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O casal aqui presente não quis apenas celebrar uma festa de casamento. Nem mesmo se contenta com celebrar o rito do sacramento do matrimônio. Antes, convidou-nos a constituir uma assembleia eucarística. Estamos aqui para celebrar a Santa Eucaristia e nesta Eucaristia firmar nosso compromisso fraterno com ela e ele, nesta nova etapa de vida que hoje se inicia. O convite não é apenas para festejar esta data tão significativa, mas para firmar um compromisso como amigos e amigas, irmãos e irmãs, de vida e de fé.

Isto é indicação clara do sentido que dão a seu casamento: querem entrelaçá-lo com o mistério pascal de Jesus. Foi por isso que escolheram para seu cartão de convite a frase da Carta aos Efésios: “Este mistério é grande, eu quero dizer que sua grandeza consiste em ser sinal da relação entre Cristo suas comunidades (Igreja)” (Ef 5, 32).

Na Eucaristia, bem o sabemos, o que vimos fazer é celebrar a vida de Jesus de Nazaré, que tão radicalmente se entregou por Seu povo a ponto de ser tido por subversivo e por isso condenado à morte como pessoa indesejada, por ricos, políticos e religiosos. Ao celebrarmos a vida de Jesus, proclamamos que a entrega de si mesmo(a), uma vida motivada pelo Amor, é que tem sentido: só ´numa existência assim a VIDA é vitoriosa. Por isso, na Eucaristia celebramos a morte e a vitória de Jesus, como momento culminante de uma vida amorosamente doada. E firmamos mais uma vez o compromisso de ir assumindo, por mais imperfeitamente que seja, o mesmo  caminho.

Todos e todas nós, junto com a noiva e o noivo, queremos que seu casamento seja “em Cristo”. Quer dizer, encontre na maneira de viver de Jesus o pleno sentido. Aqui queremos proclamar que o casamento é sinal do dom total de Jesus. Percebemos que a consumação do amor, o abrir-se recíproco das pessoas no gesto dos corpos que se entregam é sinal, é sacramento, é anúncio vivo daquela consumação plena do amor que acontece no dom total da própria vida. É a morte por amor que leva o amor à consumação. Morrer pela pessoa amada, eis a consumação do amor! Morte que se dá cada dia, na renúncia e na entrega, o que a tradição chama de “mortificação”; morte que pode ser exigida literalmente na entrega total e final da própria vida no “martírio”. A consumação erótica e sexual do amor é apenas sinal e anúncio dessa dimensão mais profunda e mais plena. E isto é tão verdadeiro que, facilmente, no ato de amor deixamos escapar frases como estas: “Eu morro de amor por você”, “estou doente de amor”. E o livro bíblico de Cantar dos Cantares di-lo poeticamente: “O amor é forte como a morte, profunda a paixão como o abismo dos sepulcros; suas chamas são chamas de fogo, labaredas que consomem” (Ct 8, 6). É como se se manifestasse, no ato de amor, o desejo incontido e impossível de dissolver-se, de morrer para si e reencontrar-se em outrem. A própria experiência do ato sexual é por si mesma bem expressiva: é como estar na fronteira entre vida e morte, entre ser e dissolver-se, entre sorrisos e tremores e gemidos… A consumação do amor é morrer de amor, é morrer por amor.

Para clarear ainda mais o sentido do que estamos a celebrar, escutamos o testemunho de nossos antepassados na fé. Escutar a leitura das Escrituras é tomar contato com a experiência daqueles e daquelas que nos precederam nesta mesma caminhada. A Carta aos Efésios nos diz fundamentalmente duas coisas: 1. É preciso situar a relação homem-mulher no mistério de Cristo: “Este mistério é grande, eu quero dizer que sua grandeza consiste em ser sinal da relação de Jesus com as comunidades (Igreja)”; 2. É preciso situar a relação homem-mulher na relação mais ampla da comunidade: “Sejam todos(as) submissos(as) uns a outrem”, “submissos(as)” quer dizer estar atentos(as) às necessidades (que se tornam exigências) de cada pessoa, todos e todas dedicados(as) ao serviço recíproco.

