A necessidade de usufruir da vida em sua plenitude faz homens e mulheres procurarem nos meandros da noite os prazeres para alegria da alma. Entretanto, repetir, continuamente os finais de semana, pode causar dependência física e psíquica, principalmente, em quem não possui outra opção de lazer. A noite promete fortalecimento da vida social, abrandamento do estresse do dia-a-dia, e encontros, que lá pelas tantas, podem terminar nos quartos dos motéis. A interrupção da rotina depois de supervalorização da vida noturna, em detrimento de outras atividades e obrigações, pode despertar surtos de desajustes caracterizados por ansiedade, irritabilidade e desequilíbrio nas relações interpessoais no lar, no trabalho e no ambiente social.

Em uma noite de sexta-feira, nas proximidades de um barzinho dançante da orla, um contratempo me ocorreu: uma cigana fascinante, ainda jovem, interrompeu os meus passos e, muito rapidamente, introduziu em meu braço uma pulseira interessante, com pedras coloridas miúdas, símbolos e medalhas. Isso nunca havia acontecido comigo. Pensei em sair dali mas resolvi ouvir a bela moça-dama. “Esta pulseira abriga conhecimentos de rituais, magias, adivinhações e astrologia. Ela vai atrair aquilo que você mais quer: paz, proteção, prosperidade e mulheres. O trevo de quatro folhas desembaraça amor e o guarda de traições. O verde da pedra jade vai harmonizar seu coração e conduzir em sua direção uma moça cheia de energia sexual. A ametista, aproximará de você uma virgem com todos sentidos aflorados, tão agradável quanto a brisa do mar, o sereno da madrugada e os primeiros raios do sol da manhã. Lave as mãos com vinhos e ervas aromáticas, ande devagar e não pise em água lambuzada. Isso afastará olho grande, inveja e magia negra. Não entre aí sem a pulseira. Com ela, você enxergará luz, brilho e olhares sedutores, mesmo na escuridão das trevas”. Nunca acreditei em que se contrapor aos deuses e suas regras fosse motivo de punição com cegueira ou loucura e que pagamento de indulgências fosse o caminho para o céu. As rezas, orações, despachos, bentinhos, escapulários e amuletos são crendices irracionais, perpetuadas pelo medo do desconhecido. Paguei 10 reais à cigana e adentrei no local para dançar.

Não fui surpreendido. Os bares e os clubes dançantes não se destacam pela jovialidade ou refinamento dos frequentadores e, sem poder contar com o lucro das pessoas de maior poder econômico, tudo é arrumado para satisfazer a segunda e terceira classes da pirâmide social. A decoração é pobre e as instalações são despidas de luxo e conforto. O roteiro musical não é lá essas coisas e se desenvolve sem surpresas para os espectadores, já que artistas consagrados não fazem parte do elenco. O show, elaborado sem complexidade, cabe a talentos locais que nos brindam com razoável entretenimento. A pouca luz e a música, associadas, estimulam os presentes se engajarem no ritual de iniciação. Eu ainda conduzia a dama para o salão quando houve um apagão em toda orla. Sem enxergar três a quatro palmos além do nariz, mesmo com a pulseira no braço, decidi voltar para casa.

O taxista olhou-me admirado e para certificar-se do reconhecimento olhou-me cuidadosamente outra vez, abrindo um diálogo:

– O senhor é uma pessoa chique e bem conhecida. É medico da minha família. É frequentador da Feirinha da Sulanca?

– Trabalho, arduamente, há vários anos e, durante esse tempo, limitei meus relacionamentos à família e a alguns amigos, mas, hoje estou aprendendo o dia-a-dia de quem vive só. Nunca é tarde demais para ampliar o mundo e levar a vida mais equilibrada e ativa. Atualmente, divirto-me sem compromissos, faço o que me faz feliz, mas já fiz antes o que os outros esperavam. Quero curtir e aproveitar momentos que marquem meus dias, antes de abraçar-me a noite comprida. Feirinha da Sulanca? Sobre o que você está falando?

– As mulheres com mais de 50 anos, sem um lar aconchegante, separadas ou rejeitadas, às vezes, por transgredirem exigências morais, procuram nas pistas de dança a oportunidade de encontrar companhia para uma boa noitada. Os lugares onde elas se reúnem, normalmente em grupos, são conhecidos como Feirinha da Sulanca ou Feirinha de Coisas Usadas. Armam seus oásis, a cada semana em um lugar diferente e o dançarino contratado, como manda o figurino, expõe o dom divino de cada uma delas, ao caçador noturno. Fingem que estão ali para dançar, mas, o intuito é encontrar um bom companheiro, noite adentro, até antes do nascer do sol. São mulheres alforriadas e qualquer um que se aproxime, estenda o braço e as chame como com um dedo em gatilho, receberá demasiada atenção, por receio do acúmulo de repetidas frustrações. Primeiro vem o abraço. Depois deslocamentos para a esquerda e direita, para frente e para trás. Por fim uma rodada para contemplar os glúteos e decidir se o conjunto da obra desperta impulso e excitação. Experientes e desvairadas, não ignoram a vontade do homem, conhecido ou estranho, e realizam seus sonhos, oferecendo um pacote de amor sensual, criativo e sortido. Aliás, homens e mulheres sabem que Deus criou a madrugada, não somente para o luar, mas, muito mais para bebida, drogas ilícitas e atividade sexual promíscua.

Analogia maldosa e perversa. Não creio que a voz do povo seja a voz de Deus, por ser o jeito de viver decisão de cada um. A nossa cultura orientada para a juventude contínua, frequentemente retrata a mulher idosa como menos atraente, e, uma vez que os homens tendem a casar com mulheres mais jovens, sempre mais jovens que eles próprios, as mulheres com traços deixados pela idade, terão dificuldades para encontrar um cônjuge depois de uma separação legal, contudo, mesmo idosas, não perdem o direito a dispor do seu corpo da forma que achar conveniente.

A prática de dançar frequente, ao longo de alguns meses consecutivos, intervém de modo eficaz na independência funcional do indivíduo idoso. Melhora o equilíbrio, flexibilidade, coração, respiração, músculos e autoestima. Corresponde à psicoterapia convencional e às técnicas de aconselhamento psicológico. Nas ruas e nos shoppings há responsividade moral aos contatos íntimos entre dois corpos, no entanto, a dança, além de melhorar o corpo e a alma, inibe várias restrições sociais. As pessoas ficam livres para sentir o prazer do abraço, o toque das mãos dadas, a sensualidade dos movimentos, o sentimento que aflora no encontro das faces e a suavidade emocional do coladinho íntimo. Tudo se transforma em prazeres intensos que desvanecem em pouco tempo.

Dançar vale a pena, seja qual for a sensação que busca a voz de comando.
Aracaju, SE  21/06/2019

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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