Eduardo Hoornaert 1 de agosto de 2019

O maior erro do conhecimento
consiste em confundir proposições
(Wittgenstein)

Em seu filme ‘Andrei Rublev’ (1966), o cineasta russo Tarkovski conta que Rublev (início do século XV), excelente pintor de ícones bizantinos, ao ser convidado pelo Patriarca de Moscou a pintar o quadro do Último Juízo para a Catedral da Anunciação no Kremlin, não consegue executar a obra. Não consegue pintar um Jesus a condenar os pecadores a um inferno sem fim. Um século depois, em Roma, Michelangelo não vê problema nisso. Convidado a pintar o mesmo quadro para a Capela Sistina no Vaticano, pinta um Jesus que, com um só gesto de seu poderoso braço, condena uma parcela da humanidade ao inferno, enquanto eleva a outra parte à eterna felicidade do céu. Ao contrário de Michelangelo, Rublev não suporta a imagem de um Jesus que condena ao inferno.

Pelo que sabemos, Rublev não foi condenado pelo Patriarca de Moscou por não conseguir pintar um Jesus ‘Juiz dos vivos e dos mortos’, nem Michelangelo incorreu em censura eclesiástica por pintar um Jesus que condena os pecadores às penas do inferno. Como explicar sentimentos tão divergentes acerca de Jesus? Aqui dei apenas um exemplo, entre muitos, que podem ser aduzidos par mostrar que, afinal, o conhecimento humano acerca de Jesus é – para usar uma expressão do pensador polonês Zygmunt Bauman – ‘líquido’, não ‘sólido’. É como água derramada num copo: assume a forma do copo. Se a derramar sobre a mesa, ela vai assumir a forma da mesa antes de se espalhar pelo soalho e assumir a forma deste. Se você, pelo contrário, colocar um biscoito sobre a mesa, ele vai conservar sua forma: é sólido. Ora, raciocina Bauman, o conhecimento humano se adapta aos ‘recipientes’ (tempos, espaços, intencionalidades, táticas, contextos, mentalidades). Como já dizia Tomás de Aquino no século XIII: ‘o que se recebe toma a forma do recipiente’ (quod recipitur ad modum recipientis recipitur). O ‘recipiente’ Rublev recebe a mensagem de Jesus de modo diferente do ‘recipiente’ Michelangelo, e isso se deve a diversos fatores. Bauman escreveu sucessivos livros para demonstrar isso: ‘Amor líquido’, ‘Medo líquido’, ‘Modernidade líquida’, ‘Tempos líquidos’, ‘Vida líquida’, ‘Vigilância líquida’, além de ‘44 Cartas do mundo líquido moderno’ (Zahar, Rio de Janeiro, 2011).

O engodo do conhecimento sólido.

Uma das maiores conquistas filosóficas do século XX, talvez a maior, consiste na ‘reviravolta linguística’ (veja Manfredo de Oliveira, Reviravolta linguístico-pragmática na filosofia contemporânea, Loyola, São Paulo, 1997). Filósofos linguistas como Ricoeur, Bakhtin, Chomsky, Wittgenstein e outros criticam a epistemologia ocidental tradicional por não prestar a devida atenção à ‘fluidez’ do conhecimento humano. Em suas ‘Investigações Filosóficas’ de 1953, por exemplo, o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein repete, ao longo de 693 aforismos e dos mais diversos modos, que as enunciações humanas não têm a solidez que se lhes costuma atribuir. Os homens não emitem conceitos estáveis, válidas além do tempo e do espaço. Suas enunciações expressam ordens, desejos, exortações, sentimentos, intuições, imaginações, enigmas, poesias, artes, cálculos, pedidos, agradecimentos, orações, meditações etc., mas não verdades eternas (Wittgenstein, L., Investigações Filosóficas, Vozes, Petrópolis, 2005, n. 23, p. 27). A linguagem humana é feita de significados provisórios e passageiros. Isso significa que sua correta significação depende da interpretação do contexto em que está sendo pronunciada. Quando um pedreiro grita: ‘tijolo!’, ele não ‘define’ nada. Ele quer que o servente lhe passe um tijolo. A frase ‘bom dia!’ não diz nada acerca do dia, assim como ‘creio em Deus!’ costuma significar ‘mereço confiança’ e  a frase ‘tenho fome’ costuma expressar um pedido. Nas falas do dia-a-dia, perceber essa liquidez do discurso é fácil, mas quando temos diante de nós letras escritas (principalmente as que provêm de muitos tempos atrás, de culturas que não são mais as nossas), a interpretação fica difícil. É de se estranhar que grandes filósofos da tradição ocidental, como Platão, Aristóteles ou Agostinho, não tenham dado a devida atenção a esse tipo de problema. Pelo contrário, eles deram a impressão que o ser humano fosse capaz de adquirir um conhecimento sólido e de formular ‘conceitos’ capazes de ‘captar’ definitivamente as coisas, por meio de suas palavras. Mesmo Descartes e a maioria dos filósofos modernos deixaram de premunir as pessoas contra o perigo de palavras aparentemente sólidas, mas que na realidade são fluidas, às vezes enganosas, outras vezes tão confusas que levam as pessoas a um ‘labirinto de palavras’, das quais não conseguem sair.

