Durante uma consulta médica, o doente deve ser esmiuçado por nossos olhos a partir do momento em que entra na sala. Uma história clínica bem colhida é indispensável para a formulação das hipóteses diagnósticas e direcionamento dos exames complementares. Assim que o paciente sentou, perguntei-lhe o que estava havendo com ele. A ansiedade engasgou-lhe a voz e as palavras brotaram à altura da situação: volume baixo e interrompidas pela respiração.

“De um ano para cá estou muito doente. Não tenho fome, emagreci dez quilos, o intestino anda solto, sinto frio e febre ao entardecer e a cama fica molhada de suor durante as madrugadas. Venho perdendo forças nos braços, nas pernas e não consigo mais arrumar as vitrines da minha loja. Não sou de ofender ninguém, mas os dois médicos de minha cidade nunca me disseram o que tenho, e parecem aborrecidos com minhas visitas a cada sete ou quinze dias. Sei que preciso de ajuda e como não obtive nenhum resultado favorável até agora, estou aqui em suas mãos”.

Parecia ter setenta e cinco anos. Sua face exprimia abatimento, ansiedade e não trazia nenhum sorriso, mesmo tímido ou fugaz. Seus gestos delicados e suas palavras calculadas traduziam uma pessoa atenciosa e educada. A despeito de amplo interrogatório e cuidadoso exame físico, não tínhamos conhecimento seguro do que se tratava devido aos sintomas não virem de apenas um órgão. As manifestações sistêmicas e a distribuição da gordura corporal eram compatíveis com doença crônica debilitante e tive dificuldades em selecionar uma lista, com poucos nomes, de possíveis causas do quadro clínico. Sugeri a necessidade de internação hospitalar por alguns dias com a finalidade de apressar o diagnóstico e instituir tratamento adequado. Meu poder intuitivo de perceber as doenças dirigia minhas ações para uma enfermidade de evolução lenta e progressiva, potencialmente desastrosa e frustrante de se lidar. No hospital, marcado sob forte pressão, por familiares que exigiam um diagnóstico rápido, requisitei, de forma exagerada, exames complementares para doenças malignas do sangue, do intestino, dos pulmões, da próstata e doenças autoimunes, sem esquecer que um erro de interpretação de um sintoma ou de um exame poderia ser o caminho para insucesso no diagnóstico e, consequentemente, na conduta terapêutica.

Os inúmeros resultados nada mostraram. Abatido, pelo esforço, inicialmente em vão, sentia-me frustrado por não ter esclarecido a doença em um período curto de tempo e parti à procura de doença infectocontagiosa. No dia seguinte, logo cedo, corri para avaliar o paciente e após rápida leitura dos novos dados, fui surpreendido com a identificação de dois vírus: o da imunodeficiência humana (HIV) e o da hepatite B. O sol começava a brilhar e nada podia ser mais gratificante para o médico do que descobrir uma doença oculta. Havia necessidade de interrogar, mais uma vez, o paciente de forma equilibrada e humana sobre um tema tão complexo.

Expliquei-lhe que a hepatite B é bem conhecida, entretanto, os primeiros casos da AIDS haviam sido descritos em junho de 1981 e ainda estávamos aprendendo sobre a doença. A presença do HIV na corrente sanguínea e no sêmen é responsável por sua transmissão pelo contato sexual (anal, vaginal ou oral) e pelo uso compartilhado de agulhas ou por transfusão de sangue e derivados. Nos homens homossexuais ou heterossexuais com múltiplas parceiras, a incidência é mais elevada. De imediato, ele não reconheceu nos esclarecimentos qualquer justificativa para sua doença. Afirmou que as explicações eram incompatíveis com seus princípios religiosos. Atormentado, deixou perceptível um desequilíbrio nos traços de sua fisionomia. Seus movimentos defensivos e dissimulados escondiam alguma dor. Disse-lhe que na manhã seguinte encerraria minha missão e precisava de uma conversa aberta e sem medo. Quero privacidade e certeza de que minha conversa será ouvida.

Antes de clarear o dia, ele já me esperava. Aparentava capacidade diminuída para se concentrar, pensar ou conversar. Sentei ao seu lado e comecei a falar: “Lamentavelmente conhecemos pouco sobre a AIDS, mas sabemos que existe uma relação poderosa entre a doença e o homossexualismo. Os portadores silenciosos do HIV constituem uma fonte importante de disseminação do vírus e por isso eu preciso de detalhes de sua vida sexual. Estou interessado em ouvir tudo que você tenha a dizer. Você já manteve atividade homossexual?”. Depois de uma pausa veio a resposta:

– Alguns meses antes de adoecer, dois homens de impulso sexual elevado me estupraram.

