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(Mensagem de Páscoa, Abril 2019)
Por que estamos na Igreja, apesar de tudo?
Nossa travessia é perigosa, de tantas turbulências, tribulações e dores, por que ainda estamos aqui? Somos pouca gente e com tão poucos meios para trabalhar em vista da transformação deste mundo. E se pensamos na “Igreja da Libertação”, somos ainda menos gente no universo das Igrejas cristãs. Se cá estivéssemos por apego, mesmo que afetivo, a uma instituição com a qual nos identificamos, ou, quem sabe, que corresponderia melhor a nossos pequenos e mesquinhos interesses, não teríamos escapado da idolatria. Ídolos são qualquer coisa ou pessoa na qual se reflita nosso próprio rosto. Só vale a pena se estamos aqui por Deus. Só Ele merece que arrisquemos e soframos tanto e ainda mais. Vem-nos espontaneamente à lembrança o famoso poema de Santa Tereza d’Avila, a mística espanhola dos tempos da Reforma: “Nada te turbe, nada te espante; quien a Dios tiene nada le falta; nada te turbe, nada te espante, solo Dios basta”. E quando nos aproximamos de Deus, a beleza luminosa de sua santidade deixa a nu toda nossa precariedade de seres criados, contingentes, imperfeitos e pecadores. Na luz de Deus, é inevitável que se manifeste mais nítida nossa treva
Por isso, sentimos necessidade de pôr-nos em atitude de penitência, confessar nosso pecado. Aliás, na Igreja sempre se começa pela confissão do pecado. Já o Batismo é a “primeira penitência”, como se dizia na Igreja antiga; ao nos aproximarmos da Ceia do Senhor, confessamos o pecado; tantas vezes ao longo da vida sentimos reiterada necessidade de nos purificar; e ao fim, na partida definitiva, precisamos de modo particular de experimentar a reconciliação com a vida e seu mistério indecifrável… Tal ênfase na confissão de pecados poderia soar como moralismo, e disso muitos nos acusam. Há quem diga que disso resulte um povo fraco, susceptível a deixar-se manipular e dominar, marcado por sentimentos de incapacidade, indignidade e inferioridade. Não. Confessar o pecado não é outra coisa senão reconhecimento profundo, lúcido, de nossa verdade ant4ropológica e existencial. Não há exceção, “todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3, 23)… para que ninguém, se glorie, e “quem porventura se gloria, glorie-se no Senhor” (1Cor 1, 31). Dizer que todo ser humano é pecador equivale, em linguagem antropológica, a reconhecer a igualdade radical entre todas as pessoas e que, para serem e humanizar-se, necessitam umas das outras. Ninguém pode julgar-se superior a ninguém, o que não é fácil, pois nossas inseguranças nos tentam a esconder-nos sob a máscara da ilusão de superioridade, inventando-nos tantos títulos…
Se estamos feridos, se estamos dispersos, se nossa recíproca confiança e tolerância é débil, se há incertezas no horizonte, se entre nós há mágoas, dores, divisões… não é só porque “outros” nos magoaram, nos traíram, nos difamaram. Só nos redimimos na medida em que temos a coragem de olhar na profundidade de nosso ser e reconhecer a própria responsabilidade pelas feridas abertas que ainda sangram em nossa carne. Estamos como estamos porque, em grande medida, nós mesmos nos fizemos assim.
Enquanto não confessamos, com profunda contrição, nosso próprio pecado, e não encaramos sinceramente a nós mesmos(as) como agentes do mal, cujas conseqüências sofremos, permanecemos infantis, dependentes de outrem ou de circunstâncias externas, não temos nem decisão nem energia para nos reconstruir, como se cadáveres insepultos retivessem o absurdo poder de dominar os vivos, nós. Simplesmente acusar a outrem de nossas dores não nos redime, pois não nos salva do sentimento de dependência e fraqueza, talvez até de omissão e irresponsabilidade. Para termos a energia que nos renove e reconstrua, é preciso que nos reconciliemos, cada qual consigo mesmo(a), entre nós e com quem nos tem ofendido. É preciso perdoar a quem julgamos que nos tem ofendido, porque nós mesmos(as) nos reconhecemos devedores(as). “Não há quem seja inocente, nem mesmo um só”. “Perdoa as nossas dívidas assim como nós perdoamos”. Sofrimentos e tribulações, longe de nos endurecerem o coração, são-nos dados para amadurecer e abrir-nos à reconciliação e à compaixão. “Todos pecamos e estamos privados da glória de Deus”.
