Seguindo o exemplo de seus pais, que costumam subir (pelo menos) uma vez por ano a Jerusalém (Lc 2, 41), Jesus empreende com regularidade a longa viagem entre a Galileia e Jerusalém. Galileu de nascimento (provavelmente segunda ou terceira geração de imigrantes), ele é judeu de convicção e como tal não perde nenhuma data do calendário judaico, nem Páscoa, nem Dedicação, nem Tendas, provavelmente nem Pentecostes. O que se costuma chamar de ‘vida pública’ de Jesus provavelmente é uma elaboração literária a partir de repetidas ‘subidas’ e ‘descidas’ de Jesus, entre a Galileia e Jerusalém (mais de cem km. a pé). A elaboração dos textos evangélicos seria feita, por cada evangelista, sobre a tessitura básica dessas caminhadas longas. É bem provável, por exemplo, que o que chamamos ‘vocação dos apóstolos’ (narrativas diversas nos diversos evangelhos) seja uma elaboração literária a partir da formação de um pequeno grupo de caminheiros que se dispõem de abandonar os trabalhos do campo para ir a Jerusalém. Normalmente o organizador do grupo (talvez o proprietário dos animais de carga) chama dez a quinze pessoas para empreender a viagem com ele. Não se recusa esse tipo de chamado, pois ele vem de Deus e, portanto, está acima de preocupações com a roça, a colheita e a família. Uma vez composto, o grupo monta uma infra-estrutura básica para alimentação, transporte, hospedagem e segurança, pois a viagem terá de passar por terra hostil (Samaria). Caso haja provocações, trata-se de não reagir e seguir adiante, procurando hospedagem numa outra aldeia (que não seja habitada por samaritanos). O fato de sair de casa e deixar para trás família e trabalho constitui uma grande experiência para os participantes. Eles experimentam um sentimento maravilhoso de liberdade. Sem laços nem amarras, o peregrino aprende a valorizar a caminhada em grupo, que exige generosidade, prontidão, gratuidade, amizade, abertura, paciência, colaboração e perdão. O grupo se emociona quando, finalmente, contempla a alta colina de Sião, que domina a cidade santa: Vocês se aproximaram do monte de Sião, da cidade de Deus vivo, de Jerusalém celeste e de miríades de anjos em festa (Hb 12, 22). Na montanha do templo está a salvação das nações e a esperança dos profetas . É a casa de Ihwh (Sl 23, 6). Eu quero morar na casa de Ihwh todos os dias de minha vida Contemplar a beleza de Ihwh Descobrir seus palácios (Sl 29, 4). Mas, no momento em que os caminheiros galileus finalmente penetram no recinto do templo, a desilusão é grande. Eles se defrontam brutalmente com o Deus mercador. O evangelho de João transfere a história da expulsão dos vendilhões (que nos sinóticos fica no final do texto) para o segundo capítulo, bem no início, para realçar a força da cena : ‘a casa de meu pai é uma casa de oração e vocês fazem dela um covil de ladrões’ . E ao longo dos doze primeiros capítulos do evangelho de João, só aparecem discussões entre Jesus e os ‘judeus’ . Sua paixão pelo templo é uma paixão de peregrino e ela não encontra ressonância em Jerusalém, nem entre as autoridades nem entre os habitantes da cidade, que só pensam nos benefícios que a grandiosa reconstrução do templo, empreendida por Herodes, pode trazer em termos de emprego, comércio, promoção, poder e prestígio. No final do capítulo 12, Jesus constata com amargura que as pessoas da cidade não o entendem: Ele cegou seus olhos e endureceu seu coração Para que seus olhos não vissem Seu coração não compreendesse (Jo 12, 37-39). Aí ele se volta aos pobres que encontrou no caminho entre a Galileia e Jerusalém. Na beira do caminho dos peregrinos, ele sempre observou pobres que estão aí para vender algo, pedir esmola ou executar pequenos serviços em troca de alguma moeda. É ao longo do caminho