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(Parte I: Princípios)

INTRODUÇÃO:  LITURGIA, A JOIA DA IGREJA

Em nossas comunidades, temos crescido em novas sínteses: comunidade local e dimensão diocesana; paróquia da Catedral cada vez mais consciente de sua missão de sé diocesana; Igreja, comunidade a serviço da sociedade; espiritualidade e ação social; diaconia sociopolítica e diaconia da Liturgia… É verdade que “longo ainda nos resta o caminho a percorrer”, mas não é possível ignorar os passos que, pela graça de Deus, com esforço e alegria, temos feito. É que a vida caminha em seu próprio ritmo, quanto mais quando temos de considerar que interferem os ritmos e a respiração de cada pessoa e de cada grupo.

Convido vocês a meditar sobre o que fazemos tão frequentemente, celebrar a liturgia. O texto será longo, para ser lido e pensado lentamente. Não porque a Liturgia seja o que há de mais importante na Igreja, apesar das aparências e de todo o investimento que fazemos ordinariamente no aspecto religioso e ritual da expressão da fé cristã. Na verdade, o que há de mais importante é o amor (cf. 1Cor 13). Aliás, é o que nos ensina claramente o Evangelho e, particularmente, a Primeira Epístola de São João. É o amor que nos define enquanto discípulos e discípulas de Jesus, pois “declarar” a fé com os lábios, diz São Tiago, até os demônios são capazes de fazê-lo (cf. Tg 2, 19). Pensar que sabemos orar pode ser terrível ilusão narcisista. Pois a oração pode não passar de simples exercício de olhar-se no espelho, para consolar-se ou confirmar-se, justificando-se pelas próprias “obras”. Facilmente, podemos iludir-nos na contemplação do próprio rosto, fechados(as) em nós mesmos(as), sem capacidade de abrir-nos  verdadeiramente a Deus, jogando-nos, confiantemente, para além de nós. Segundo o autor da epístola joanina é, ao abrir-nos a irmãos e irmãs que de nós necessitam, que testamos, realmente, a capacidade de abertura a Deus, o Outro por excelência. Por isso, o critério decisivo de pertença a Cristo é a capacidade e a decisão de amar (cf. 1Jo  4, 7-21; Mc 12, 28-34).

Sim, a Liturgia não é o mais importante na vida da Igreja, decerto o mais importante é o amor que se concretiza em dom de si, entrega, serviço, partilha e sacrifício, até da própria vida. É a vida em adoração, como ato contínuo de culto, nosso “corpo oferecido em sacrifício vivo” (cf. Rm 12, 1-2). É a vida consagrada, total e radicalmente, sem divisões nem dualismos. Adorar não é, prioritariamente, render culto ritual a Deus, é a prática do amor que tem de estar no centro da vida pessoal e coletiva, pois, das virtudes teologais, “a maior delas é o amor” (1Cor 13, 13). Por isso, nossas relações interpessoais e comunitárias, e o ministério de diaconia sociopolítica têm de ser o centro da vida quotidiana da Igreja. A fé não é outra coisa senão a nova divina visão que se nos comunica pelo amor e que surge da prática do amor, é ver omundo como Deus o vê, a saber, amorosamente. A esperança é firme confiança em que o “éschaton” é o que nos move, em outras palavras, é o Fim do caminho que já está no meio, ou seja, Deus como dom total e absoluto, plenitude de nossa vida, já agora. Se o amor nos leva a operar com as mãos para que a vida seja mais bela; se a fé nos descortina horizontes sempre de maior beleza na experiência da realidade do mundo; a esperança de que a beleza é possível, o que levava Santo Agostinho a cantar: “ó verdade tão antiga e sempre nova”, é o que nos move a celebrar, proclamar a poesia de nossas utopias, criar o espaço privilegiado do exercício de esperar. A liturgia é, por excelência, celebração da esperança.