A direção do caminho tem de ser admitir nossa responsabilidade pela situação de pecado e de divisão que temos sofrido, é implicitamente também reconhecer que, em grande parte, nossa renovação e reconstrução dependem de nós. Eis por que renovação e reconstrução dependem de reconciliação. Reconhecer a “fraqueza” do próprio pecado é, paradoxalmente, afirmar a “força” de nossa responsabilidade, portanto a capacidade de decidir e de construir e reconstruir nosso destino. O coração reconciliado, livre do domínio de ídolos que nos acorrentem, abre-nos alegremente à esperança no futuro que nos aguarda. Sentir-nos fortes e capazes de não nos deixar vencer pelo abatimento e pela mágoa, abre-nos a agir com decisão em vista de “reedificar as ruínas antigas” (Is 61, 4). Para isto é que estamos em caminho. Não para acusar a outrem, pois assim continuaríamos sob o poder de ídolos, alienados, debaixo do peso da exterioridade da Lei. Estamos aqui para bater no peito e confessar nosso próprio pecado. Com essas pedras com que nos ferimos, e com que nos feriram, com essas mesmas pedras é que somos chamados(as) a reerguer nossa casa, que é o Templo de Deus.
Estamos saindo da Semana Santa. Quem sabe, assim podemos perceber a profundidade da palavra final de Jesus: “Vocês compreendem o que eu fiz?” (Jo 13, 12). “Se o compreendem e o praticarem, assim é que serão felizes” (Jo 13, 17). Ninguém tem limpas as mãos, ninguém tem limpos os pés, todos(as) necessitamos de nos lavar os pés reciprocamente. Sentir-se puro, isto é, superior aos demais, julgar a partir do tribunal da própria ilusão e máscara de inocência, é por si mesma a mais hedionda impureza, falso e alienante sentimento de superioridade sempre máscara dos sentimentos profundos de insegurança e inferioridade. Ao lavar-nos os pés uns aos outros, simbolizamos e, por isso mesmo, construímos o desejo de romper os confins de nossa própria pureza e cruzar os umbrais do Templo de Deus, para correr em direção ao Trono da Graça. Que nosso desejo se transforme em firme decisão de mudar de vida.
Um Povo em Comunhão
Temos de renovar em nós a mesma força daquela experiência que teve o profeta Isaías ao contemplar a santidade de Deus: sentir os lábios purificados, marcados indelevelmente por brasas do altar, de costas para o passado, prontos(as) para dizer: “Eis-me aqui, envia-me a mim!” (Is 6, 8). A confissão do pecado se transfigura em confissão do poder e da glória de Deus, sacrifício de louvor (cf. Sl 50, 14; 51, 18-19). Estamos aqui em continuidade com a multidão de homens e mulheres que ao longo da história têm confessado a fé, como o vemos tão belamente cantado na Epístola aos Hebreus, capítulo 11; empunhando palmas no cortejo de quem canta as vitórias de Deus, com júbilo e contentamento para exaltar Sua fidelidade. Espontaneamente nos vem à imaginação o grandioso cenário descrito em Apocalipse 14, 15 e 19. E o anjo explica a quem não compreende: “Estes são os que vêm da grande tribulação” ( Ap 7, 14). A confissão da glória de Deus se transforma em mandato missionário:”Todo o poder me foi dado, ide e evangelizai todos os povos!”. Se seu esplendor nos encanta, corremos irresistivelmente a proclamar Suas maravilhas.
Do mais profundo das raízes de nosso ser, temos de renovar diante de Deus a Fé que nos aponte a visão da Promessa e, assim, avive em nós a Esperança. A Esperança se traduza em Compromisso, pois, do contrário, ainda não seria Esperança, só mero desejo, sonho, humana expectativa. Não. Como nos ensina a Bíblia (cf. Hb 11), a Esperança nos arrebata a caminhar na direção da Promessa, pois essa é sempre experiência do Dom de Deus nas conquistas humanas. E o Compromisso da caminhada se verifica — faz-se verdadeiro — na amorosa dedicação mediante a Participação ativa de todos e de todas nós na obra comum de edificação do Templo de Deus (cf. 1Cor 1-4). Ou seja, participação na VISÃO, na DECISÃO de objetivos, estratégias e meios, e na AÇÃO.
