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Há certo tempo, quem andava pelas estradas de terra e trilhas do interior de Goiás, aqui e ali descobria à margem do caminho uma placa, às vezes, escrita quase improvisadamente: “Aqui se redescobriu e se salvou uma nascente d’água que se tinha perdido”. Um amigo que viu muitos desses letreiros quis saber dos cuidadores/as das nascentes como podiam saber que tal terreno baldio, ou sítio atualmente seco, continha escondido debaixo da terra ou do areal uma fonte d’água. Também queria saber o que faziam para fazê-la brotar. As explicações foram diversas, desde informações de antigos moradores até técnicas ancestrais como radiestesia e outras novas como pequenas perfurações e limpezas do terreno até chegar ao molhado e aí ajudar à antiga fonte novamente aparecer e renascer.

Essa experiência suscita em nós a pergunta: E nós, eu e você, às vezes, não nos sentimos como um terreno, no qual a fonte interior que nos abastecia parece ter para sempre secado? Como fazê-la voltar a surgir do mais interior do nosso ser para irrigar as securas de nossas vidas e com águas puras e cristalinas dessedentar nossa sede mais íntima e profunda?

Na Alemanha nazista, em 1943, Etty Hillesun era uma jovem judia de 28 anos que, em um campo de concentração, tinha sido condenada à morte e esperava a sua execução. Em meio às barbaridades que sofreu e via outros sofrerem, ela escrevia um diário que escapou da censura dos seus algozes. Nesse diário, ela nos surpreende por sua atitude positiva de esperança e amor. No campo de concentração, condenada à morte, ela escreveu em seu diário: “Dentro de mim, há um poço muito profundo. Nem consigo ver o seu fundo. Às vezes, me parece coberto de pedras e lixo. E então, para mim, Deus está sepultado. Em alguns momentos, consigo desenterra-lo e posso até ajudar outras pessoas a desenterrá-lo em seus corações. Percebo que em uma situação como essa, ó Deus, tu não podes nos ajudar. Mas, nós podemos sim fazer muito por ti. Podemos ajudar-te a não te deixar sepultado em nós e a ser testemunhas do teu amor em uma realidade na qual todo amor é abolido e chacinado”.

 Será que essas palavras não caberiam hoje para muitos de nós? Será que a sociedade atual não vive também essa realidade na qual todo amor é abolido e chacinado? Não temos, cada um dentro de si mesmo um poço profundo, coberto de pedras e de todo tipo de lixo?

Para os cristãos que nesses 50 dias celebram a Páscoa, a fé na ressurreição de Jesus nos faz descobrir que, mesmo se a superfície parece árida como o sertão nordestino em tempos de seca, no mais profundo do nosso ser há uma fonte escondida, na qual a água cristalina do Espírito só espera nossa disposição para libertá-la. Então, ela jorrará como torrente de vida a renovar nossa esperança e encher de doçura nossa aridez.

Quem lê o diário de Etty Hillesun poderá constatar como ela tinha clareza de posições contra os nazistas, denunciava a opressão, sentia a indignação profética contra o mal e o combatia, mas não deixava que o ódio e o desejo de vingança a dominassem. Ao saber do extermínio de sua família, ela escreveu: “nessas circunstâncias tão terríveis, a minha contribuição para o meu povo é que não podemos abrir mão da misericórdia. Precisamos nos tornar incapazes de odiar, aconteça o que acontecer conosco. Essa será nossa única força”.

Esse tipo de resistência interior e energia espiritual não se improvisa. Geralmente, as tradições insistem que, para realizar essa peregrinação interior para a fonte de águas vivas que é o Espírito Divino presente em nosso próprio coração, é preciso que a pessoa simplifique a sua vida, busque a sobriedade, ame o silêncio e, principalmente, aprofunde a sua capacidade de amar. O próprio Jesus, no Evangelho propôs, como condição para o discipulado, o despojamento pessoal e a disposição de partilhar com o outro tudo o que se tem e o que se vive.

A espiritualidade bíblica insiste que o cuidado com a interioridade não pode isolar a pessoa em si mesma. Ao contrário, é para torná-la mais capaz de sair de si e viver a comunhão com os outros.  Dietrich Bonhoeffer, teólogo luterano, mártir do nazismo, dizia: “Deus está em mim para você e em você, para mim. Ele está em mim, mas eu o encontro melhor em você e, então, você o revela presente em mim, assim como eu o mostro presente e atuante em você”.

Há quem pense na Mística e na Espiritualidade como coisas complicadas e exóticas, acessíveis apenas a pessoas muito especiais. A fé cristã nos assegura que, ao contrário, este caminho se realiza pela graça divina e é totalmente gratuito e democrático. É acessível a todos. Basta querer e aceitar o chamado divino. Vale para nós, hoje, o que Paulo escreveu aos cristãos de sua época: “Vocês não vivem mais sob o domínio dos instintos egoístas (carne), mas sob o Espírito e o próprio Espírito Divino habita em vocês” (Rm 8, 9).

Obs: O autor é monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares.
É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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