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Meus queridos amigos

O homem pobre apanhou com sofreguidão a ponta de cigarro que descobriu no chão. Bom é que ainda estava acesa. E deu ainda para umas três tragadas. Quanta gente que diz que fuma duas carteiras de cigarros por dia, mas, na realidade, dá umas duas ou três tragadas e deixa o cigarro quase inteiro. Daí a instantes acende outro, para logo deixá-lo, quase intacto, no cinzeiro.

É bem a imagem da vida! Uns apanhando felizes um final de cigarro, difícil até para sustentar, outros esbanjando cigarros, esbanjando a ida! Mais triste ainda é quando o que se apanha não é ponta de cigarros, é comida, e não é só no chão, é no lixo!

Uma senhora, minha amiga, teve a confiança de perguntar-me se isto de apanhar comida no lixo não era um exagero. E acrescentou: “Talvez o Senhor tenha visto alguma vez algum pobre louco, comendo do lixo, e fica pensando que isto acontece todos os dias.”

Gostei da franqueza e pedi que ela saísse cedinho de casa, entre 6 e 7 horas da manhã, e fosse, a pé, passando em ruas de classe média ou de gente rica, e fosse olhando o movimento em torno dos depósitos de lixo. Três dias depois ela estava horrorizada. Não encontrou só crianças ou mulheres. Encontrou homens apanhando comida do lixo.

Ela ficou observando, de modo discreto, mas de bastante perto, para não se enganar. Podia ser que os pobres procurassem no lixo apenas papelão, vidro, flandres… Era resto de comida azeda e podre que os pobres disputavam nos depósitos de lixo…

Quando a senhora minha amiga veio trazer-me sua impressão de espanto e de vergonha diante do que vira com seus próprios olhos, teve outra surpresa. Enquanto conversávamos, dois pobres pediram desculpas por chegarem atrasados para falar comigo. E explicaram: “Perto do Sport, quebrou-se um cano. E durante umas três semanas foi uma beleza. A gente tinha água para beber, pra tomar banho e pra lavar a roupinha da gente.” E os pobres concluíram dizendo: “A gente estava aproveitando, porque hoje vão consertar o cano.”

Como estamos longe de conhecer o que se passa no submundo da pobreza e da miséria!
Sexta-feira, 12.1.1979

Obs: *Mais uma das crônicas escritas por Dom Helder Camara para o seu programa de rádio UM OLHAR SOBRE A CIDADE, exibido na rádio Olinda às 06h55 de 01 de abril de 1974 a 22 de abril e 1983. Está crônica está publicada no livro “Meus Queridos Amigos”, que reúne 200, das centenas de crônicas lidas por Dom Helder ao longo dos nove anos de duração do programa. 

 Imagem e texto enviados pelo IDHEC – Instituto Dom Helder Camara
. Ver AUTORIZAÇÃO do IDHEC no item OBRAS LITERÁRIAS.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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