Da loja de papai, me recordo de um quadro, com a frase: Deus lhe dê em dobro tudo quanto me desejares. Não sei quem era o autor, nem se tinha o registro da autoria. Me lembro do tipo de letra, bem garrafal, como era comum, à época. Depois, havia outro, também em quadro, quadro que sempre via e analisava, trazendo dois comerciantes. Um gordo, com o cofre cheio, e o ambiente bem cuidado. Outro, magro, de chinelos nos pés, ratos andando pelo chão, prateleiras vazias, o olhar sem vida. O gordo era o comerciante que não vendia fiado. O magro, desnecessário dizer, era justamente o que vendia fiado. A paisagem refletia o cofre vazio.

A advertência não servia para nada. O vender fiado era a praxe da época e da praça, se não a todos, mas, a alguns, conhecidos e amigos, que se valiam do crediário, sem o acréscimo de juros e de correção monetária. Quando Zeca Araújo implantou sua loja, com o nome de O Crediário, o nome carregou uma força tão grande que se incorporou ao seu apelido. Agora, não era mais Zeca de dona Elze, mas Zeca do Crediário. Por outro lado, o pequeno tamanho da comunidade assim favorecia. Todos se conheciam. Entre comerciantes e fregueses, reinava, muitas vezes, com laços bem fortes, o compadrio. Não havia ambiente para se dar um não a venda fiada. E, ainda mais, fiado sem nota promissória, sem cheque pré-datado, que, aliás, não era comum. Fiado na confiança da palavra, o fio do bigode como garantia.

Na bodega de Chico Bateria, havia a caderneta, na qual, diariamente, pela manhã, e pela tarde, com a letra ilegível,  anotava o nome do bem comprado, v. g., o pão, e o valor respectivo. Não sei se semanalmente, ou quinzenalmente, ou mensalmente, o freguês ia lá com a caderneta, fazia-se a conta e se efetuava o pagamento. Se cito a bodega de Chico Bateria, é porque, muitas vezes, eu ia com a caderneta para comprar o pão, e, diga-se de passagem, a letra do bodegueiro me surgia como algo absolutamente horrível, registro feito às pressas, caligrafia que d. Maria de Branquinha premiaria seu autor com quatro bolos de palmatória.

Os tempos eram assim rústicos e atrasados. O pão era colocado na mochila de papel pela mão do bodegueiro, mão que pegava em dinheiro e em charuto. Ninguém reclamava.

Obs: Publicado no Correio de Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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