Ivone Gebara 15 de agosto de 2019

Uma casa! O que é mesmo uma casa? Embora, todas nós saibamos o que é uma casa, cada casa esconde significados, segredos e interpretações ligadas à história de alguém. Para além dos muros, das paredes, dos cômodos a casa é parte de nossa história. Falar de nossa casa provoca e evoca sentimentos, emoções, temores, angústias, boas e más lembranças. Nossa casa é a extensão de nosso corpo, de nossa memória, de nossa história, de nosso tempo passado… Nela há velhos guardados, objetos que são parte de nós, gavetas cheias de papéis amarelados que nos permitem uma simples identificação e papéis que já não sabemos identificar. Há os que têm casa e os que não têm. Estes vivem fazendo das ruas ou do vasto mundo sua casa, seu quarto de dormir, sua cozinha, seu banheiro… Difícil entrar na pele de quem não tem uma casa limitada, situada, com endereço próprio, com localização geográfica… Entre os ‘sem casa’ há os que carregam consigo sua casa em grandes sacolas ou em carrinhos de feira misturando tudo que possuem na própria mistura da vida. Ter casa é direito e não pode ser privilégio de alguns, mas os que perambulam sem casa foram privados desse direito.

Eu tenho casa…

Hoje, pediram-me para falar de minha casa! Sem saber qual delas escolher, resolvi falar da ‘casa de minha velhice’, dessa casa na qual habito agora e a partir da qual conto algo de mim. A casa de minha velhice é mais do que uma casa onde se mora. É uma casa grande dentro de mim, com anos de vida, cheia de histórias minhas com muita gente, de interpretações, de incompreensões, de belezas e feiúras, de angústias e ansiedades… Esta casa de dentro é que habita as casas de tijolo e pedra de fora e faz delas moradia, habitação onde as lembranças, o hoje, as manias, os esquecimentos, os carinhos se encontram e se desenvolvem. A casa da velhice é em primeiro lugar a história que a gente carrega e com ela mobília a casa de tijolo. Traz para dentro dela a complexidade do que a gente é, viveu e ainda vive.

Sinto-me num momento de minha história pessoal diferente de todos os outros de minha vida. Embora saiba que cada momento é um momento, este presente me parece especial, talvez porque seja apenas meu presente, esse tempo de consistência única que em breve se tornará passado. Ele representa um tempo maduro, um vinho envelhecido, um presente que condiciona e reflete a memória dos outros tempos vividos. Significa também a sensação de que muitas coisas ficaram em aberto, algumas situações não resolvidas e deixadas de lado e sem solução. Meu tempo… Longo tempo de aprendizagem nessa passagem por este pedaço de história humana sobre a Terra, nossa casa maior!

A sociedade costuma chamar esse tempo em que vivo agora de velhice. Costuma até descrevê-lo a partir de estatísticas sobre a longevidade atual, o uso da aposentadoria ou a ausência dela, as doenças específicas, as atividades especiais que deveriam organizar melhor a vida dos chamados idosos ou idosas. Confesso que não me atraem os programas de saúde especial para a terceira idade, nem a literatura açucarada sobre o sentido da vida e a proximidade da morte, nem o discurso sobre a sabedoria da melhor idade. Gosto menos ainda da ginástica energizante, das vitaminas e energéticos, das viagens turísticas com acompanhantes e tantas outras coisas oferecidas pelo Mercado preocupado em vender o que há de melhor para a população ‘velha’, ou melhor, “idosa” ou ainda para “a melhor idade”. Não utilizo o que é oferecido para as velhas e não me sinto em casa com essa variedade de atividades a partir das quais o Mercado capitalista se beneficia e até explora essa idade. Não desprezo o que se faz, não quero ser juíza do mundo. Apenas observo, constato e me situo enquanto ainda posso fazê-lo! Sei que muitas mulheres e homens se beneficiam dessas iniciativas públicas e privadas. Sei também da quantidade de idosas/os abandonados, doentes e errantes pelas ruas. Dói-me a alma quando os vejo…

Descubro-me como uma solitária por escolha e por enquanto contente de sê-lo.

Construí minha vida e minha casa de outro jeito, um jeito individual embora habitado por muita gente. Onde é a minha casa agora quando por mais de setenta anos a vida me ofereceu generosamente casa e comida em muitos lugares? Hoje falo da casa de minha velhice e me lembro das outras casas em que vivi como instantâneos da memória. Gosto de minha casa de hoje porque gosto de minha velhice. Percorro sozinha através da memória algumas imagens do livro de minha vida através das casas em que habitei. Algumas páginas têm desenhos quase apagados. Não consigo distinguir com clareza as cores pastel de fatos que ficaram na lembrança e às vezes constato que páginas inteiras se tornaram quase borrões pouco visíveis. Lembro do acontecimento, mas não lembro mais dos detalhes, das circunstâncias, dos rostos, das falas dos presentes e ausentes… Ah! Os ausentes… São muitos/as os que já se foram. De alguns tenho memórias doces, de outros a triste partida ainda faz doer o coração.

