A escolarização tinha início aos sete anos e o Grupo Escolar Guilhermino Bezerra era o único estabelecimento público de ensino a oferecer o primeiro estágio da educação, em Itabaiana. Aprendíamos a ler, escrever e contar, além de rudimentos de história, geografia, ciências e moral cívica, sem, contudo, substituir completamente crenças em coisas ineficazes por conhecimentos dotados de universalidade. Floração demorada para entender que a ciência não recua. Os alunos de cada classe recebiam instruções de uma única professora, também dotada de poderes para aplicar penas disciplinares aos transgressores dos regulamentos da escola ou dos preceitos de submissões e subordinações do aluno ao mestre. As penalidades incluíam: ficar de pé ou de joelhos; puxões nas orelhas; beliscões nos braços e palmadas dolorosas com uma palmatória bem fornida.

Finalizado o ensino primário, a progressão para o curso ginasial exigia a aprovação do aluno no Exame de Admissão ao Ginásio, um vestibular obrigatório devido à oferta limitada de vagas no colégio Murilo Braga, um oásis em educação, cujo brilho se deveu mais à extraordinária capacidade mental dos frutos do que ao volume intelectual das árvores e muitos discípulos sobrevoaram os mestres.

Os professores ensinavam tudo que o currículo achava que os alunos deviam saber, mas é fato que não existe solução mágica para aprender tudo. Aquilo que é fácil a um aluno, pode ser difícil para outro. No entanto, a prova era a mesma para todos. O estudo de línguas não causava fascínio contagioso e somente, à força, algum conteúdo entrava em nossas cabeças. Os estudantes mais dedicados abdicavam dos prazeres da adolescência e, ao custo de “sangue, suor e lágrimas”, conseguiam notas máximas. Os menos dedicados reconheciam a importância de estudar e de subir um degrau a cada ano, mesmo quando se fazia necessário aproveitar a sabedoria dos outros. O aprendizado é estimulado, quando o professor transmite entusiasmo e mantém um relacionamento cordial com os alunos. Não havia simpatia calorosa e espontânea entre nós e o professor de português, desmotivado e prolixo, e transferíamos esse sentimento para a matéria ensinada. Suas aulas sobre regência verbal, análise sintática, catacrese, eufemismo e silepse provocavam enjoos, e logo nossa memória vomitava o tema versado.

Todo esforço do professor noviço para nos dar a oportunidade de investir no aprendizado de francês era em vão. “Francês é uma língua bonita e romântica. Aprenderão primeiro o alfabeto e a pronúncia, depois gramática, palavras e frases”, dizia. Tal introdução não provocou fome nem sede em nossos desejos. Ter conhecimento sólido e dominar uma língua estrangeira tornava-se impossível quando conhecíamos muito pouco da nossa. Decoramos apenas bonjour, bonsoir, au revoir, merci beaucoup e je suis brésilien, e, sendo comum o hábito de estudarmos apenas em ocasiões críticas de avaliação, as notas dos testes andavam abaixo da média, mesmo sem haver abordagens com profundidade em assuntos complexos.

No segundo semestre, no suspiro final de uma aula, o professor comentou que o teste para a última avaliação do ano já estava pronto e mimeografado. “Foi elaborado pacientemente com questões bem selecionadas e espero que vocês estejam preparados”. As linhas labiais do seu sorriso curto e o puxão lateral do nariz, imprimiam ao comentário um tom critico, que anunciava dificuldades. Não foi possível ignorar o comentário. As colocações do mestre criaram um estado de suspense, despertando curiosidade e criatividade, com mais destaque, nos alunos que precisavam de nota alta para seguir adiante. Nunca permitia que minhas ideias se atrofiassem, e depois de ouvir baixinho meus pensamentos inquietos, tomei a iniciativa de convidar dois colegas, hábeis, exaltados, amigos e confiáveis, para assaltarmos o quarto do professor. Uma cópia do teste substituiria nosso desnutrido aprendizado. Desprezamos senso de moral, ética, pecado e culpa, e planejamos, com refinamento, todas ações para alcançar o alvo desejado.

