Entrevista*

Como você interpreta a eleição de um papa latino-americano?

Penso que a eleição de um novo papa, sobretudo no contexto do mundo atual, não é um ato sem um prévio pensamento do Conclave. Com isso, quero dizer que o papa Bento XVI antes de renunciar, assim como seus companheiros de trabalho, os mais próximos, já tinha desenhado a sucessão. É minha suspeita. Isso quer dizer que houve mais ou menos uma definida linha sucessória que começou, a partir da escolha dos atuais cardeais, por João Paulo II e Bento XVI. Ao deixar o pontificado, eu acredito que Ratzinger possuía um desejo para a sucessão. Um homem inteligente como ele não deixaria as coisas totalmente soltas, assim que deixou seu ministério papal. É neste sentido que entra a eleição de um papa latino-americano.

Nos últimos 20 anos, os governos da América Latina tomam uma direção política popular, ou seja, se abrem para projetos políticos que favorecem as populações marginalizadas, com todas as contradições que esse caminho pode ter. Também favorecem as mulheres e as pessoas LGBT, assim como a outros grupos ativistas em direitos humanos. Nesse caminho, também se desenham no horizonte muitos movimentos sociais que contestam a autoridade da Igreja. Penso especialmente nos movimentos feministas que se libertam da tutela masculina, inclusive na Igreja. A Igreja Católica institucional foi uma dos bastiões de resistência contra a emancipação das mulheres, uma emancipação que significou se apropriar de seu corpo, de sua sexualidade, de suas escolhas pessoais, de uma vida profissional para além do mundo doméstico.

Muita coisa nova está sendo feita sem o consentimento explícito da Igreja hierárquica masculina. Basta também nos darmos conta da diminuição do número de fiéis católicos. Um papa latino-americano poderia reequilibrar este jogo de forças, sobretudo se vem com um discurso e uma prática dos pobres e se é uma figura simpática capaz de tocar nossas entranhas e dar certa segurança aos fiéis. Uma figura com maior proximidade humana, consciente do pluralismo cultural que se vive, do novo momento na política e economia nas Américas. Acredito que algo disso foi pensado no processo de eleição. A partir disso também, pode-se falar de geopolítica.

Num artigo que você publicou há poucos dias sobre a eleição do Papa, você refere-se à geopolítica do segredo. Você poderia explicar o conceito?

Falo de geopolítica do segredo para sublinhar o elemento “segredo” não apenas na maneira de escolher o papa, mas também nas muitas formas de atuação da Cúria Romana. A geopolítica do segredo significa que a ideologia religiosa se apresenta como se estivesse envolvida com elementos atribuídos à vontade divina; apresenta maneiras de atuar de forma secreta, embora seja no nível simbólico. Esta vontade parece ser mais conhecida por alguns varões. Apenas varões votam, pois Deus é varão. Apenas os anciãos votam, pois se acredita que possuem mais sabedoria. Não há discussão pública.

Não se apresentam como os governos que nós conhecemos, mas são envolvidos numa espécie de aura sagrada. Apresentam-se como se fossem um governo com um componente decisório divino, onde as mulheres e o povo simples não são aceitos. Existe um cerimonial particular: queimam-se os votos de papel, comunica-se com os fiéis por meio de uma fumaça negra ou da fumaça branca. Há todo um clima produzido para indicar que aquilo que fazem de diferente até pode ser interpretado pelos fiéis como algo superior, que vem de uma esfera celeste e que, na realidade, não corresponde aos costumes introduzidos em diferentes épocas. Alguns destes costumes são cópias de comportamentos de reis ou imperadores do passado. Ter o segredo como elemento político da eleição é a sua maneira de se posicionar no conjunto de nações. Por isso fala-se de geopolítica do segredo. Os meios de comunicação tiveram um papel importante para acompanhar e revelar as origens destes costumes cheios de segredo.

Nos meios de comunicação dominantes, destaca-se a simplicidade do Papa Francisco como um grande valor…

De fato, a simplicidade na forma como o Papa Francisco se apresentou toca os corações. Entretanto, penso que é muito pouco tempo de pontificado para tirar conclusões. É realmente simpático, tem calor humano, simplicidade, ardor, mas é preciso ver o que acontecerá dentro de alguns meses. Não sei se posso dizer que estas são mudanças na Igreja. São características pessoais do novo papa, seu estilo de viver, e espero que poderão servir ou contribuir para introduzir as mudanças necessárias nas estruturas da Igreja.

Por que é tão difícil que a Igreja católica acompanhe as mudanças na sociedade e se apresente como uma instituição tão distanciada da vida das pessoas comuns, que se divorciam, usam preservativos, possuem relações sexuais antes do casamento, são homossexuais ou podem enfrentar um aborto?

A visão desenvolvida na Igreja Católica, fruto de antigas filosofia que se embutiram no cristianismo, é a de que existe uma ordem de comportamentos humanos petrificada e estes comportamentos correspondem ao mais correto. Isso significa que, a partir das Escrituras, são deduzidos comportamentos considerados de acordo com a vontade de Deus ou segundo o desejo de Jesus Cristo. Nessa perspectiva, são estabelecidos comportamentos de justiça social ou de ética sexual a partir de uma ordem que se chamou de vontade de Deus.