Nosso conhecimento de Jesus não escapa a essa regra. É líquido.  O escritor americano Jaroslav Pelikan publicou em 1985 um livro que apresenta uma impressionante variedade de imagens de Jesus, ao longo dos tempos, muitas delas contraditórias: (Pelikan, J., A imagem de Jesus ao longo dos séculos, Cosac & Naify, São Paulo, 2000): vencedor ou vencido; sofrendo ou glorioso em cima da cruz; caçador ou protetor de hereges; animador da Cruzada ou contestador de qualquer tipo de violência; aliado dos poderosos ou defensor dos pobres; opressor ou libertador; militante, onipotente, fraco, ortodoxo, católico, protestante, espírita, evangélico, pentecostal, africano, budista, hinduísta. Imagens líquidas, contemporâneas, passageiras e aproximativas, condicionadas por tempo e espaço, por pontos de vista situados, provisórios, passageiros. Dentro desse acúmulo de imagens líquidas, proponho que, por alguns instantes, contemplemos três que têm um significado histórico relevante: o Jesus ressuscitado das primeiras gerações; o Jesus definido das igrejas estabelecidas e o Jesus ‘além de Jesus’ que nos desafia hoje.

Jesus ressuscitado.

Aproximadamente vinte anos após a morte de Jesus, o apóstolo Paulo escreve:

Sim, eu lhes transmito o recebi (acerca do destino de Jesus);
O Ungido morreu por nossas faltas
Conforme as Escrituras.
Foi sepultado
E, no terceiro dia, ressuscitou.
Conforme as Escrituras.
Ele foi visto por Cefas e depois pelos Doze
Depois foi visto por mais de quinhentos irmãos reunidos.
Depois foi visto por Tiago, depois por todos os apóstolos
E, para terminar, foi visto também por mim (1Cor 15, 3-8).

Nesse texto, Paulo afirma por três vezes consecutivas que Jesus ‘foi visto’ (em grego ‘ôfthè’). Cefas, os Doze, os quinhentos irmãos reunidos, Tiago, os apóstolos e por fim o próprio Paulo. Todos ‘viram’ Jesus. É o que Paulo escreve. Lembrando Wittgenstein, podemos nos colocar o seguinte questionamento: será que o depoimento de Paulo deve necessariamente ser interpretada como uma afirmação? Por que ele escreve que Jesus foi visto por ‘quinhentos irmãos reunidos’, o que é claramente um exagero? Por que ele insiste em escrever que Jesus foi visto pelos personagens mais representativos (Cefas, os Doze, Tiago, os apóstolos, ele mesmo)? Aqui não se trata de um desafio expresso na forma de uma afirmação? Algo como ‘você ainda não viu? Você é dos incrédulos?’.