Sim, é verdade, Liturgia não é o mais importante, é só “sacramentum” da realidade vivida e esperada, só traz à tona o “mysterium absconditum”, oculto no íntimo de nossos amores. É só a jóia, pedra preciosa a enfeitar de beleza e brilho a vida da Igreja de todo dia, é o “glamour” autêntico escondido no quotidiano, no ordinário, na simplicidade dos gestos desde os mais simples. Com efeito, liturgia não são os dedos, nem os braços, nem a cabeça, nem o pescoço do corpo da Igreja, mas é a jóia que lhes confere encanto, brilho, resplendor. Manifesta aquela dimensão estética, criadora de beleza, que está na raiz dos sonhos estéticos que fazem nascer qualquer projeto de vida (se o mundo é bonito – cf. Gn 1 – pode ser ainda mais bonito), e que se concretiza no imperativo ético (se pode ser, deve ser mais bonito) e na prática política (se deve ser, tem de ser mais bonito, com os meios de que de fato dispomos). Na poética da Liturgia, resplende a beleza, irradia o brilho da “glória de Deus que resplandece na face de Cristo” (2Cor 4, 6) e é capaz de, penosamente, redimir nossa vida e transfigurá-la pela beleza do amor (cf. 2Cor 3, 18).

Não sei se serei capaz, pois falar de Liturgia é já tocar, de perto, horizonte e atmosfera que sentimos em Apocalipse, livro eminentemente litúrgico, quando se nos abrem os véus e como que se nos revela o céu. Justamente a visão que teve Jesus ao receber o batismo: “E enquanto subia da água, viu rasgados os céus e o Espírito descer até Ele” (Mc 1, 11) na forma do pássaro gerador da criação (cf. Gn 1, 2; 8, 8-12). Como quer que seja, minha intenção é só ajudar a Igreja a se deixar encantar pelo resplendor da pedra preciosa, que, é certo, não está destinada a substituir o “corpo” (cf. Rm 12, 1-2), mas a dar-lhe encanto e ressaltar a beleza de seus traços. Liturgia é feita para tornar mais irradiante o brilho da vida e nos devolver a ela, com a firme convicção de que pode ser ainda mais bela, se lhe transfundimos a energia do Espírito que habita nossos corpos como em templo (cf. 1Cor 3, 16; 6, 19-20). Afinal de contas, liturgia é ato sublime de vida, e esta é templo, adoração, nosso “culto racional”, isto é, o culto como deve ser (cf. Rm 12, 1-2).

Eis por que deixei que esta fosse a “última” Carta Pastoral. Como um ato de entrega da jóia da Igreja, sempre a preservar com o cuidado de quem guarda um tesouro, que enfeita seu corpo para se apresentar dignamente, como noiva bonita, ornada e engalanada, enfeitada para seu Amado (cf. Ap 21-22; a partir daqui valeria a pena reler Oseias e Cantares).

LITURGIA É ADORAÇÃO

Conceito chave na tradição anglicana e nela onipresente é o de “adoração” (“worship”, em inglês). Quem sabe, haja nisso forte influência do monaquismo que, como sabemos, está nas raízes da formação do Cristianismo nas Ilhas Britânicas. Provavelmente, através do monaquismo, chega a influência da Igreja do Oriente na qual o conceito é central. A vida é adoração, consagração do tempo e do trabalho a Deus, causa transcendente e glória de toda a criação (cf. Sl 8; 19; 136). O lema “ora et labora” sintetiza e manifesta, justamente, esta mentalidade: “a obra de nossas mãos”, o trabalho, é o exercício da oração, da consagração a Deus de nossa vida; doutro lado, a oração é chamada de “opus” (obra) ou de “officium” (trabalho) ou também “servitium”, ou seja, os dois tipos de “trabalho” se entrelaçam. É bom lembrar que “culto” tem a ver com “cultura” (a totalidade da obra criativa humana sobre a natureza), e o termo “cultura” se aplica particularmente ao trabalho agrícola e ao trabalho intelectual  – obra de nossas mãos e obra de nosso íntimo…