É daí que brota a dedicação da mulher ao marido. No contexto daquela sociedade – será que já superamos de todo o “contexto” daquela sociedade? – o problema não era a mulher dedicar-se ao marido, ser-lhe “submissa”, quer dizer inteiramente atenta a suas exigências A questão era não perder a própria dignidade. Sabemos que o tratamento dado pela mulher ao marido era de “meu senhor”. Por isso se diz que a entrega total da mulher ao marido tem de ser “como ao Senhor” Jesus. Ora, entregar-se a Cristo, serví-Lo como Senhor é radicalmente dignificante e libertador. Assim, a entrega, a “submissão”, ou seja, a dedicação total da mulher ao marido só é atitude cristã, conforme a fé, na medida em que não a aliena, mas a dignifica e liberta, pois a experiência de Cristo é experiência de salvação, de plenitude. Ele é guia, é cabeça que conduz à libertação.

Ora, o que se recomenda à mulher não é tanto que seja toda de seu marido, pois já era  regra e costume vigente. O que se recomenda é que o seja mantendo, ao mesmo tempo, a própria dignidade, o potenciamento da própria liberdade, sentindo-se salva, a saber, liberta. Justamente o que acontece quando alguém se entrega “como ao Senhor”.

Já com os maridos é diferente. De início, já observamos que os conselhos a ele são uma parte bem mais longa e em linguagem muito mais radical. É que aí é que residia o problema. A dedicação total da mulher ao marido não era problema. Justamente a dificuldade era guardar a própria dignidade revelada pelo Evangelho de Jesus. No caso dos homens era exatamente o oposto. A sociedade os levava a sentir e pensar que a liberdade do homem consistiria na dominação da mulher. Por isso, a insistência do texto em dever ser ele para a mulher como Cristo que se entregou totalmente como escravo da humanidade, conforme nos diz de maneira tão clara o Apóstolo São Paulo na Carata aos Filipenses, capítulo segundo. É preciso amar a mulher como a si mesmo e entregar-se por ela, morrer por ela. Com isso, explode pelos ares a relação de dominação, como tem de acontecer em qualquer experiência de convivência cristã: “Sejam submissos, atentos às exigências uns dos outros no temor de Cristo”.

O mesmo se vê no Evangelho segundo São João (cf. Jo 13) quando Cristo é apresentado como modelo: nosso Mestre é aquele que consuma o amor com o dom da própria vida, ama até ao extremo e, como que dramatiza essa Sua atitude profunda, ao prefigurar a própria morte no gesto de abaixar-se do escravo que lava os pés do senhor. Ensina, assim, que a grandeza do senhor está em fazer-se escravo de seus servos. Completa inversão das relações, subversão radical e total de todos os critérios hierárquicos vigentes de convivência, radical ameaça a todos os costumes estabelecidos na sociedade. É esta a lição que nos é deixada: “Eu dei o exemplo para que, como eu fiz, vocês também o façam. Será que compreenderam bem? Vocês serão felizes se o puserem em prática”: lavar os pés umas pessoas das outras.

O texto do Evangelho coincide na mesma lição apresentada na Carta aos Efésios: Sejam submissos(as), atentos(as) às exigências uns(as) de outrem. Lavem-se os pés reciprocamente, quer dizer, tornem-se servos(as) uns(as) de outrem, deem a vida uns pelos outros(as). A medida da liberdade cristã coincide com a medida da recíproca obediência, do serviço mútuo, da fraterna doação recíproca.

 É nesta perspectiva de doação recíproca, de nova relação homem-mulher que se desenha o propósito deste casamento: tentar realizar a dois, na aceitação profunda da diferença de mentes e dos corpos, a tarefa que é a tarefa de todos e todas nós, a tarefa da comunidade cristã: dedicar-se a tecer relações humanas em que a liberdade de todos e todas seja efetivamente possível mediante o assumir da recíproca submissão, da atenção constante às exigências, isto é, às necessidades de outrem.

Compreender o casamento desta maneira será sempre incômodo e subversivo, pois abala os critérios que vigoram em nossas famílias, na sociedade e na própria Igreja. Querer assumir o casamento “em Cristo” será necessariamente perceber a própria união a dois como crítica permanente aos modelos vigentes na convivência social; será perceber o sentido e a vocação política da própria casa e da família.

