Vou buscar o almanaque nos primórdios da infância, como primeira leitura a me despertar a atenção. Não era o Almanaque do Tico-Tico, nem se constituía numa edição larga, de capa dura. Antes, um livrinho de poucas páginas, calendário de todos os meses, individualmente, nome do santo de cada dia (do meu aniversário, São Marcelino), e, aqui e ali, curiosidades expostas em poucas linhas, numa linguagem direta, e desenhos que me atraiam, à míngua de outras publicações destinadas a menino de minha idade, cinco ou seis anos, não me fixo com exatidão.

Meu pai trazia o almanaque para casa e eu ia pegá-lo e folheá-lo, página por página, sem perder nenhum texto de vista, numa publicação com a estampa de algum remédio, talvez do Biotônico Fontoura. Sabia, de antemão, que o almanaque só chegava no começo do ano e só circulava uma vez anualmente. Esperava, calado, em cada janeiro, a chegada do almanaque, que, acredito, afora a revista O Cruzeiro, era a única leitura que tinha ao dispor de meus poucos anos.

Um desenho, em várias etapas, ficou gravado: dois burros amarrados numa cocheira. Cada um recebe um caldeirão de feno. Um burro estende o pescoço para devorar o alimento; o outro faz o mesmo, e nenhum dos dois alcança a comida, até que resolvem atacar os dois o mesmo caldeirão, ao mesmo tempo, com sucesso, partindo em seguida para o segundo caldeirão. Ah, como eu ria no silêncio de minha solidão, lendo e relendo, relendo e lendo, de maneira tão reiterada que o desenho não saiu mais de minha memória.

Depois de dois ou três anos de almanaque no mês de janeiro, me perco nos tempos de antanho, sem me lembrar mais se o almanaque deixou de aparecer ou se fui eu que perdi o interesse e o substitui por outras leituras. Acho que a primeira hipótese é a verdadeira, misturada ao fato de ter despontado outras coisas que me conquistaram, de modo que o almanaque desapareceu, e eu, já com oito ou nove anos, na loja de papai, o substitui pelos jornais velhos que ele comprava para embrulhar o tecido que vendia, os olhos fixos em notícias de vários anos atrás e eu, ali, firme, com o jornal na mão, lendo tudo, enquanto o freguês ficava a espera de atendimento, e, depois, vinham as críticas a minha omissão como balconista, interessado mais na leitura dos velhos jornais que na venda de linho, arranca-topo, caqui Floriano, guarda-chuva e sombrinhas.

Pois é. Ainda hoje, quando me deparo, numa determinada companhia aérea, com uma publicação mensal, a impressão imitando a dos almanaques do meu tempo de menino, só me vem à tona o mês de janeiro de meio século atrás, quando esperava meu pai chegar, no final da tarde, com um almanaque na mão, para meu deleite.  E, com a lembrança, uma saudade que as palavras não conseguem bem exprimir. (12 de março de 2012)

Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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