Quem é a liderança na Igreja?
São criaturas humanas, com algumas qualidades e muitos defeitos, necessitadas da oração, da ajuda fraterna, do conselho, da compreensão do povo da Igreja e, por que não, da crítica amorosa, construtiva e leal. Pois nosso ministério é comum, é o ministério de Cristo, assumido pela fé e o batismo, e, mesmo em momentos difíceis, e até de conflito, o pressuposto tem de ser amor e confiança, não a suspeita e a adversidade. São irmãos e irmãs, iguais em tudo, também no pecado, com a tremenda responsabilidade de assumir liderança e cuidado. A servos e servas se impõe o jugo de ofertar todos os seus dons, e até a própria vida se preciso for, em proveito do povo, e não só do povo da Igreja, pois se devem a todos os filhos e filhas de Deus, sobretudo às pessoas mais necessitadas e abandonadas. São servos e servas de Deus. Sua tarefa primordial é exercer a Profecia. Não da própria palavra, mas da Palavra de Cristo, a qual estão impelidos a escutar escutar em conjunto com seu povo.
É com esse que têm de compartilhar a VISÃO dos caminhos mostrados pelo Senhor através da meditação comunitária das Escrituras, da atenção às pessoas e dos sinais que nos vêm da sociedade. Pelo menor dos irmãos pode falar o Espírito de Deus, dizia o patriarca São Bento em sua Regra Monástica. A liderança tem a tarefa de Cristo Pastor. Está chamada a convocar o povo a seguir pelo caminho, não a segui-la, mas a seguir a Jesus. Dizia muito bem Santo Agostinho de Hipona: “De vocês sou Bispo (Supervisor), e isto é fardo. Com vocês sou apenas discípulo, e isto é alívio e alegria”. Como discípula a liderança tem o papel de encabeçar a fila de quem se dispõe a caminhar no seguimento de Jesus “Pastor e Bispo de nossas vidas”. Tem ainda o papel de presidir o povo sacerdotal e ser o eixo visível da comunhão da Igreja.
Esse sublime tríplice múnus, nós só o compreendemos devidamente se o percebemos no contexto da realidade sacramental do mistério da Igreja. O ministério é uma das formas de se revelar o mistério da Igreja. Nenhum de nós “é”, só Cristo é o “sim” definitivo e a encarnação da realidade de Deus. Nós somos apenas “sacramentos”, isto é, sinais da presença de Cristo no meio de nós. A liderança está chamada e se ordena, isto é, se destina a isto: ser sinal na Igreja de que, não ela, mas Cristo é Profeta, Pastor e Sacerdote. Dessa revelação, a liderança é apenas sinal e instrumento. Esse múnus, ninguém o pode reivindicar como coisa própria e exclusiva, como poder a ser exercido a partir de si mesmo. Diz com propriedade e razão o Papa Francisco que o clericalismo é uma das maiores chagas da Igreja. A capacidade é de Cristo e essa se comunica ao conjunto de Seu Corpo mediante o Espírito que distribui a variedade de dons e, assim, consagra todo o povo como povo ungido como Cristo profeta, pastor e sacerdote, um povo todo ele ministerial. Por isso, o ministério na Igreja, só se o compreende sob as categorias da colegialidade episcopal, da colaboração presbiteral e diaconal, e da corresponsabilidade de todo o Povo de Deus, como insistia Dom Helder Camara.
Por mais necessários e úteis que sejam instituições, organizações e regras, a realidade do mistério da Igreja jamais caberá em leis e instituições. Somos Corpo de Cristo e nosso princípio inspirador é o próprio Espírito de Deus. Apesar de nossa “carnalidade”, isto é, precariedade e condição pecadora, não há outra dinâmica para viver Igreja a não ser a da santidade. E nossa experiência o está a confirmar sobejamente. Sem busca mística e disciplinada da santidade de Deus, sem obediência ao discipulado de Jesus, sem amor fraterno que é a comunhão no Espírito, em outras palavras, sem participação real na vida trinitária de Deus, quando Deus seja para nós sentido (Pai-Fonte), modelo (Filho-Fraternidade) e tarefa (Espírito-Missão), sem santidade, fora do processo de “divinização”, a Igreja nunca passará de empresa humana, e até de antecâmera de inferno.
