos fornece a realidade de fato. Passa-se, assim, do nível dos objetivos, da finalidade (estética e ética) ao nível dos meios para realizá-los, o que sempre só se consegue parcialmente, pois estamos submetidos à “lei dos instrumentos”. Não é possível fazer tudo o que desejamos e projetamos, mas só o que nos é possível, de acordo com os meios de que dispomos, segundo suas possibilidades e condições concretas. Por isso se diz que “a política é a arte do possível”. Mas, como quer que seja, se a beleza, além de ser um fato percebido na realidade das coisas (conhecimento), é projeto possível (estética) e é dever e tarefa obrigatória (ética), então tem de ser, fazer-se real (política), ao menos parcialmente, realizada em mim, nas pessoas, nas coisas, na cidade, no país, no mundo.
    A verdade do ser se “verifica” (faz-se verdadeira) enquanto se revela conscientemente possível no seio e no decorrer desse processo, não é simplesmente dada anteriormente como algo imutável e estabelecido de antemão uma vez para sempre. É na práxis (ação e reflexão) que se nos revela a verdade da realidade.
    Conhecer e autoconhecer-se tem tudo a ver com essa maravilhosa aventura existencial de acolher a verdade, que a nós se oferece como dom e proposta, e de fazer a verdade, que é o projeto, o dever e a tarefa de toda a vida.Recife, 20 de Outubro de 2012

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política

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