Pois, como nos informam os primeiros textos, há entre os discípulos de Jesus duas reações diante da morte do líder e das possibilidades de sobrevivência do movimento, uma de ceticismo (ou ‘incredulidade’, como consta nos textos) e uma de coragem (ou ‘entusiasmo’, segundo os textos). Os incrédulos aparecem em diversos tópicos dos evangelhos e das cartas de Paulo. Mesmo Pedro, o mais próximo de Jesus entre os discípulos, fica decepcionado com o desenlace da vida de Jesus, como se lê no último capítulo do Evangelho de João. Ele volta à Galileia e diz, decepcionado: ‘eu vou pescar’. Seus companheiros, igualmente desiludidos, respondem: ‘nós vamos com você’ (Jo 21, 3.Esse último capítulo do evangelho de João é um discurso dirigido aos céticos). Há ainda, no mesmo Evangelho, o caso de Tomé, ‘o incrédulo’ (Jo 20, 24-29: ‘felizes os que não veem, mas confiam’ (aqui, a melhor tradução do particípio grego é ‘confiar’, não ‘crer’). No evangelho de Lucas encontramos a história dos discípulos de Emaús, que retornam, igualmente decepcionados, para sua aldeia natal (Lc 24, 13-53). Essa narração de Lucas, redigida por volta do ano 80, mostra como o ceticismo é endêmico ao primeiro movimento de Jesus. E no final do Evangelho de Lucas vem mais um discurso contra os céticos. No Evangelho de Tomé, cuja primeira versão provavelmente já circula nos anos 50, se encontram diversos aforismos em tom pessimista. Enfim, um sentimento difuso de pessimismo ronda o movimento. Como explicar Jesus derrotado e vergonhosamente humilhado na tortura da cruz? A crucifixão é a suprema vergonha. Ninguém olha para um crucificado, que fica abandonado a cães e aves de rapina.  Como explicar Gólgota, quando o evangelista Marcos escreve que o próprio Jesus chega a desesperar na hora da morte? (Mc 15, 34: o grito de Jesus parece um grito de desespero). Como suportar tamanha vergonha? Eis um sentimento negativo persistente que, como realça Horsley, poderia ter levado o movimento ao desaparecimento. Veja Horsley, R. A., ‘Jesus e a espiral da violência: resistência judaica popular na Palestina romana’ (Paulus, São Paulo, 2010). Também, do mesmo autor com Hanson, J.S., ‘Bandidos, Profetas e Messias: Movimentos populares no Tempo de Jesus’ (Paulus, São Paulo, 1995), onde se informa que diversos movimentos proféticos do tempo de Jesus desapareceram por falta de perspectiva.

Mas existe uma outra corrente, em vivo contraste com esses incrédulos. São discípulos que superam os sentimentos negativos causados pela morte de Jesus. Eles gesticulam, gritam, se exaltam, choram e dizem coisas que ninguém entende, como se verifica no capítulo 14 da Primeira Carta de Paulo aos Coríntios. Aí surpreendemos uma reunião particularmente agitada de discípulos ‘entusiastas’, onde se combate psicologicamente o sentimento difuso de pessimismo que ronda a geração que vivenciou a horripilante morte de Jesus. Paulo interpreta esse entusiasmo quando afirma: a morte não tem a última palavra. Deixar-se levar pelo abatimento é precipitar o desaparecimento do movimento. Está na hora de demonstrar coragem. Essa leitura combina com o que lemos nos versículos 12-14 do mesmo capítulo 15 da Carta aos Coríntios:

Quando gritamos que o Ungido se levantou da morte,
como alguns de vocês dizem que não existe ressurreição?

Aqui os entusiastas gritam. Paulo usa o verbo grego ‘kèrussô’ (gritar, proclamar em voz alta). Esses gritos significam o rechaço do argumento ‘não existe ressurreição’; ‘ninguém nunca viu alguém se levantar da morte’. Não se trata de raciocinar ou argumentar, trata-se de animar os colegas e não ceder a sentimentos de derrota. A morte não pode ter, de maneira nenhuma, a última palavra. A memória de um Jesus vivo tem de ser preservada a todo custo, pois ela é fundamental para a sobrevivência do movimento.

