Depois de alguns meses de flertes, sem consequências, marcamos, sigilosamente, um encontro na fonte luminosa da Praça dos Amores, a mais bela obra do prefeito Serapião. Era um lugar importante e sagrado para os adolescentes, por possuir poderes misteriosos de fazer todos os romances nascerem ali.  A ansiedade levou-me duas horas antes ao local de encontro, e eu já estava aflito quando ela surgiu na esquina da Associação Atlética. Não parecia  espontânea, nem leve, nem solta e caminhava na minha direção, exibindo alguns embaraços nos pés. Sentamos no banco de sombra mais extensa e ventos mais frescos e durante alguns minutos ficamos em silêncio e cabisbaixos. A proximidade provocou-me uma combinação de tensão psíquica e física: meu coração batia sem freios, meu corpo tremia suavemente, minha respiração encontrava dificuldades e meus lábios estavam secos. Precisava encarar o desafio e vencer os obstáculos. Encabulado, coloquei minha mão lentamente sobre a sua e tentei, em vão, equilibrar minhas emoções. As manifestações expressavam minha inexperiência e o tamanho da minha ansiedade, mas, animou-me o brilho de seus olhos e os traços de sua face não dissimularam o cio sentimental que explodia em sua alma.

Olhávamos um para o outro sem pronunciar uma só palavra. Quando meus lábios, estimulados por minha paixão e pelo clima do momento, procuraram seu rosto, fomos abordados, na hora errada, por um guarda municipal que nos questionou sobre o que fazíamos ali, mas percebendo romantismo e ingenuidade entre nós, foi embora antes de receber a resposta. A praça ficou muda e vazia, entretanto da casa mais próxima, debruçadas na janela, duas vitalinas “cabocas”, com olhares de bisbilhoteiras ferinas, nos observavam com aparência de quem vivia um orgasmo sem fim, após a intervenção do guarda. O contratempo provocou erosões e escoriações em nossa paz e o encontro foi interrompido. Muito sensível, a paquera notou minha aflição, minha timidez e meus desejos, e com movimentos espontâneos e sensuais, aproximou seu rosto, beijou-me por um a dois segundos, e de forma apressada saiu sem despedidas.  Acompanhei, com olhar atento, seu caminho de volta para casa. A cada passo ela tornava-se mais distante, deixando meu coração cheio de saudades. Senti todos meus sonhos e fantasias, naquele instante, eclipsados adversamente, sem prever que o desafio fosse perdurar tanto tempo.

Meu coração estava em lua de mel com seu modo de vestir e falar, com seu cheiro e com o toque mágico de suas mãos. Naquela época, as intimidades eram amiudadas e delicadas e eu não podia apenas dar tempo ao tempo e, mesmo que fosse por um abrir e fechar de olhos, queria sentar a seu lado, antes de viajar para estudar em Aracaju. Sua ausência, me fazia falta e a todo instante desejava tê-la a meu alcance.

Marquei outro encontro, mas a cidade escureceu um pouco antes do por do sol, tomada por nuvens escuras, chuva fina, relâmpagos e trovões. Mesmo assim, saí a sua procura e só depois de idas e vindas na passarela, percebi estar sozinho na praça. No dia seguinte assisti à primeira aula no Atheneu e logo  estava afinado com o curso científico. Minhas notas em Matemática, Física e Química eram bem acima da média, mas, vivia ansioso a esperar a chegada do final de junho na perspectiva de matar a saudade de uma demorada ausência.

Contei o tempo, hora por hora, durante o semestre, até chegar o momento de viajar de férias a Itabaiana. Quando o ônibus parou, na esquina do bar de Lafaiete, queria notícias da paquera e fui direto para a praça, ainda com a mochila nas costas, e assustei-me com alguns amigos caminhando apressados em minha direção. Alguma coisa parecia fora de meu controle, mas eu não sabia exatamente o que acontecia. Tinha esperança de encontrá-la naquela noite, entretanto, recebi a notícia de que ela estava de namoro com um comerciante da cidade. Um vazio invadiu minha alma. A decepção dolorosa tornou minha autoestima muito baixa e me sentia jogado no inferno. Não podia tirá-la de minha vida, com data marcada, e a traição causava-me dor intensa e prolongada. Humilhado e desprezado, no dia seguinte retornei a Aracaju, mas, sem pensar em confrontos ou dar volta por cima. Assumi outras prioridades, concluí meus estudos na Faculdade de Medicina e construí uma família com Ana Lívia e os filhos Allan, Ana Carla e Ivo.

Reconhecido pelo domínio e experiência profissional, certo dia fui convidado, por dois colegas, para examinar uma paciente grave, vítima de acidente automobilístico e me surpreendi: as mocinhas, da minha juventude, não mudavam de imagem de um dia para outro, camuflando os defeitos com cosméticos, botox ou silicone na face, seios e nádegas. Ela mantinha a beleza do momento de nosso primeiro encontro e a sua expressão facial, indiferente à minha presença, meu íntimo a transformou em um belo sorriso. Eu não podia mudar minha maneira de pensar e agir diante de uma situação dolorosa e desafiadora: a morte é universal, inevitável e irreversível e meu aprendizado estará sempre acima de qualquer superstição. Após realizar todas as etapas do protocolo, fiz o diagnóstico de morte encefálica. Um tema difícil. A abordagem familiar negativa, não permitiu desencadear o processo de captação de órgãos para transplantes. Parte da vida fere as leis da razão. 16/10/2019

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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