Argumentei que a grande maioria dos indivíduos infectados somente apresentaria manifestações clínicas depois de cinco a dez anos da contaminação. Indaguei: você foi vítima de outro estupro uma década atrás? Vá em frente. Eu sei que você lembra de tudo. Relaxe mentalmente e continue”. Desmascarou a alma e deu-se a conhecer tal qual era na intimidade.

“Lembro que na infância desejei várias vezes ser menina e no silêncio da noite sentia prazer em vestir calcinha e saias de minha irmã. Na adolescência, lutei sem tréguas contra meus desejos. Percebia desconforto nas roupas masculinas e dormia ao lado de uma boneca vestido de saia, blusa, calcinha, sutiãs, meias e sobrancelhas pintadas. Assim, sentia-me muito bem, mas jamais saí de casa vestido desse jeito. Vivia em conflitos com meus desejos divididos e não tinha entusiasmo suficiente para ser um homem tradicional. Eu não tinha certeza se era homem ou mulher. Queria assumir uma identidade e fazer meu cérebro esquecer a outra ou manter meu comportamento escondido atrás da cortina. Meu pai me queria sacerdote e todos os domingos assistíamos à missa juntos. A vida religiosa é cheia de renúncias e sacrifícios. Eu teria de abdicar de esposa, filhos e netos para amar a Deus, a Igreja e o papa. Teria que ser obediente, pobre e salvar almas. Não estava convicto de minha vocação sacerdotal, mas entrei no seminário. Na madrugada de algumas noites, enquanto uma música tocava ao fundo, o reitor conduzia-me até seu quarto, simulava uma sessão de hipnose e mantínhamos relações homossexuais. Com a morte do meu pai, larguei o seminário para assumir os negócios da família. Casei-me para camuflar minha identidade de gênero. A moça, muito religiosa, não possuía nada interessante e jamais demonstrava entusiasmo por sibiteza nem por enxerimento. A cama servia apenas para dormir e procriar. Foram tão raros nossos encontros íntimos que seu último filho nasceu quase cinco anos depois de nossa última relação sexual. Obra e graça do Divino Espirito Santo?

“Quando assumi o comércio, a loja possuía quatro empregados. O mais jovem quase fez meu coração sair pela boca: corpo de atleta, olhos de cobra, sorriso aberto, gestos capazes de encantar e atrair. De atitudes ambiciosas e aparência livre, podia dar e receber amor sem medo e sem conflitos. Companheiro ideal para iniciar um relacionamento íntimo e atender minhas fantasias. Precisava criar um lugar para mim dentro dele, mesmo emocionalmente sentindo falta das orgias do seminário. Quando suas mãos tocaram nas minhas, sensações agradáveis me levaram às nuvens. Ao trocarmos os primeiros abraços e beijos, fui intensamente excitado e senti-me amado, como nunca em toda minha vida. Depois de cinco anos juntos, sem desencontros, ele me disse adeus. Uma tempestade invadiu meu coração e uma desgraça, minha alma. Estava sentado na boca de um vulcão. Dependente dos seus afagos, cada dia de sua ausência era uma eternidade. Não dormia bem, perdi interesse por tudo e me sentia fatigado após esforço mínimo. Quando o cio se tornava incontrolável, eu trocava sexo por dinheiro. Numa churrascaria de beira de estrada, um agenciador cuidava de meus interesses homossexuais. ”

É importante interpretar o que o doente quer dizer quando afirma que está com vontade de morrer. O suicídio é, quase sempre, uma tentativa de resolver um problema, principalmente quando o paciente julga que chegou a um ponto além do qual não pode interferir. A ausência de um forte sistema de integração familiar e social são determinantes para o suicídio quando existe sofrimento crescente, como na presença de depressão, transtorno bipolar, epilepsia, câncer e síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS). A recusa social em aceitar o homossexualismo, hoje homossexualidade, é um costume desumano que fere o corpo e a alma.

Algumas semanas após a alta hospitalar o paciente cometeu suicídio.
Aracaju, 27 de maio 2019

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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