Era preciso conhecer os riscos, dentro e fora do colégio, e executar o plano elaborado ao melhor estilo, sem usar mãos ao alto, fuzil ou explosivos. A arma era uma lanterna. Tudo caía do céu: o professor morava no Murilo Braga e durante a noite ia curtir sua forte paixão pela bela morena da rua do Beco Novo; o vigilante só costumava chegar ao trabalho depois do programa de rádio O Calendário; a janela de madeira e vidro artesanal, velha e em péssimo estado de conservação, não ofereceria resistência às manobras espertas de Zé Valdi. A operação ousada foi bem sucedida e em menos de dez minutos o alvo, de significado inestimável, estava em nossas mãos. Não era um cofre cheio de moedas de ouro, mas representava grande valor em nossas vidas.

A noite seguia silenciosa e a baixa luminosidade nos protegia do alcance de todos os olhares. Concluída a missão era preciso deixar o ambiente a “toque de caixa e repique de sino”, e, quando ia tão bem, nos defrontamos com o vigilante que chegava para assumir seu trabalho. Numa fração de segundos, de forma ágil, nos escondemos atrás dos troncos dos eucaliptos. Ele percebeu nossa presença e espantado pelo encontro inesperado, sentiu-se ameaçado, desprezou suas obrigações, e fugiu desembestado por paus e pedras pelos matos em direção ao chafariz, onde chegou esbaforido. Algumas horas depois, conduzido pelo delegado de policia, assumiu o trabalho, e daí por diante, somente exerceu suas funções na companhia de um cão de guarda.

  No dia seguinte, o colégio entrou em erupção. Nos corredores e nos arredores da cantina, a coqueluche era a invasão da escola por marginais, e o possível reconhecimento de um deles pelo vigilante. Na minha cabeça, em dado momento, passei a acreditar que as pessoas sabiam de tudo e os comentários e as especulações eram a mim dirigidas. As cochichadas entre os alunos e a aproximação de qualquer funcionário, circunstâncias de vida rotineiras, traziam-me a sensação de estar sob vigilância contínua dos olhos e ouvidos de todos. Preocupado com embaraços e humilhações, sentia reações adversas: não conseguia controlar minha respiração; a força dos braços e das pernas; o frio das mãos, nem o sentimento angustiante de medo. Com muita discrição, perguntei a Dona Lilia (funcionária antiga e mãe espiritual de todos nós), sobre o zum-zum-zum? Sem manifestar alegria ou tristeza e sem mudar o tom da fala, respondeu-me: “o vigilante embriagado e assombrado viu almas. Apesar dos boatos, tudo está normal”. A resposta foi de valor expressivo no reestabelecimento imediato do equilíbrio em minhas emoções.

Para alcançar horizontes maiores é preciso estudar, criar estratégias, vencer os obstáculos e ter bons professores. Língua francesa era uma pedra no meu sapato, mas, com o teste previamente na cabeça, exclui as dificuldades e tornei-me confiante na continuação da minha escolarização. Num ambiente de cordialidade, o professor conferiu a presença dos alunos e em seguida distribuiu os testes. Em breve intervalo de tempo repassei as questões. Não haviam novidades, nem necessidade de chutar respostas para todos os lados. Na semana seguinte o professor entrou na sala de aula com os testes corrigidos nas mãos. As notas avaliam a habilidade dos alunos em lembrar e memorizar fatos, e refletem o aprendizado e o ensino. Era costume ficarmos em pé quando o professor entrava, entretanto, nesse dia, ele ordenou-me  permanecer em pé aos demais, sentarem. Lembrei das ações ilícitas e senti tremores, arrepios e formigamentos em todo corpo. Vivi instantes amargos, mas estava determinado a não revelar nada e negar tudo. Inesperadamente, o professor dirigiu palavras elogiosas na minha direção: “o teste foi mantido no mesmo estilo dos anteriores e com semelhante grau de dificuldade. Minhas congratulações pela perfeição de suas respostas e pela nota elevada. Prossiga sempre em busca dos seus ideais”. Ele não sabia sobre meu código de barra, de meus impulsos irresistíveis e polêmicos, meus bullyings e meus pecados. As palavras do professor tocaram na minha alma. A partir daí, fui perdendo o prazer em violar as normas sociais e lentamente corrigindo meus defeitos, sem contudo, atingir a perfeição. O mestre, com seu elogio franco, a longo prazo, ensinou-me a descobrir a mim mesmo. Muito obrigado, Anito, pela sua contribuição.Aracaju, 19/03/2019

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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