Minha primeira casa foi num bairro da zona leste de São Paulo. Lá cheguei trazida da Maternidade nos braços de minha mãe. Vivi naquela casa até os seis anos de idade. Vejo-me num triciclo rodando dentro de um salão no térreo de nossa casa. Depois num berço junto ao de minha irmã mais velha com a qual conversava muito à noite. Lembro-me que sentia medos noturnos nessa casa… E quando ia para a escola, muitas vezes nos braços da querida Ricardina, sentia cheiros estranhos numa rua que me repugnavam. Não sei que material era, mas até hoje me invade a memória e provoca mal estar. Um cheiro indefinido, inseguro, parecido com coisa queimada e ruim. Foi nesse tempo que o catolicismo começou a entrar em mim ou em minha casa como um mundo de perfeições e poderes dos quais me sentia muito distante. Pelas mãos de Ricardina fui um dia à Igreja pedir à Virgem Maria para carregar seu filhinho. Havia sido um conselho de minha professora que dizia que se fôssemos boas meninas a Virgem nos permitiria por alguns minutos carregar seu bebe. De joelhos, diante da imagem, pedi com insistência, baixinho e em meu coração. Não fui atendida. E sai da Igreja convencida de que não era uma boa menina. Que fazer? Queria tanto ser boa para poder carregar o menino Jesus?

Minha segunda casa foi na Aclimação onde residi até os 22 anos. Havia um quintal grande e uma jabuticabeira que trazia flores e frutos em abundância. E era uma festa familiar em torno dela. Minha casa era grande quando eu era pequena. Tinha quintal, jabuticabeira, cachorro, meus pais e minhas duas irmãs. Saí dela aos 22 anos em busca de Jesus, não mais o menino, mas o homem justiceiro que fora crucificado. Acreditava que ele me chamava para estar com ele pelo mundo afora.

Embora voltasse com freqüência à minha casa, ela já não era a mesma porque eu também não era a mesma. Fui para outras casas em muitos lugares do mundo. Viajei muito estudando fora, depois dando cursos e conferências em muitos lugares.

O lugar da palavra e do pensamento partilhado se tornou minha casa. Sentia-me bem na casa do intelecto, com pessoas de idéias sobre como erradicar a pobreza e a injustiça no mundo. Buscava respostas para as dores do mundo e as tentativas renovadas de buscar a felicidade. Felicidade, que estranha palavra, sobretudo pronunciada agora!

Fiz amigas e amigos que carregavam também a dor do mundo e com eles acreditei que um dia as dores maiores seriam sanadas. Acreditei… Acredito ainda? Estranhamente escrevi o verbo no passado. Sim porque meu passado é mais vasto que meu presente e certamente que meu futuro. Mas não é só isso. A conjugação do verbo no passado pode levantar dúvidas que assolam as crenças presentes. Apesar das dúvidas, prefiro guardar o tempo verbal no passado como se prolongasse esse tempo no presente. Acreditei… Acredito!

Por mais de trinta anos habitei casas diferentes no nordeste do Brasil, em Pernambuco. Fui professora, assessora, coordenadora… Tenho saudades do mar, do calor, da gente, da comida, da música, da fala, da poesia que brotava da vida de tanta gente, das amizades que se foram e das que ainda povoam de longe a minha vida. Foi um grande pedaço de minha casa interior cheia de amores e encantamentos. Foi bonito demais… Foi escola de vida!É parte saudosa de minha casa…

Hoje estou longe, morando de volta na terra onde nasci.

Gosto da casa atual de minha velhice. Hoje, um pequeno apartamento! Vivo sozinha, mas habitada por muitas histórias e gente boa que me visita com freqüência. Minha casa física é em São Paulo, no bairro em que vivia antes com minha família. Cada cômodo parece ser uma parte de meu corpo, da roupa que uso, do ar que respiro. O lugar mais aconchegante é a cozinha e a melhor hora para mim é a manhã na frente de uma xícara de café bem quente. Enquanto preparo o café ouço o rádio quase sempre com as noticias de ontem. Às vezes continuo a ouvir enquanto como meu pãozinho com queijo, mas silencio o rádio quando o pensamento começa a trazer perguntas e memórias. Preciso de silencio para acolher o pensamento que vem chegando…

