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Solange, Mariana e Mariele não escolheram a carreira por conta de privilégios. Até porque, salários atrasados, sobrecarga de trabalho e falta de recursos não são aspirações de nenhum profissional. Também não trabalham apenas “por amor” à profissão — as três acreditam que a carreira merece ser valorizada pela população e pelos governos, com salários adequados e condições dignas. “Nossa missão na sociedade é a de promover educação e transformação por meio do conhecimento”, constata Mariele Furtado. “É um trabalho intelectual, mas também é uma atividade com seres humanos, que exige uma atualização constante e contínua dos educadores, e é também uma grande responsabilidade”, afirma Solange Carvalho. “Nenhuma sala, nenhum dia e nenhum aluno são iguais”, reflete Mariana de Oliveira.

As três mulheres têm, em suas carteiras de trabalho, a mesma profissão: professora. As três, em escolas públicas. E estão entre os trabalhadores que mais passarão por mudanças segundo a proposta de reforma da Previdência, apresentada pelo governo federal, em fevereiro, ao Congresso Nacional. Pelas regras atuais, os professores se aposentam mais cedo por ser uma profissão cujas características laborais geram mais impacto sobre a saúde: para os homens, são exigidos 55 anos de idade e 30 de contribuição; e para as mulheres, 50 e 25, respectivamente. A proposta do governo por meio da “Nova Previdência” eleva o tempo requerido para professores e professoras, ambos fixados em 60 anos de idade e 30 de contribuição. Porém, o texto do relator do projeto, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), alterou para 57 anos o tempo das mulheres; já o dos homens permaneceu com a sugestão inicial (60). A regra vale para professores da educação infantil, ensino fundamental e médio.

Prestes a completar 58 anos, mais de 20 deles em sala de aula, Solange Carvalho é hoje vice-presidente do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (CPERS). Ela é professora de História e Geografia da rede municipal de Caxias do Sul e da rede estadual desde 1994. Conhecedora dos impactos da reforma sobre sua vida e a de seus colegas de profissão, ela explica que a proposta não pretende apenas alterar a idade mínima exigida para os professores se aposentarem (que vai aumentar em sete anos): ela também dificulta o recebimento do salário integral. “Sem a integralidade, você só recebe a média desde quando começou a trabalhar. E sem a paridade, além de se aposentar ganhando menos, o professor não vai obter o reajuste de quem está na ativa. Essa é uma grande derrota dos direitos”, destaca. Na prática, para receber uma aposentadoria equivalente a 100% das médias dos salários, será necessário trabalhar por 40 anos.

“Ficaremos à míngua”, sentencia a educadora, ao apontar que o desamparo ao trabalhador ocorre justamente na velhice, quando ele mais necessita de proteção social. “A reforma impossibilita uma vida digna depois da aposentadoria. Estamos fazendo o máximo para esclarecer nossa categoria de que isso é um roubo. Essa reforma é para os bancos, que vendem a ilusão de que é importante implementar uma previdência complementar”, avalia. Educadoras como Solange possuem regras próprias para aposentadoria não por privilégio, mas porque a profissão apresenta características que impactam sobre suas condições de saúde. “A atividade em si requer muitas horas em pé. Também levamos serviço para casa, pois precisamos planejar as aulas e corrigir trabalhos e provas”, descreve. Além disso, existe a sobrecarga emocional e as tensões da sociedade que vão para dentro da sala de aula. “A gente lida diretamente com seres humanos, não trabalhamos com máquinas. Quanto mais violenta a sociedade fica, mais isso ecoa em diferentes espaços, e a escola é um desses locais em que a gente sente a violência eclodir”, analisa. Entre os problemas de saúde mais frequentes em professores, estão estresses emocionais, varizes, dores na coluna e deficiências na audição e na voz.

Realidade dos educadores

Outro fator que reflete no dia a dia dos professores é a falta de investimentos na educação. Solange ressalta que a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 95 — que congelou por 20 anos os investimentos na área — levou a um cenário de atraso nos salários, escassez de professores e falta de materiais didáticos. “Nem todas as escolas estão em boas condições. Algumas conseguem graças à comunidade, que faz o papel do Estado, por meio de festas, rifas e doações. Também existem escolas que estão em áreas de conflitos, com professores sendo agredidos”, relata. Com menos recursos, outra consequência é a ausência de profissionais fora da sala de aula, que atuam no apoio pedagógico e nas bibliotecas — o que gera ainda mais sobrecarga naqueles que restaram.

Além das dificuldades inerentes à profissão, os educadores narram que são obrigados a lidar cada vez mais com situações de pressão motivadas por perseguição ideológica ou política. “Somos colocados como algozes, doutrinadores ou criaturas perigosas. A sociedade que nos apoiava já começa a ter alguns segmentos que acham que somos nocivos, que podemos ‘doutrinar’ seus filhos”, aponta. Ela se refere a iniciativas que limitam a liberdade de expressão em sala de aula, como o incentivo para que alunos gravem os professores como forma de coação. “A professora em sala de aula tem que conquistar a atenção dos alunos com seu maior empenho e criatividade, mesmo que ela esteja devendo no banco e com salários atrasados”, ressalta.