Por isso, nenhum sistema social humano pode refletir a riqueza da vida comunitária em Cristo. Nem a monarquia, nem a aristocracia, nem mesmo a chamada democracia. A Igreja não é hierarquia, poder sagrado de alguns, à maneira de escada ou pirâmide onde se definem graus de superioridade e inferioridade. Na verdade, segundo a visão do Novo Testamento, a Igreja é uma roda de dons, roda coreográfica, isto é, de dança, intercâmbio constante de posições e papéis, à imitação da eterna e circular dança divina que os Pais da Igreja grega chamavam de “pericorese”, as pessoas em permanente circularidade, sendo elas mesmas enquanto se dão umas às outras. É triste perceber pelo caminho e até provar na própria carne como tantas vezes a Igreja se comporta e se expressa muito mais como organização e instituição de poder do que como fraternidade em Cristo. Quem preside é o eixo da roda. Em torno dele, os raios, de um lado, presbíteros e presbíteras; de outro, diáconos e diáconas. O presbitério com ele supervisiona as comunidades; a ordem diaconal, com ele, leva a Igreja além das fronteiras mediante a evangelização e a diaconia sócio-política. Mas o que roda nos caminhos do mundo, o aro da roda, é o Povo de Deus, na aderência imediata ao chão da vida quotidiana. Sem ele, eixo e raios são completamente inúteis. O centro da Igreja é o povo, nós somos servidores e servidoras. Todos os diversos ministérios estão dados “para levar os santos a amadurecerem no exercício do ministério em vista da edificação do Corpo de Cristo, até que alcancemos em conjunto… a condição de Ser Humano perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo” (Ef 4, 12-13).
A Igreja se projeta para o futuro
Difícil ser Igreja, porque difícil o discipulado de Jesus, como o vemos nos evangelhos por suas exigências tão radicais. Toda a caminhada se poderia resumir nas três palavras que nos desafiam: Reconciliação, Renovação, Reconstrução. E cada uma dessas palavras em três dimensões. Só seremos Igreja e reencontraremos a alegria do serviço de Cristo, se cada PESSOA de nós instaurar em si mesma esse processo de reconciliação, renovação e reconstrução. Precisamos de ser pessoas inteiras, alegres, confiantes. Para além de cada pessoa, temos de estabelecer processos de reconciliação, renovação e reconstrução da COMUNIDADE como tal. Temos de confiar umas pessoas nas outras, estar dispostas a participar, sentir-nos responsáveis pelo conjunto da vida do povo, vencer todo individualismo, partidarismo e isolacionismo, e avivar em nós o estilo de trabalho em equipe e em articulação. Finalmente, temos de ter muita clareza sobre a vocação da Igreja a serviço do Reino de Deus. Não somos um clube religioso, somos instrumento da política do Reinado de Deus no mundo, temos de ser agentes de reconciliação, de renovação e de reconstrução nesta SOCIEDADE tão entranhadamente marcada pela injustiça e opressão. O Evangelho é vocação e fermento para que cada pessoa alcance o nível de sua plena DIGNIDADE; para que nossa vida em comunidade seja marcada pelo compromisso da SOLIDARIEDADE fraterna que torna a vida mais feliz; para que a sociedade humana seja transformada mediante a JUSTIÇA, o que implica em “lutar pela transformação das estruturas injustas” e pela “preservação e cuidado pra com os recursos da Terra”, como nos exorta a Comunhão Anglicana em suas Cinco Marcas da. Missão.
Nossa missão é comum, somos um único Corpo. Só seremos realmente Igreja se todos e todas nos empenharmos em construí-la como obra comum, na complementaridade dos dons. Ninguém é mais responsável que outrem. Pode haver quem tenha mais responsabilidades. Mas cada qual de nós é igualmente responsável pela Missão. Pois não se trata de medir pelo tipo ou a quantidade de tarefas, mas pela intensidade de nossa responsabilidade de responder e corresponder ao Deus que nos envia. O Senhor é fiel. “Até aqui nos tem ajudado”. É Ele “nosso refúgio e proteção, auxílio seguro na tribulação”. Que nos abençoe e nos arrebate no santo vendaval de Seu Espírito!
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
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