Elas não se confundem. Aprender a perguntar sobre os sentidos e significados é um chamado à lucidez

Muita coisa tem me inquietado e provocado minha reflexão sobre a responsabilidade social nesses tempos tão difíceis. Uma delas é a expectativa que desenvolvemos em nós de achar que quem ocupa cargos de comando social, político ou religioso responde às expectativas do povo.

Mas expectativas de qual povo? Povo é um conceito abstrato que significa poucas coisas no concreto. Povo pode ser formado de maiorias ou minorias, ambas diversas, e incluídas nesse conceito.

Por isso dizemos que a palavra povo tem um sentido amplo e flutuante. Indica o pertencimento a um grupo étnico, a uma nação, a uma religião, a uma ideologia ou a um conjunto indiferenciado de pobres e miseráveis chamado de plebe.

Em geral, os povos organizam-se para viver e exigir direitos. A quem pedem direitos? Aos governantes e aos responsáveis por suas igrejas.

Nessa linha faço minha reflexão sobre a ‘voz do povo’ na Igreja Católica. O que o povo católico pede à Igreja Católica? À primeira vista existem duas entidades: o povo e a Igreja. Entretanto, a partir do Concílio Vaticano II, os católicos assumiram para si a afirmação de ser “Povo de Deus”.

A hierarquia que participou do Concílio, por meio de seus documentos oficiais, afirmou a Igreja como “Povo de Deus” e nela se incluiu e se distinguiu.

A partir dessa expressão muitas reivindicações se efetivaram na linha de novos direitos, mudaram-se leis, costumes e interpretações antes mantidas pelo poder central da Igreja Católica. Entretanto, sendo ‘Povo de Deus’, será que nos distanciamos das identidades nacionais, das identidades sociais e de classe, das identidades de gênero, das aquisições da ciência e da cultura, dos conflitos entre poderes?

Universal

O que significa a expressão ‘povo de Deus’ diante da complexa problemática identitária? Que Deus tem um povo tão amplo, tão universal, tão diverso? A identificação católica mais corrente diz que esse Deus é o mesmo que tirou os judeus do Egito, que libertou os cativos, que anunciou políticas de justiça para que os reis conduzissem seu povo, que está em Jesus Cristo e se perpetua na Igreja.

Seria um Deus sempre ‘ouvinte’ das vozes dos povos injustiçados? A História parece não confirmar essa hipótese.

Não estaríamos vivendo hoje certo anacronismo simbólico acreditando na imagem de uma entidade superior capaz de congregar e conduzir o povo ou capaz de converter autoridades para que legislem a favor do povo?

Não estaríamos já maduros para sair das teocracias simbólicas e entrar na fase da construção da humanidade solidária em que todos, segundo suas possibilidades reais, se tornam responsáveis?

Isto não significa que tenhamos que abrir mão de Deus, como temem alguns. Mas temos sim que abrir mão de uma imagem poderosa, masculina e expansionista de Deus e de seu Reino. Este passo fundamental nos levaria a acolher Deus como Mistério Maior para além de nossa vontade, de nossos pequenos desejos e, sobretudo, de nossos conceitos limitados.

Talvez os primeiros passos que deveríamos dar seriam aqueles na direção de introduzir um pouco mais de racionalidade em nossas crenças. Tal atitude não causaria dano a nossas melhores tradições e a nosso cotidiano cheio de surpresas e ambigüidades.

A tentativa de objetividade ou de pensamento na subjetividade religiosa prestaria grande serviço aos cidadãos de uma nação tão religiosa como o Brasil.

Poderia nos ajudar a perceber que o nome Deus é empregado ainda na forma de promessa e de poder. Basta observar os processos de manipulação dos vários poderes e sua perniciosa agenda fundada no Deus invisível e poderoso. Este não assume responsabilidades históricas reais, não dá explicações para suas ações. Serve apenas aos intentos dos poderosos. E mais, serve para que as vítimas devotas dobrem os joelhos e digam “foi vontade de Deus”.

Vontade divina

Diante das mais horripilantes tragédias, os responsáveis por elas vão culpar o acaso ou a inescrutável vontade divina de suas irresponsabilidades afirmando que tal situação faz parte dos desígnios ocultos de Deus.

Mesmo se não empregam a palavra Deus, sabem que as vítimas o farão. Porque as vítimas não tendo explicações para seu sofrimento apelam ao Deus invisível pedindo-lhe alívio para seus muitos males. Seu sofrimento é tão grande que buscam qualquer forma de sustento para suportar o insuportável de suas dores.

Um processo religioso educativo é urgente, mas não pode começar em meio a catástrofes. Entretanto, passado algum tempo se pode retomar a memória das injustiças e dores, refletir sobre as responsabilidades de uns e de outros.

Aliviada a dor da inesquecível ferida se pode criar novas simbologias, novas metáforas para novos sentidos. Isto é parte de nossa responsabilidade coletiva em meio ao pedaço de povo ao qual nos sentimos mais proximamente vinculados.

Ressignificar as palavras ou apenas explicitar o que significam para nós já é um passo. Nessa linha me vem à lembrança uma nova palavra atribuída às mulheres pelo papa Francisco. A palavra harmonia…

Ele tem repetido em suas homilias que a vocação das mulheres é ‘construir harmonia’. Tal afirmação prova seu pouco convívio conosco. Será mesmo que é isso que fazemos? Não seria um desejo ainda forte de idealizar as mulheres e seguir dominando dentro do modelo masculino patriarcal? Ou seria talvez uma postura ingênua e defensiva? Difícil saber.

O fato é que não habitamos as palavras com um significado único. Precisamos expressá-las para abrir ou manter o diálogo entre nós. Precisamos abri-las e fechá-las conforme os diferentes momentos.

Nessa linha é bom lembrar que a História é um conjunto de histórias, a verdade um conjunto de interpretações, as palavras um conjunto de significados e, nem sempre sua vocalização e escritura dão conta de seus sentidos.

Aprender a perguntar sobre os sentidos e significados é um passo político importante e um chamado à lucidez. Por tudo isso a voz do povo não é a voz das lideranças ou daquilo que afirmam ser a voz de Deus.

A voz de cada indivíduo ecoa em si mesmo e nos outros. Pode se tornar coral de muitas vozes ou orquestra com muitos instrumentos nos quais os maestros podem dirigir, mas não podem ser donos de suas vozes e de seus instrumentos.

O importante é que cada um possa ouvir a sua música para compor com a música dos outros e criar novos sons e harmonias para todos.

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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