Minha presença era mais freqüente, naqueles tempos, em Itabaiana. E o meu amigo, baixo, gordo, braços e pernas curtas, sempre me localizava nas ruas, próximas a casa de meu pai, para me dar notícia de sua ação, em busca de alguma revisão nos seus proventos de aposentadoria.  Repetia, invariavelmente, a mesma história que eu já sabia de cor e salteado: o nome do advogado, sobrinho de fulana de tal, a pessoa que lhe indicou, porque também tinha ação idêntica, a vara onde o feito tramitava (não era a minha), os que já tiveram a ação julgada, de maneira que o meu papel se limitava a elogiar o causídico, que eu conhecia, a certeza de que a demanda, igual a centenas de outras, teria a sentença proferida no momento certo, a celeridade da Justiça Federal, e outras assertivas substantivamente de igual teor.

Mas a conversa não ficava só aí. Havia a referência a saudosa figura do meu pai, que era seu padrinho, como se fosse uma suave intimação a tratá-lo bem, visto que, no caso, papai desempenharia uma função dupla, apesar de ser uma só pessoa. De um lado, como meu progenitor; de outro, padrinho do meu interlocutor. Evidentemente que eu o tratava bem, reservava-lhe o melhor sorriso, exibia a paciência mais do que devida para o rol de informações que já me eram rotineiras. O problema é que o perdi de vista. Ou porque não tenhamos mais nos cruzado nas calçadas das ruas de Itabaiana, ou por ter minha presença se tornado mais diminuta, ou porque o afilhado do meu pai trafegasse por outras ruas nos instantes em que me encontrava de volta a grande urbe, ou, ainda, porque outras obrigações o prendessem em casa. O certo é que deixei de me encontrar com o referido e a sua ação, tão insistentemente noticiada, passou para o lugar do esquecimento no meu cérebro.

Não sei quanto tempo depois nos encontramos. Foi no cemitério. Peregrinava a minha saudade por corredores, parando aqui e ali em túmulos de entes queridos – comparo o cemitério a um museu: a gente demora a visitá-lo e quando o faz, encontra tudo como deixou antes, salvo a presença de novas sepulturas ou de novos hóspedes. Para minha surpresa, o encontro sentado no minúsculo muro de um túmulo, o olhar triste voltado para a terra que cobria o corpo de alguma pessoa sua. Era da esposa, conforme fui informado, depois.

Ao me ver, suspendeu a cara triste, levantou-se e veio em minha direção. A mão puxando um envelope bem conservado no único bolso da camisa. A sua contenda com a entidade previdenciária continuava, me colocou logo a par da matéria de nossas conversas anteriores. Não sabia dizer se a sentença já tinha sido proferida, à míngua de qualquer informação do advogado, que deixara de ir a Itabaiana. Do seu conhecer que o processo corria porque recebera uma carta da Justiça Federal. Daí ter tirado um envelope do bolso.

O envelope me foi passado, com autorização para lê-lo. Era uma intimação, em verdade. Li, com vagar, sem demonstrar nenhum espanto – porque ele me olhava bem de frente, na busca de analisar minha reação. A carta já estava em suas mãos a uns cinco meses. Dava para se ver, pela data que ostentava. Trazia a assinatura de algum servidor da vara. Com a carta, o meu interlocutor fazia questão de dizer que ia bem. E eu lia e relia e ele me fitava, calado, eu a esconder a fisionomia de médico que descobre um câncer no paciente.

Depois de lida e relida, mesmo porque tudo que na carta continha era minúsculo,  coloquei o papel no envelope, entregando-a de volta ao destinatário. O conteúdo da carta? A idade me faz contar mal a história. Peço desculpas ao leitor. A correspondência trazia uma intimação, para o meu interlocutor, em quarenta e oito horas, suprir a omissão, sob pena de o feito ser extinto sem resolução do mérito. Como trazia data velha, evidentemente que o processo já deveria estar arquivado, à falta de qualquer iniciativa do interessado. Arquivado o feito e ele ali, inocentemente, a carregar no bolso da camisa a carta como se fosse um troféu, lendo termos que não entendia. Não tive coragem – posso ter falhado – de lhe dizer a verdade. O fato se passou há muito tempo.

Na semana passada, conversando com Bosco e Alba, na casa de mamãe, toquei no assunto e me espantei: o afilhado de papai falecera. Teve o mesmo destino de sua demanda. Morreu, talvez, sem saber que seu processo não foi para a frente. Ou talvez desiludido com o Judiciário. Ou com o advogado que não lhe deu mais notícias. Ou, quem sabe lá, ainda esperando receber o bem de vida que a demanda buscava. Ou, acredito, à míngua de qualquer outra notícia, esquecido da sua ação.  É tudo assinalado pelo talvez porque não arrisco nenhum palpite.
07.04.12

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
[email protected]
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras  

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]