Frei Betto 15 de novembro de 2019

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Tudo muda. E a sociedade, agora, muda em surpreendente velocidade. Outrora, as instituições tinham molduras definidas, como Estado, religião, escola e família. Isso imprimia ao cidadão sensação de solidez. O complexo institucional parecia tão bem entrelaçado que qualquer tentativa de “correr por fora” ressoava como imprevisível aventura ou desrespeito aos pilares da democracia.

Desde os tempos tribais as instituições são arcabouços coletivos ou comunitários que asseguram os parâmetros que regem a nossa convivência social. E o poder consistia em ter em mãos as rédeas institucionais e a capacidade de determinar os rumos do ordenamento jurídico e da política econômica.

Esse edifício implodiu nesse mundo unilateral hegemonizado pelo neoliberalismo. Temos agora chefes de Estado que atropelam ditames constitucionais e se comunicam com a nação, não por pronunciamentos revestidos de solenidade protocolar, mas por redes digitais, como Instagram, Twitter ou Facebook. É o caso do presidente do Brasil. Enquanto a opinião pública manifesta sua indignação diante do não esclarecimento dos assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes, da escalada do desemprego, do sucateamento da assistência à saúde e dos cortes na educação, o presidente adota um discurso raivoso contra os direitos indígenas, a preservação ambiental, e profere uma anacrônica diatribe anticomunista. Quixote às avessas, o mandatário se mostra indiferente aos problemas reais da nação e abre fogo contra os moinhos de vento do “globalismo” e do “climatismo”.

Isso se repete na desinstitucionalização de outros territórios, como a mídia. Hoje, cada usuário de rede digital tem as suas próprias fontes de informação e o seu público receptor de notícias, ainda que sejam predominantemente fake news. O fato não importa, importa a versão do fato. E não se divulga para informar, e sim para desmerecer, com ofensas e ameaças, qualquer opinião contrária.

Isso impacta, pois a psicologia ensina que guardamos no peito muito mais as ofensas recebidas do que os elogios. A emoção se sobrepõe à razão. Não queremos convencer, queremos vencer. A verdade é o que afirmo, o resto é ideologia.

Esse esgarçamento das instituições é progressivo. Como se em um jogo de futebol cada jogador perdesse a noção de time e buscasse se apropriar da bola como se a vitória dependesse tão-somente de seu desempenho. Por que passar a bola ao parceiro se o mérito é de quem faz o gol? Cada um quer fazer o seu gol. A noção de cooperação se esvai. As regras do jogo democrático são burladas. A realidade é vista como um vasto videogame no qual o desafio é exterminar os adversários e vencer a guerra. Trata-se de uma conjuntura apocalíptica. Todos esses avatares estão convencidos de que travam a batalha final e haverão de se perpetuar no poder.

Como reagir a tal conjuntura? Como atuar dentro dos parâmetros democráticos se há quem, no poder, não nutre o menor respeito por eles? Aqui reside o perigo.

Se os descontentes com essa emergência autocrática, que corrói a democracia por dentro, decidirem agir com as mesmas armas, será o caos. Implodidas as regras da democracia, restam a anarquia e a Lei de Talião. Como, aliás, já transparece, de forma virtual, nas redes digitais.

Daí a importância de denunciar esse jogo desregrado e reforçar as instituições democráticas, aprimorá-las, de modo a serem,  efetivamente, redes de proteção da cidadania e de ampliação da democracia. Fora disso, a tempestade se fará dilúvio.

Artigo originalmente publicado no jornal O Globo.

Obs: Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.

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