A manhã era longa porque não tinha o que fazer e com quem brincar. A casa ficava vazia com a ida de Alba e Bosco para a escola. Eu, de longe, vendo mamãe comandando os preparativos. Cenas assim, vividas ainda na casa da Rua do Sol, antes da curta temporada no sítio de vovô Aristides, logo adiante, me ficaram, se tornando o meu isolamento mais acentuado no sítio, porque eu já era maior e a ausência dos dois me afetava de forma mais intensa. No sítio, contudo, apareceu uma luz. Eu curtia minha solidão sentado num banco, na varanda da casa, o olhar perdido no pé de tamarindo e nas casas que ficavam um pouco adiante. Ou seja, o horizonte era intensamente maior. À época, a gente só ia a escola depois dos cinco anos, para minha inquietação, eu, que já sabia o ABC por ver mamãe ensinando a Bosco.

A solidão, contudo, tinha seus encantos. Um, que me ficou bem firme, se traduz na imaginação que aparecia e se soltava. Sério. Sentado no banco, na crença de que o céu ficava logo ali, onde o azul aparecia, eu pensava que se colocasse o tronco de um coqueiro em cima de outro tronco, e, assim por diante, vários e vários, faríamos uma espécie de escada para tocá-lo. Claro que não pensei como alguém subiria, tronco por tronco, sem qualquer degrau. O projeto apresentava-se incompleto, mas dele me aproveitei num conto, cujo título não me vem à mente, que integra o livro Mulungu desfolhado. Dei a um personagem a autoria de um projeto de minha infância de menino que ainda não frequentava à escola.

Outro, só muito mais tarde me lembrei, ao ler as aventuras de Pinóquio. Estava lá a árvore em cujos galhos nasciam cédulas de dinheiro. No livro, eram ladrões, acho que uma raposa no meio, que tentavam enganar Pinóquio com essa história. Eu pensei nessa árvore, também  menino, no sítio de vovô Aristides.  As cédulas de dinheiro nascendo em seus galhos, como se fossem frutos. Não tinha noção do que significava dinheiro, mas já o considerava como algo importante, porque eu não tinha. Quando ia, aos domingos, para a praça, com papai, era de seu bolso que saia o dinheiro para a gente comprar pipoca, picolé, pirulito ou rolete de cana.  Mas, no meu bolso, nenhuma cédula, por mais insignificante que fosse, tinha ocupado qualquer espaço. Mesmo assim, a árvore, onde nos seus galhos nasciam cédulas de dinheiro, ocupou minha mente. Levaria anos e anos para ler o livro de Pinóquio.

Revelar que desejava ter um brinquedo em forma de posto de gasolina, ou um carrinho, de ferro, com pedais para sua movimentação, que via no comércio de Aracaju, quando, para lá, uma vez ou outra, viajava, se tornava desnecessário, porque, ao menos, nunca ousei pedir. Sabia, de antemão, que não se dispunha de dinheiro para tanto. Ficava só no desejo, mas de boca fechada. O carrinho, que, com o tempo, deixou de ser fabricado, substituído por outros menos pesados, não o tive.  O posto de gasolina, ah, o posto de gasolina, foi diferente. Por obra e graça de Cristiane, que, ouvindo a história dos meus desejos escondidos da infância, me surpreendeu com um. Fiquei sensibilizado. Contudo, me faltou disposição para me sentar no chão e movimentar as pessoas e os veículos. O menino, que existia em mim, já tinha morrido com a idade. 27 de abril de 2019.

Obs: Publicado no Correio de Sergipe 
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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