Professora de História há 3 anos na rede pública de Minas Gerais, na cidade de Cataguases, na Zona da Mata mineira, Mariana de Oliveira narra que as condições de saúde mental são as que mais têm impactos negativos no cotidiano dos profissionais de educação. “É um trabalho difícil e desgastante, que traz uma série de problemas de saúde de ordem física e principalmente mental”, afirma.
Segundo ela, em uma sociedade marcada por desigualdades e por contextos de falência familiar, é comum entender a profissão de educador como uma espécie de “abnegação e amor incondicional”, transferindo toda a responsabilidade na educação de uma criança ou um jovem para os docentes e a escola. “É um peso muito grande para carregar e nós somos humanos! Somado a isso, a gente trabalha em uma escola sem recurso, que literalmente conta as moedas para dar o mínimo para os alunos. Pagamos do nosso próprio bolso muita coisa para tentar deixar a aula mais atrativa”, pontua.

Aos 28 anos, com mestrado em História Colonial pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Mariana acredita que a educação pode ter um papel transformador na vida das pessoas — “assim como fez com a minha”. “A educação me criou vivências que eu jamais imaginei ter, sendo filha de família de classe média baixa e ainda no interior”, reflete. No entanto, segundo ela, ao invés de fortalecer a escola pública, o que tem sido estimulado é o desrespeito e a coação em relação aos profissionais — pela primeira vez, ressalta a professora, a educação é vista como inimiga. “A escola deveria ser um lugar de expansão da mente e está cada vez mais se tornando um depósito de pessoas insatisfeitas”, reflete. Mesmo com as dificuldades, ela considera que no percurso do aprendizado é possível descobrir saídas e provocar reflexões.

Na mesma escola onde Mariana leciona história — a Escola Estadual Professor Clóvis Salgado, em Cataguases (MG) —, Mariele Furtado dá aulas de língua portuguesa. Também aponta problemas como turmas lotadas, salários atrasados ou parcelados, salas de aula sem estrutura e falta de apoio das famílias. Para ela, as mudanças nas regras de aposentadoria de professores fazem parte de um contexto de desvalorização da profissão — e deve levar ao adoecimento daqueles que serão obrigados a trabalhar mais, por mais tempo. “O que justifica as regras especiais de aposentadoria do professor é, sobretudo, o caráter intelectual e formador da profissão, o que demanda um desgaste tanto físico quanto emocional. Ter o direito de se aposentar com um menor tempo é uma forma de garantir a qualidade do trabalho docente e valorizá-lo”, pondera.

Com 10 anos de profissão e 32 de idade, ela se sente desvalorizada como profissional. “Não observo nenhuma preocupação, seja do governo ou da sociedade em geral, com o que pode acontecer com os professores que terão que ficar mais tempo em sala de aula”, lamenta. Porém, ela não perde a esperança no papel transformador da educação. “Tenho certeza de que continuaremos a lutar por uma sociedade melhor, mesmo que tenhamos que enfrentar todos esses desafios”, conclui.

Direito, não privilégio

O céu ainda está coberto de estrelas quando Sandra Pereira de Faria, 49 anos, acende o fogão para esquentar a água do café, que ajuda a cortar o sono e a aragem da madrugada. O marido, Edvar Marçal de Jesus, prepara-se para vencer a escuridão em busca do gado a ser conduzido até o curral, onde a família tira o leite enviado à cooperativa de pequenos agricultores. Antes levantavam por volta de 5h da manhã, mas o plantio de uva — atividade na qual a família se aventurou para diversificar a produção no sítio — fez com que o serviço aumentasse e eles passassem a acordar por volta de 4h. “Aqui não tem férias nem feriado”, conta Sandra, que durante toda sua vida viveu no campo.

Por volta de 9 horas, já terminam a lida com as vacas. É hora de botar a silagem no cocho, transportar o leite, tratar do porco e das galinhas. Às 10h30, Sandra já está de volta à casa para preparar o almoço, enquanto o marido e o genro cuidam do parreiral. Na rotina atribulada da roça, ela ainda encontra tempo para se deliciar com o abraço de seus dois netos, Heitor, de 2 anos, e Mariana, de 4 — que ela chama de “amores de sua vida”. O sítio em que Sandra mora com a família — o marido, a filha mais nova, o genro e os dois netos — fica a 52 quilômetros de Silvânia, cidade de Goiás com cerca de 20 mil habitantes. A família é assentada pela reforma agrária no terreno de 39 hectares; além do leite, eles produzem ovo, banana e milho — e agora veio o sonho do cultivo de uva.

Sandra conta que começou a trabalhar aos 9 anos de idade, como boia-fria, e hoje já soma 40 anos de serviço no campo. Ela vê com preocupação as mudanças na aposentadoria rural, propostas pelo governo com a reforma da previdência. “Encaro com muita preocupação. O trabalhador rural não tem hora para levantar, não tem repouso semanal ou férias, não tem décimo terceiro. A gente está exposto à chuva, ao sol, aos agrotóxicos, a todas as intempéries”, aponta. Para ela, a aposentadoria rural é uma forma de compensação pelo serviço desgastante na roça.

