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Scooby-Doo é uma franquia de mídia americana criada por Joe Ruby e Ken Spears, e produzido por Hanna-Barbera. É o segundo desenho americano com maior número de temporadas de todos os tempos, perdendo apenas para Os Simpsons. O desenho é constituído por um grupo de quatro pessoas metidas a detetives, Fred, Velma, Daphne e Salsicha e um Dogue Alemão falante chamado Scooby-Doo, que viajam numa van chamada Máquina Mistério ajudando a investigar casos misteriosos. Visitam lugares inóspitos, casas mal-assombradas, parques abandonados, pântanos e ilhas, e na maioria das vezes são ameaçados por fantasmas, monstros, zumbis e vilões.

A fórmula dos episódios é sempre a mesma, mas isso não tira o brilho do programa: depois de uma cena de perseguição ou uma sequência musical, e por meio de algum plano ou ideia mirabolante, os vilões sempre são pegos. Estão sempre mascarados e suas verdadeiras identidades são reveladas ao tirarem suas máscaras e fantasias. Por trás delas há sempre o rosto de algum personagem já conhecido na história. Penso que um dos motivos para o longo sucesso do desenho diz respeito a como ele afeta diretamente nossa psiquê, principalmente nosso inconsciente, essa morada misteriosa de traumas, neuroses, fantasias.

O desenho aborda um sentimento que é parte constituinte da gênese humana: o medo. E quando sentimos medo, seja no momento ou depois da sua vivência, nos vem perguntas que literalmente não querem calar: “Esses fantasmas (psíquicos) que nos assolam realmente existem?” e “quem são eles?”. Essa é uma das perguntas que Scooby e os aspirantes a detetive tentam a todo tempo responder.

Esses fantasmas e monstros que nos rodeiam psiquicamente podem ser conteúdos neuróticos e traumáticos que nascem da fuga e incapacidade que temos em lidar com essa demanda tão sofrida, que muitas vezes não conseguimos nem simbolizar/entender no momento em que estamos passando. Fazendo uma alegoria sobre esses conteúdos, é mais ou menos quando em todo episódio, a turma (e principalmente Scooby e Salsicha) correm de medo ao se deparar com um fantasma ou monstro que aparecem para assustá-los, tentando expulsá-los do local de investigação. O medo os impulsiona a procurar um lugar seguro e muitas vezes necessário. Da mesma forma, o nosso medo também não nos ajuda a descobrir quem é ele ou como é esse inimigo que nos assusta. Se pararmos por aí, viveremos eternamente apenas fugindo de algo que não sabemos o que é e o que existe para além dele. Por mais que realmente acho importante e sábio entendermos que temos nossos limites pessoais, inerentes à vida, que devem ser respeitados, penso não ser muito saudável se, em todas as situações, pararmos ou fugirmos quando sentimos medo, pois do contrário, nossa bússola existencial sempre apontará em direção ao nosso medo e a tendência de ficarmos paralisados na vida é muito grande.

Psicanaliticamente falando, quando fugimos a todo tempo de nossas neuroses e traumas sem tentar nos analisar ou trabalhá-los, o monstro não morre, ele ressuscita como um zumbi e vai migrando dentro da gente com outros disfarces, caras e contextos “novos”, mas feito da mesma matéria anterior.

É interessante que a turma de investigadores (principalmente liderada pela personagem Velma), após passar pelo primeiro impacto de se ver diante de um ente “sobrenatural” e perigoso, começa a pensar sobre o monstro, isto é, sobre seus fantasmas internos, para o analisarem “mais de perto”. Este é o começo do enfrentamento psíquico, quando voltamos nossa atenção para os conteúdos tão sofríveis que assolam nosso cotidiano.

Esse enfrentamento pode ser doloroso porque geralmente é muito difícil admitirmos que possuímos pensamentos e desejos antiéticos, desprezíveis e condenáveis. Mesmo quando o trauma foi desumanamente “imposto” a nós e tornando-nos suas vítimas, pelo bem da nossa mínima saúde mental, teremos que tentar, aos poucos, parar de fugir e olhar bem nos olhos desses monstros.

O desenho nos ensina também que, na maioria das vezes em nossa vida, as criaturas assustadoras não são tão grandes quando olhamos mais de perto e que, inclusive, não são seres abomináveis, são apenas impostores que já vimos por aí e que tentam nos enganar. E o impostor por sua vez pode ser nós mesmos.

Quando buscamos conhecer aos poucos nossos fantasmas cotidianos (principalmente através de uma psicoterapia), podemos nos sentir autorizados e mais preparados para nos responsabilizarmos pelo que sentimos, desejamos e agimos. É daí que nasce a chamada ética do desejo citada na teoria psicanalítica, que nada mais é do uma postura ética frente ao que sou e como tentarei trabalhar esse (eu) estranho que afeta diretamente a mim e às pessoas ao meu redor.

Essa responsabilidade é redentora e pesada ao mesmo tempo, como o Tio Ben ensinou ao seu sobrinho Peter Parker em o Homem-Aranha: “Com grandes poderes vem grandes responsabilidades”. Essa responsabilidade é a trágica beleza de quem busca trilhar o misterioso caminho de se conhecer e de se saber quem se é, sem a menor garantia do que lhe acontecerá nessa jornada.

As assombrações e os monstros psíquicos de uma forma ou de outra são reais mesmo quando tentamos não vê-los. Mas Scooby-Doo e seus amigos talvez nos ensinem uma última e importante lição: Fantasmas não vão embora da nossa casa quando fugimos ou quando os expulsamos. Eles só nos deixam quando olhamos bem no fundo dos seus olhos e os convencemos a partirem.

Obs: O autor é Psicólogo, palestrante, terapeuta de família casal.
Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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