Na cozinha escrevo, leio, penso, cozinho e como. Na cozinha me lembro de velhos poemas, de poetas, de pensadores, de odores e sabores os mais variados. É na cozinha que, algumas vezes aconchegada pelo cheiro do café, pela mesa e pelo espaço exíguo que me envolve faço poesia ou escrevo crônicas. É como se as coisas me abraçassem num carinhoso bom dia! É como se uma saudade imprecisa se apossasse de mim… Parece que a esta hora da manhã me sinto mais criativa, habitada por pensamentos e lembranças, muitas vezes ainda tentando buscar saídas para ‘concertar’ o mundo. Lembro-me que desde pequena essa profissão ou paixão de concertar o mundo me acometeu. Se eu via um mendigo na rua imaginava o que poderia ser feito para ele melhorar de vida. Se por acaso tinha conhecimento das dificuldades de alguém já imaginava o que se poderia fazer para aliviar o peso de sua vida. Na maioria das vezes as soluções não se efetivavam, mas a dor se aconchegava em mim como uma agulha fina que me picava a carne e me dava constantes calafrios.

A dor dos outros sempre habitou comigo. É um fardo e não uma virtude. Moramos juntas e mesmo quando mudamos de casa vamos juntas. Às vezes essa dor me leva a boas iniciativas, outras vezes me atormenta e me coloca num labirinto em que o fio de Ariadne foi esquecido na entrada. Quando o labirinto do pensamento me invade e angustia saio dele andando pelas ruas de meu bairro. Ocupo-me com outras coisas de casa para não faltar-me o ar diante dos paradoxos do mundo.

Meu apartamento é minha casa, a pele maior que me aconchega, que me veste, que me limita e me expande para mundos mais amplos. Minha sala é cheia de quadros, de estatuetas de madeira, de barro, de metal todas recebidas nas muitas viagens que fiz pelo mundo. Estas estão fixas num lugar enquanto minha memória desamparadamente móvel se lembra da história de algumas e se esquece de outras. Já não sei mais se este objeto me foi dado num lugar ou em outro. Mesmo sem localização precisa em minha memória, todos eles me habitam e são casa amiga para mim.

A casa de minha velhice é transitória. Sinto que em breve não a terei e em breve não mais serei. Estranha sensação que por vezes me habita, mas não me desespera. Simplesmente a acolho. É como se o final do livro de minha vida se terminasse e eu preparasse lentamente o processo de ser absorvida pela terra. Até que esse tempo chegue continuo escrevendo tranquila dia após dia a história que é a minha, na casa de minha velhice. Converso com minhas irmãs, minhas amigas/os, minha tia e outros familiares… Como eu, estão envelhecendo.

Moram comigo algumas plantinhas, apenas algumas, as que cabem na sala e na cozinha. Gostaria de ter uma horta com temperos. Mas não há espaço suficiente e o sol de cada dia penetra pouco no lugar. As idéias para que as plantas tenham mais espaço não me faltam. Agora comprei sementes de salsinha e cebolinha. Antes havia comprado alecrim e manjericão. Mas, morreram logo. Ainda quero plantar novas sementes esperando que por um tempo, mesmo breve me façam companhia.

Na casa de minha velhice tem comida preparada quase todos os dias. Gosto de preparar meu alimento, de acrescentar sabores diferentes e inventar receitas. Gosto ainda mais quando alguém vem partilhar a comida e aprecia o que ofereço.

A casa de minha velhice tem algumas mágoas, algumas lágrimas, alguns problemas não solucionados, algumas contradições e enigmas. Às vezes voltam como calafrios indesejados em dias de verão. Levo-os comigo como marcas indeléveis, como tatuagens desenhadas em meu corpo, fixadas em minha história. Levo-as como as rugas que vejo multiplicadas em meu rosto e os cabelos brancos que escondem o castanho claro que coroava antes minha cabeça.

Amo estar com a geração que poderia ser a de meus filhos e filhas. É uma geração de jovens adultos que me procuram, freqüentam minha casa, são de casa. Tornamo-nos casa uns para os outros. Em geral são os que como eu abraçaram a missão de aliviar as dores do mundo. Continuam a minha paixão. Vibro com eles e elas como se o melhor de mim quisesse ficar como herança para eles e elas. Nutrimo-nos mutuamente com certa freqüência.

A casa da minha velhice sou eu e minhas circunstâncias. Sou eu e minhas possibilidades, talvez cada dia menores. Sou eu e a aposta pelo hoje de cada dia, pão cotidiano que deve ser comido inteiramente, até as migalhas, para que nada se perca porque amanhã será outro dia. E com o pão tem o vinho que vez por outra se torna festa em mim. E agradecida celebro com ele o hoje e o amanhã, o que foi e o que será.E para finalizar, agora celebro vocês leitores/as do meu texto sobre a ‘casa de minha velhice’ que me introduzem em sua casa e comem de minha comida carinhosamente preparada.
Junho 2018

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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