Nós sabemos que o Ungido, já que ele ressuscitou, não morre mais.
A morte não exerce mais seu poder soberano sobre ele’ (Rm 6, 9).
O Sopro, que é vida,
em Jesus o Ungido nos libertou
do pecado e da morte (Rm 8, 2).

Eis o imperativo categórico que está na origem do movimento de Jesus: crer na ressurreição significa não desfalecer diante dos obstáculos, das dificuldades, das ameaças de morte, é prosseguir no caminho de Jesus.

Os profetas de Israel sempre interpretaram a ressurreição nesse sentido exortativo, imperativo até. Ezequiel (entre 585 e 568 aC) vê os ossos ressequidos de guerreiros vencidos se transformar em exército temível:

Filhos de Adão, escutem:
eu abro seus sepulcros,
eu os faço sair de seus sepulcros,
vocês, meu povo.
Eu lhes darei meu sopro.
Eu, Ihwh, faço o que falo (Ez. 37, 1-14).

O profeta Daniel tem a mesma uma visão: os macabeus que morrem na resistência contra o rei sírio Antíoco IV, não descem ao sheol, o ‘país da poeira’, mas brilham como estrelas ‘no esplendor do firmamento’:

Surge então o grande príncipe Miguel, aquele que está acima dos filhos de seu povo. É um período de angústia como nunca se viu. Mas seu povo e todos que estão inscritos no livro são poupados. Entre os que dormem no país da poeira muitos se levantam, uns para a vida eterna e outros para a vergonha, para o horror eterno. Os sábios brilham no esplendor do firmamento. Os que trouxeram muitos para a justiça cintilam como estrelas para sempre (Daniel, 12, 1-3).

O profeta Isaías diz o mesmo:

Os mortos viverão de novo
Seus corpos se levantarão
Acordem! Gritem de alegria!
Vocês que jazem na cinza! (Is 26, 18-19)

Podemos concluir: o discurso da ressurreição não é de ordem descritiva nem definitória, mas exortativa e até imperativa. Serve para animar os companheiros a lutar e aguentar as maiores oposições, atravessar as maiores desilusões. Para falar como Bauman: é uma ressurreição ‘líquida’, expressão de um momento particularmente difícil do movimento de Jesus, em que era preciso alimentar uma confiança em Deus que arrastasse as pessoas para além do abatimento, do medo e do sentimento de derrota. O corpo abjeto do crucificado transfigura-se no corpo luminoso do ressuscitado.

Jesus definido.

Os tempos passam e, no ano 325, os bispos se reúnem no primeiro Concílio Ecumênico da história do cristianismo. São convidados pelo próprio Imperador, que os acolhe na sua Residência de Verão em Niceia, perto de Constantinopla. Muito lhes impressiona a recepção por parte do Imperador e de dignitários de sua Corte, pois são homens do povo, agora tratados como se fossem senadores do Império, com direito a honras militares e protoclares. Podemos presumir que entre eles haja analfabetos, pois a população em geral, naqueles tempos, é iletrada. É claro que eles se fazem acompanhar de secretários capazes de lidar com letras, ler as Escrituras Sagradas, falar a linguagem da Corte e redigir textos no devido estilo da época. Muitos deles provenientes da associação de clérigos recentemente formada nos recintos da novíssima e grandiosa Basílica Hagia Sofia em Constantinopla (desde 313).

São esses bispos e seus seletos secretários que, em Niceia, prendem Jesus em suas definições. No quadro ‘Coroação de Espinhos’, do pintor holandês Jerônimo Bosch (o original fica na National Gallery em Londres. Existem duas cópias, uma em Antuérpia e outra no Museu do Prado em Madrid), a rabino segura com sua mão direita as mãos de Jesus, enquanto sua mão esquerda segura um rolo de Escrituras Sagradas. Ele encara Jesus com arrogância, como quem diz: ‘o que você tem a dizer agora? Está em nossas mãos’. O pintor consegue expressar, melhor que qualquer palavra, o que aconteceu em Niceia: Jesus preso nas mãos de sacerdotes.  São eles que o definirão por longos séculos, por meio de seus catecismos copiados e recopiados, mais tarde impressos e reimpressos, com perguntas e respostas a serem decoradas por crianças e jovens nas escolas e centros paroquiais.