Atualmente assalariados rurais, agricultores familiares e pescadores artesanais têm direito à chamada condição de segurado especial da Previdência Social, para a qual precisam comprovar 15 anos na atividade — além de contar com 60 de idade, no caso de homens, e 55 para mulheres. Em lugar dos 15 anos de comprovação, a proposta da “Nova Previdência” indicou a exigência de 20 anos de contribuição e a idade mínima de 60 tanto para homens quanto para mulheres.

“A proposta tem a intenção de atacar a classe trabalhadora e os mais vulneráveis. Se ela for aprovada como está, poderá trazer pobreza e miséria para o campo”, ressalta Edjane Rodrigues, secretária de Políticas Sociais da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag). Ela ainda destaca o impacto que essa mudança teria na economia de pequenas e médias cidades brasileiras, pois em 45% dos municípios do país, de acordo com dados da Contag, a soma das aposentadorias rurais é maior do que o dinheiro recebido do governo federal por meio do Fundo de Participação dos Municípios.
Não um privilégio, mas um direito que reconhece as dificuldades enfrentadas por essas pessoas no trabalho com a terra — é o que justifica a condição de segurado especial para os trabalhadores do campo, segundo Edjane. “O trabalho começa mais cedo, ele é mais penoso, e está condicionado a uma série de fatores. Na roça pode acontecer a perda da produção por falta ou excesso de chuva, por presença de pragas, e esses trabalhadores muitas vezes ainda precisam enfrentar dificuldades para comercializar a sua produção”, explica. Segundo ela, mudanças na previdência rural poderiam acarretar impactos negativos na economia, além de aumentar o êxodo rural. “Se as pessoas saírem do campo por causa da falta de oportunidades e de políticas públicas, não teremos como garantir a produção de alimentos saudáveis para a população”.

Por terem em geral uma jornada mais extensa do que a dos homens, as mulheres se aposentam mais cedo, como explica Edjane. No campo, segundo estimativa da Contag, elas trabalham, em média, 51 horas por semana, enquanto os homens têm uma jornada média de 43 horas semanais. Cuidar da casa e dos filhos é uma tarefa que elas dividem com o trabalho na roça. “Quantas mulheres acima de 60 anos hoje, que já estão aposentadas, cuidam dos filhos de suas filhas, porque estas precisam trabalhar? Uma das poucas políticas que reconhece essa divisão sexual do trabalho é a previdência social”, constata ela, que é filha de uma agricultora assentada pelo Programa Nacional de Crédito Fundiário, em Alagoas. O relato de Sandra confirma essa realidade: “Se brincar, as mulheres trabalham mais do que os homens. Ajudam em todas as tarefas e ainda vão para a roça”, afirma.

Edjane pontua também que a previdência rural tem a função de amparar o trabalhador do campo, que sempre teve dificuldades para garantir seus direitos. “O governo fala muito que a expectativa de vida melhorou, mas a gente precisa levar em conta que estamos vivendo mais graças a políticas que melhoraram nossa condição de vida, dentre elas a previdência social”, observa. Criada com a Constituição de 1988, a Previdência Rural buscou resgatar uma “dívida histórica” com essa categoria, na visão de Jane Berwanger, advogada especialista em direito previdenciário do Rio Grande do Sul — como Radis já destacou na edição 173. “Até 1988 a inclusão previdenciária dos rurais era bastante tímida: só o chefe de família tinha direito e o benefício era de salário mínimo. Além de recuperar essa dívida, também se buscou valorizar aqueles que produzem os alimentos”, analisa.

Uma nova proposta foi encaminhada pelo relator da PEC 06/2019, deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), responsável por analisar a reforma da Previdência na Comissão Especial da Câmara dos Deputados: diferentemente do que propunha o governo, o relator propôs (13/6) a manutenção da idade mínima para aposentadoria rural em 55 anos para mulheres e 60 para homens, com a exigência de contribuição sobre a comercialização da produção fixada em 15 anos para mulheres e 20 para homens. Para Edjane, esse recuo foi resultado das mobilizações e pressões do movimento dos trabalhadores rurais, mas não significa que estes não sofrerão com mudanças. “Estabelecer 20 anos de contribuição para os homens rurais trará um grande impacto negativo, tanto para os agricultores familiares quanto para os assalariados rurais. Esse ponto ainda nos preocupa”, avalia.

Além da jornada dupla em casa e na roça, Sandra também participa ativamente de reuniões no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Silvânia — e a reforma da previdência tem sido uma pauta constante nos debates com comunidades rurais e quilombolas da região, como ela conta. Para a agricultora, a previdência é um alento para o povo do campo, que “tem uma vida tão difícil”. “As pessoas do meio rural, quando se aposentam, não vão para a cidade, eles continuam na roça. A aposentadoria é um complemento para nossa vida”, reflete. (L.F.S.)

Publicado originalmente em Radis.

Obs: O autor é professor, escritor e ativista em direitos humanos, desde Passo Fundo, RS

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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