Eis aí o desafio, agora maior do que antes. Estamos a experimentar na própria carne o quanto é difícil construir uma convivência baseada na liberdade e na democracia. Depois que saímos da ditadura e entramos na chamada “nova república” temos visto o desprezo com que tratam os povos indígenas e descendentes de africanos; nunca se matou tanto camponês e tantos seus aliados como desde os anos setenta até hoje; os assassinatos costumam permanecer impunes; a legislação agrária tende a retroceder em favor de quem já tem riqueza e negócios; a corrupção tem ares de ser a norma do costume político; e ainda é pouco, pois a grande corrupção se passa nos setores financeiros dominantes, no sistema bancário, no alto empresariado, nos grandes meios de comunicação com seu controle global e manipulação da informação, todos esses capazes inclusive de pôr o Estado de joelhos diante da voracidade de quem se julga os(as) donos(as) da Casa Grande. Chegamos até a ter dois presidentes da República literalmente “fabricados”.

A crise atual em nossas Igrejas cristãs é mais uma indicação clara de quanto é difícil construir uma convivência social baseada na liberdade e na democracia, o que em linguagem eclesial se diz “comunhão e participação”. É mais que evidente o interesse e desígnio de poderosos grupos na Igreja, aliados a poderosos interesses fora da Igreja, de apagar as conquistas do povo cristão a partir do Concílio Vaticano II e da era de Medellín e Puebla. Têm sido cada vez mais frequentes procedimentos autoritários e reacionários. Tenta-se demolir uma a uma as instituições  nas quais o povo cristão tem praticado uma nova maneira de ser Igreja, configurada por vínculos fraternos e marcada pela firme aliança com as classes e setores oprimidos. Fecham-se portas e janelas, destroem-se espaços nos quais cristãos e cristãs, sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e leigas vêm sendo há mais de trinta anos sistematicamente reprimidos(as). Até bispos têm sido publicamente desautorizados, desrespeitados e marginalizados.

Tudo isso, porém, não deve ser encarado como derrota, “a vitória que vence o mundo é a nossa fé”. A cruz de Cristo nos desafia à resistência, qualquer que seja o nível em que se manifeste. Urge enfrentar com serenidade o conflito e empenhar-nos com ainda mais firme determinação no sentido de optar na prática quotidiana por efetivas relações de autonomia e de comunhão. E nisso nossa casa, a casa de  cada qual de nós, tem papel decisivo. Nossas relações mais elementares de homem e mulher, de pais e mães, de filhos e filhas, irmãos e irmãs terão de ser, como Igreja doméstica, exercício concreto, quotidiano, de relações democráticas, caminho educativo para a construção da comunhão e da democracia. Sabemos bem o quanto é decisivo para toda a vida aquilo que as crianças experimentam em seus primeiros anos: novas relações em casa, marcadas pela experiência de liberdade e, ao mesmo tempo, pela percepção das exigências da realidade quotidiana da vida; de atenção às pessoas mais pobres, de abertura à partilha, de não consumismo, de cuidado com a Criação… de aprendizagem do senso de justiça e equidade e de prontidão para o socorro e levantamento de caídos(as). Tudo isso é decisivo para a edificação de novos homens e novas mulheres. É urgente tomarmos a sério consciência do sentido político do casamento  e da “vocação” política de nossas casas e de nossas famílias.

Desejo a vocês, noiva e noivo, aquilo mesmo que em nosso casamento Madalena e eu desejávamos a nós dois: que a imagem guia não seja aquela de um homem e uma mulher que apenas se olham reciprocamente; que sejam ambos, de mãos dadas, bem apertadas uma na outra e com os olhos fixos adiante a percorrer em redor os mesmos pontos comuns, na mesma direção. Que a casa seja suficientemente desinstalada e móvel, como uma simples tenda que se plante e se arranque para de novo  plantar mais adiante. Que a porta se deixe abrir por fora, sobretudo por pobres e pessoas necessitadas, que nos chamam com cada vez mais insistência, para com eles e elas partilharmos o saber, o abrigo do teto, a energia do pão, a alegria do vinho – só assim, como o casal de Emaús, teremos a grande alegria de reconhecer em nosso meio o próprio Senhor ao olhar nos olhos uns de outrem, em torno da mesma mesa, nos intervalos de longa e interminável caminhada…

Continuem sempre a namorar, gastem tempo com isso! Procurem nunca ir pra cama com mágoa guardada no secreto do peito, por pequena que seja. Acostumem-se a dizer-se o que, à primeira vista, parece que não tem importância. Acostumem-se a falar, se não tudo, o máximo que consigam, tenham confiantemente em comum o dinheiro, para que as relações de vocês sejam sempre mais transparentes e, assim, cheguem a fazer a experiência mais bonita da vida: amar e sentir-se feliz. O casamento é a coisa mais bonita da vida, quando dá certo. Que Deus os abençoe e faça com que assim seja!

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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