que os peregrinos da Galileia percebem as misérias e dores do mundo. Aí Jesus configura seu programa de vida: felizes os pobres, deles é o reino de Deus. (em oposição flagrante com o tradicional dito judaico: felizes os judeus, deles é o reino de Deus). Ele abandona a procura de posse, poder e violência e resolve ver tudo a partir da experiência do caminho. O centro não está mais na chegada (o templo de Jerusalém), mas na própria caminhada (o encontro com os que ficam à beira do caminho). O comportamento do grupo de Jesus é diferente do que outros grupos de peregrinos fazem. Por onde os apóstolos peregrinos passam, uma rede de confiança e comunicação se estabelece entre as pessoas. Todos(as) são ‘irmãos’ e ‘irmãs’. Eis a tessitura básica da mensagem de Jesus: o pão nosso de cada dia, o cuidado com doentes e inválidos, o pão da palavra nova. Palestina se torna um país solidário. Cresce a autoridade de Jesus. Numa das caminhadas para Jerusalém, acontece uma coisa extraordinária. Jesus já é bastante conhecido e vem acompanhado por um grupo grande de galileus. No momento de entrar em Jerusalém, ele inventa algo tão fora do comum que o episódio é narrado por todos os quatro evangelhos, o que mostra sua veracidade história do ocorrido e sua importância na tradição cristã . As edições do novo testamento falam em ‘entrada triunfal’, um título que alude ao teor irônico do acontecido. A melhor narrativa é aquela que aparece no evangelho de Marcos (11, 1-10), que mostra claramente que é o próprio Jesus que toma a iniciativa dessa estranha ‘entrada triunfal’. Ele manda trazer um burrinho, o monta e desse modo se apronta para entrar pela porta principal da cidade. No evangelho de João (12, 12-19) se lê também que ‘Jesus encontrou um burrinho e o montou’. O que chama a atenção do leitor de hoje é que os galileus que acompanham Jesus parecem entender logo o que ele quer com essa estranha maneira de entrar na cidade. Alguns colocam seus mantos em cima do dorso do burrinho (11, 7), outros estendem seus mantos pelo caminho por onde Jesus passa (v. 8), outros ainda espalham, pelo chão, ramos apanhados no campo ou os agitam com as mãos, enquanto cantam ‘hosana, bendito o reino’ (v. 9). Lucas acrescenta que alguns gritam: ‘bendito o rei’ (o novo rei Davi). Nós estamos acostumados a ler essa história fora do contexto, mas as pessoas presentes na hora compreendem perfeitamente o que está acontecendo. Na época, todos os habitantes de cidades dominadas pelos romanos conhecem muito bem os cortejos militares organizados pelos romanos e entendem sem dificuldade a insinuação no verso 9 de Marcos: uns caminham na frente de Jesus e outros atrás dele. Pois é desse modo que se organiza um cortejo militar romano. Pela mesma porta em que os militares entram montados em cavalos, Jesus entra num burrinho. Efetivamente, documentos da época mostram que os militares romanos gostavam de se exibir entrando solenemente pela porta solene de cidades por eles dominadas. Eles faziam isso por toda a extensão do império, mas principalmente em Roma, onde foram construídos grandes arcos triunfais para a passagem de legiões vitoriosas. As forças romanas de ocupação na Palestina não fugiam do rito e gostavam de montar o espetáculo de uma entrada triunfal, imitação da entrada das legiões romanas após uma guerra de conquista de novos territórios e de subjugação de novos povos. Os militares montam cavalos selecionados que passam por cima de tapetes e se deixam rodear por servos com abanos e guarda-sóis, enquanto os presentes cantam hinos. Soldados ‘rasos’ (a pé) pela frente e atrás (exatamente como na ‘entrada triunfal’ de Marcos). No final, as autoridades locais fazem discursos de boas-vindas . Quando os sacerdotes do templo observam o ‘carnaval’ galileu, eles ficam perturbados. Não só eles, mas também os funcionários da casa de Herodes, os administradores do pretório romano situado em Jerusalém e mesmo os habitantes da cidade. Mateus relata que ‘a cidade toda fica alvoroçada (‘quem é este?’). Os habitantes ficam ainda mais desnorteados quando os galileus se comportam efetivamente em carnavalescos, imitam os gestos dos militares romanos e gritam aos habitantes de Jerusalém, apontando Jesus: ‘este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galileia’ (Mt 21, 10-11). Lucas ainda revela outro pormenor importante. Os fariseus gritam a Jesus: ‘mestre, repreenda seus seguidores’, mas ele responde: ‘se eles se calarem, as pedras gritarão’ (Lc 19, 39-40). Não só está de acordo com a confusão, mas a provocou. O incidente passa rápido e termina num silêncio pesado e inquietante que se abate sobre a cidade. Jesus quis mostrar o triste espetáculo da dominação romana, da hipocrisia da casa de Herodes, da prepotência dos sacerdotes do templo e da ingenuidade da população local. Mas a reação, em Jerusalém, é péssima. Lucas conta que, logo após a ‘entrada triunfal’, Jesus contempla a cidade do alto do monte das oliveiras e não consegue controlar seus sentimentos. Ele chora. ‘Se você (Jerusalém) soubesse hoje o que traz consigo a paz! Isso está dissimulado aos seus olhos! Você não reconheceu o tempo em que Deus o visitou!’ (Lc 19, 41-44). Para as autoridades e os habitantes da cidade, a entrada triunfal dos galileus é um escândalo, talvez o início de uma insurreição. Os militares romanos podem entrar com toda pompa na cidade de Jerusalém, mas os galileus (os pobres do norte da Palestina) não. Não entra na cabeça de ninguém que Jesus não planejou a cena na intenção de escandalizar, mas de provocar uma reflexão. Jesus chora. Sua ironia, a última arma que lhe resta contra a irracionalidade dominadora, não é compreendida. Em vez de refletir sobre o gesto dos peregrinos galileus, as autoridades planejam matar Jesus . Jesus percebe claramente: não adianta querer criar espaço para o novo dentro da estrutura antiga. Não se costura emenda nova em roupa velha. Um profundo sentimento de dor, misturado com amor pela cidade santa, toma conta de sua alma. O que ainda mais complica as coisas é que, mesmo entre os galileus, nem todos entendem o sentido da cena improvisada por Jesus. Como relata Lucas, na hora alguns galileus gritam: ‘bendito o rei’ (o novo rei Davi). Ou seja, há quem se imagina Jesus como um novo Davi que vem restaurar as antigas glórias de Israel . Ora, isso nunca passou pela cabeça de Jesus. Ele não vem restaurar o passado, mas criar um tempo novo, uma nova maneira de entender a vida. Uns dias mais tarde, para dissipar quaisquer dúvidas entre seus apóstolos, Jesus se aproveita da cerimônia pascal em Jerusalém para desfazer ilusões e mostrar aos seus companheiros mais próximos que ele não tem nada a ver com a restauração gloriosa de Israel. Ele não vem restaurar, mas inovar, mudar o modelo do mundo. Na hora em que celebra a páscoa com eles, num salão alugado em Jerusalém, ele insere nas palavras rituais tradicionais algumas curtas palavras que dizem tudo. No momento em que o ritual manda que o celebrante tome em mãos o ‘cálice do agradecimento’ (da eucaristia) e pronuncie as palavras costumeiras que evocam a saída dos hebreus do Egito, ele quebra o protocolo e diz, inesperadamente: ‘e esse vinho é meu sangue’ (14, 24). Essas seis palavras, cruas e nuas, dizem tudo: ‘eles vão me matar!’. Os apóstolos ficam assustados e o susto permanece até os dias de hoje.
Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”
Explicação do painel(foto)
O autor é o primeiro à direita.
“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.