Homossexuais, divorciados, mulheres que fazem aborto e outros comportamentos nesta linha são considerados como desordem na ordem querida por Deus. Na mesma linha, abrir espaço para as mulheres dentro da hierarquia católica significa introduzir uma desordem de representatividade. Deus masculino, Jesus masculino, não podem ser representados a partir de um corpo feminino frágil e tentador. Ao mesmo tempo em que falam em ter misericórdia com os pecadores e marginalizados, desenvolvem um sistema legal que impede a misericórdia através de fatos. O paradoxo é flagrante! É claro, esta é uma forma de pensar que não resiste a uma racionalidade moderna, nem às buscas de muitos grupos, sobretudo de mulheres em vista da afirmação de sua dignidade. Há um longo caminho a ser percorrido para a diversidade, de fato, ter cidadania nas estruturas da Igreja Católica Romana. Há muito caminho a andar e um caminho que precisa contar com a colaboração de muitas e muitos.

E o que você espera de Francisco?

A partir desse contexto, não sei dizer o que espero apenas de Francisco, ou seja, dele como papa, mas, sim, posso dizer o que espero dele com sua equipe ampliada, nos diferentes cantos do mundo. Espero que escutem, sintam, vejam, duvidem de suas interpretações, perguntem às pessoas sobre o que vivem e o que querem da instituição. Penso que temos uma diversidade de aspirações e que uma instituição como a Igreja Católica Romana tem possibilidades de se abrir não apenas para a diversidade de culturas, de orientações sexuais, de gênero, mas também à diversidade de expressões da mesma fé cristã.

Atrevo-me a dizer que algumas coisas parecem importantes: a possibilidade de que alguns grupos expressem sua fé a partir de outras referências filosóficas, a partir de outra linguagem, a partir da diversidade de experiências especialmente das mulheres. Que o critério não seja a formulação teórica, a partir de uma linguagem preestabelecida, mas o cuidado, a relação de amor e justiça entre as pessoas. Muitas pessoas continuam abraçando os valores cristãos, mas já não podem expressá-los com a linguagem dos dogmas ou com a linguagem mágica das liturgias atuais. Estas coisas lhes agridem a razão e o coração.

Poder expressar o amor, a justiça, a misericórdia, em concreto na história, não significa ter que reduzir estas vivências às linguagens abençoadas pela hierarquia católica. Voltar à linguagem cotidiana, expressar-se a partir do vivido, encontrar no ordinário da vida o extraordinário da própria vida. Sair de uma linguagem masculina de mistérios metafísicos e se encontrar com o simples, com o inesperado que nos enche de beleza e mistério. Este tipo de linguagem produz um poder diferente do hierárquico. É um poder que todas as pessoas podem viver. O que espero não é que se imponha esta forma como a verdadeira, mas que se permita sua inclusão como uma maneira a mais de expressar o amor que sustenta nossas vidas. Neste contexto, espero que os muitos grupos fundamentalistas católicos, presentes no mundo e no Vaticano, não impeçam as reformas necessárias da Igreja. Que o bem comum prevaleça. Que o Papa não sucumba diante deles e de seus interesses, mas que seja firme, e que nós possamos ajudá-lo nesta firmeza de fé.

*“Há um longo caminho a ser percorrido para que a diversidade possa de fato ter cidadania nas estruturas da Igreja Católica Romana”, disse Ivone Gebara (foto), a religiosa brasileira e feminista. Por suas posições, especialmente em favor da descriminalização do aborto, recebeu severos castigos do Vaticano. Diferente de outras vozes dissidentes dentro da Igreja Católica, que neste momento se entusiasmam com a escolha de um papa latino-americano, ela prefere ser mais cautelosa. “Precisamos de mais tempo para avaliar as posições e ações do novo pontificado”, disse, numa entrevista ao jornal Página/12, a partir de Camaragibe, periferia de Recife, onde reside. Durante décadas, no nordeste do Brasil, tem vivido uma vida de “inclusão” em bairros populares.

“Especulações podem ser feitas, mas, de modo geral, são opiniões muito subjetivas, tendo mais a ver com alguns de nossos desejos do que com as reais condições de possibilidade de mudanças numa estrutura tão complexa como a do Vaticano. Há pequenos sinais que podem ser interpretados como esforços simbólicos para devolver credibilidade à Igreja, como a escolha do nome Francisco, a opção pelos pobres, a quebra de alguns protocolos. Contudo, ainda é cedo para ter juízo em relação às novas políticas e teologias do Papa”, adverte Gebara. E propõe que Francisco e aqueles que o rodeiam para governar a Igreja Católica, em todo o mundo, “escutem, sintam, vejam, duvidem de suas interpretações e perguntem às pessoas sobre o que vivem e querem da instituição”.

A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada no jornal Página/12, 24-03-2013. A tradução é do Cepat.
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Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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