Niceia fala em palavras definitórias e grandiloquentes: ‘Deus todo-poderoso, Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro’. Mais tarde virão os superlativos ‘Santíssima Trindade’, ‘Maria Santíssima’ e ‘Santíssimo Sacramento’. A Igreja se enche de Santidades e Eminências, Excelências e Dignidades. Adota-se o estilo pomposo, triunfal, superlativo e arrogante da linguagem oficial romana.

E não se trata só de linguagem, mas da totalidade de um novo modo de inserção na sociedade e na vida das pessoas. Na arquitetura e na liturgia, nas vestes clericais e na formulação dos textos, na cotidianidade das paróquias, na iconografia e nas artes, na formação das lideranças, no ensino da moral, no acompanhamento diário da vida das pessoas e até na marcação de tempos e espaços transparece um Jesus que está nas mãos da igreja: ‘nós o definimos, nós falamos em seu nome, ditamos o que ele tem a dizer, pois ele é nosso’.

Eis o Jesus de Niceia, que se apresenta ‘sólido’, mas na realidade é ‘líquido’, pois expressa a histórica (e, portanto, passageira) tomada de poder na Igreja por parte de uma corporação. A solidez de Niceia é uma ilusão. Na realidade, a definição de Jesus, tal qual consta no Credo, é limitada por um tempo (século IV dC) e um espaço (Niceia, Constantinopla, a Corte). Uma definição líquida, como todas as definições criadas pelo ser humano. Por mais que o patriarca alexandrino Atanásio se empenhe para que todas as igrejas locais se tornem ortodoxas e que as autoridades imperiais apoiem essa nova ortodoxia, a fragilidade da proposta se expressa na violência usada contra quem porventura ouse propor outro modo de se falar em Jesus fora da ‘ortodoxia’. Ele é logo qualificado de herege (lembro aqui que o Concílio de Niceia está centrado na luta contra o presbítero alexandrino Ário, o herege), impedido de usar as plataformas oficiais da Igreja e, com o tempo, exposto à fogueira. Mesmo assim, a série de heresias que se sucedem ao longo dos tempos é impressionante (Le Goff, J. [org.], Hérésies et Sociétés, Mouton & Co, Paris, 1968) e revela que o discurso de Nicéia não suporta diálogo, mas exige obediência e repetição mecânica das mesmas palavras, ao longo dos tempos. Nicéia não se direciona à inteligência das pessoas. Não explica, por exemplo, por que Jesus foi crucificado. O texto diz que ele morreu ‘por nossos pecados’ e ‘para nos salvar’, mas isso não explica por que motivos as autoridades do tempo (romanas e judaicas) o condenaram à morte e o torturaram de forma tão horrível.

Foi com o Credo nos lábios que cristãos europeus, na época dos colonialismos, praticaram os mais horríveis crimes contra a humanidade de que se tem memória. Eliminaram populações inteiras e escravizaram imensos contingentes humanos, sempre justificando suas ações ‘em nome da verdadeira fé’. Durante esses séculos todos, as mais altas autoridades eclesiásticas, que se mostravam tão ciosas em preservar e defender o dogma, não disseram nada a respeito da eliminação de povos e escravização de outros tantos. Só quando já pertencia ao passado, em 1965, a escravidão foi condenada oficialmente pela Igreja. No parágrafo 27 do documento ‘Gaudium et Spes’ do Concílio Vaticano II, em meio à longa lista de ‘coisas infames’ a serem abandonadas, como homicídio, suicídio, aborto, eutanásia, prisões arbitrárias, deportações, prostituição, etc., a escravidão é mencionada, como de passagem, sem destaque.

Jesus além de Jesus.

No início destas páginas evoquei o caso de dois artistas que manifestam opiniões contrárias sobre Jesus. Assim voltamos à ‘liquidez’, à subjetividade líquida. Rublev não consegue pintar um Jesus Último Juiz, enquanto Michelangelo nisso não vê nada demais. O último vive imerso numa tradição de séculos acerca de um Jesus que ‘virá do céu para julgar vivos e mortos’, como reza o catecismo, enquanto o primeiro cava mais fundo e alcança o homem de Nazaré, que perdoa ‘setenta vezes sete vezes’, convida cobradores de imposto a tomar a refeição em sua casa, não condena a mulher adúltera, deixa as ervas daninhas crescer com o bom trigo, trata todo mundo de irmão e irmã, conversa com a mulher samaritana, considera Deus seu pai, reza pelos inimigos e não condena ninguém.

Pode-se dizer que Rublev enxerga Jesus (de Nazaré) além de Jesus (Cristo), ou seja, Jesus da primeira tradição além de Jesus da tradição dominante, enquanto Michelangelo fica enredado nessa última. Acontece que, depois de tantos séculos de tradição dominante a respeito de Jesus, enxergar o Jesus da primeira tradição costuma provocar, num primeiro momento, um sentimento de desencanto. Parece que Jesus sai diminuído, rebaixado. Ele perde a auréola, o trono, o cetro, as vestes sacerdotais, a glória, louvores e adorações, genuflexões e reverências.  Mas essa é uma primeira impressão. Jesus de Nazaré tem contornos bem mais definidos que Jesus Cristo, que para a maioria das pessoas não significa nada além de uma vaga evocação de ternura, paz e amor, nada além de uma herança cultural. Jesus de Nazaré, pelo contrário, significa compartilhar a mesa com todos e todas; trabalhar a favor dos desfavorecidos; não condenar ninguém; enfrentar os poderosos deste mundo; ver em Deus um pai etc. Jesus de Nazaré se posiciona diante da sociedade, Jesus Cristo nem sempre. Daí os momentos de controvérsia com sacerdotes, letrados e fariseus, durante as breves permanências de Jesus galileu em Jerusalém, como se verifica nos primeiros onze capítulos do Evangelho de João. Um abismo intransponível se abre entre seu modo de ser e o da sociedade dominante.

Repito: a passagem de Jesus Cristo a Jesus de Nazaré não é coisa fácil. Além das dificuldades acima apontadas, há uma questão técnica, que analisei em meu livro ‘Em busca de Jesus de Nazaré’ (Paulus, São Paulo, 2016): só conhecemos Jesus de Nazaré de forma indireta, alterada. Não há como chegar diretamente a ele, não temos condições de falar algo a seu respeito de forma absoluta e definitiva. O processo redacional traz inevitavelmente consigo uma alteração, que não deve ser visto necessariamente como adulteração. Nosso conhecimento de Jesus de Nazaré passa pelos olhares de Paulo, Hebreus, Marcos, Lucas, Mateus, João, e em seguida por uma infinidade de olhares ao longo da história. Seguir esses meandros não é coisa fácil, mas necessária para quem se propor a orientar comunidades cristãs nos dias de hoje.

Mas existe um caminho mais curto, menos complicado. É o caminho do povo fiel, que foi trilhado por Rublev e tantos outros, místicos ou não, que por intuição sabiam que os sistemas eclesiais não conseguem prender Jesus por inteiro e que ele sempre escapa, como escapou, sem dizer uma única palavra, das garras do Cardeal Grão Inquisidor no romance ‘Os Irmãos Karamazov’ de Dostoievski. O Jesus que escapa é capaz de fascinar as pessoas de hoje, como ele fascinou os aldeões da Galileia. Em seu livro ‘Resistência e Submissão’ (Editora Sinodal, São Leopoldo, 2014), Dietrich Bonhoeffer escreve: ‘O dia virá em que a Palavra de Deus será falada de tal modo que as pessoas se sentirão interpeladas. Será uma nova linguagem, provavelmente não religiosa, mas libertadora e redentora, como a linguagem de Jesus. As pessoas ficarão admiradas e seduzidas pela força dessa linguagem. Então o mundo se renovará’.

Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”

Explicação do painel(foto)

O autor é o primeiro à direita.

“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.“

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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