Daí, a imagem da liturgia como espaço privilegiado do sublime encontro entre terra e céu. No Anglicanismo também a liturgia é algo central. É experiência da dimensão profunda do mistério cristão, enquanto aliança entre a comunidade humana, reunida pelo Espírito em torno da Trindade, princípio e modelo de toda a realidade criada. Na celebração comunitária da liturgia, a Igreja se expressa como comunidade e deve aprender, na prática, a ser efetivamente comunidade. Também é na celebração reiterada da liturgia que a Igreja aprende o que é para crer : “Lex orandi, lex credendi” (o que se impõe como expressão da fé é o que se experimenta primeiro na oração). É da “concentração” (pensemos em atletas) na liturgia que a Igreja se “dispersa” para realizar a tarefa de evangelização, dizer ao mundo, por gestos e palavras, que o amor é possível, que a comunhão é a forma autêntica de viver a humanização, de tal forma que a experiência comunitária (trinitária) se difunda no tecido da sociedade e chegue até a penetrar a própria criação material. É por isso que se diz que Anglicanismo é, antes de tudo, antes de ser “doutrina”, é “atitude e atmosfera” de vida, ou seja, espiritualidade. Não devemos, porém, esquecer que, ao falar de liturgia, estamos a pensar sob a categoria de “sacramentalidade”. Ou seja, celebração litúrgica é evento sacramental, a saber, símbolo da realidade da salvação que age eficazmente, na vida das pessoas, da comunidade, da sociedade, do cosmos. Celebramos as obras de Deus em nossa vida, em nós e por nossas mãos. Como nos diz, expressamente, o Apóstolo São Paulo, “o sacrifício vivo” é nosso corpo, isto é, nossas relações, ações e as estruturas de organização que criamos, tudo isso consagrado a Deus. E esse ato de consagração se revela, em sua verdade, quando se opera em nós a “metánoia”, ou seja, a transformação profunda de sentimentos e pensamentos e, por decorrência, de comportamentos, na medida em que já não nos “con-formamos” (não assumimos a forma, não nos deixamos modelar) às estruturas do sistema deste mundo (cf. Rm 12, 1-2).  Adoração se dá, antes de tudo, na realidade do dia a dia. Os antigos teólogos falariam aqui de “res”, coisa, acontecimento, isto é, ”nós em Cristo”, vitalmente. No ato litúrgico, essa realidade (“res”) vem à tona, conscientemente, mediante “sinais” (“sacramentum”), coisas e gestos que revelam a realidade escondida no íntimo e no quotidiano da vida ordinária no mundo. Enquanto se realiza aqui e agora a liturgia, quando os “sinais” compõem o ato litúrgico, então, temos o que os medievais chamavam de “sacramentum et res”, ou seja, os sinais no ato de revelar (tirar o véu) a realidade que está em nós. Lutero formulava a mesma coisa, quando dizia que, “postos os elementos (sinais), a Palavra de Deus constitui o sacramento”, isto é, mediante os sinais e a Palavra, revela-se a graça salvadora presente em nossa  vida.

É por isso que, na Igreja, no centro de tudo, tem de estar o amor que restaura pessoas e situações de vida, como o mostram claramente os evangelhos e se explicita de maneira particular na Primeira Epístola de São João. A liturgia, o culto, não é o centro de tudo, pois o Cristianismo não é, nem simplesmente nem acima de tudo, religião. Se assim se apresenta hoje na sociedade, é resultado de um lamentável desvio, desde que a Igreja cristã se tornou religião da sociedade greco-romana e, assim, legitimação ideológica de sua organização social, política e cultural. Não é o que vemos no Novo Testamento e, muito menos ainda, no comportamento de Jesus. Naturalmente, como se dá com Jesus, o amor se exerce por gestos e palavras, e, em dimensão estrutural, através da diaconia sociopolítica da Igreja, marcada essencialmente por gestos e palavras proféticas (cf. Lc 4, 16-30). É isto o que se celebra e, por celebrá-lo, se confirma a decisão e o compromisso de agir, de lutar para que este mundo vença o pecado e vá além de sua forma atual, modelada por poderes de opressão (cf. Ef 6, 10-17; Cl 1, 16), e se transforme de acordo com os sonhos do Criador: “E Deus contemplou o que tinha feito  e exclamou: é muito bonito” (Gn 1, 31: é bom lembrar que, em Hebraico, “bom” e “bonito” são o mesmo vocábulo; cf. 1Cor, 7, 31). Não é outra coisa o que vemos nas “05 Marcas da Missão”, formuladas pela Comunhão Anglicana há anos: nascida do anúncio das boas novas pela conversão das pessoas, a Igreja se sente um povo convocado por Deus a reunir-se e se fortalecer como comunidade de crentes, pela comunhão fraterna, a escuta atenta da Palavra de Deus e a celebração da liturgia, particularmente dos sacramentos. Mas esse não é o objetivo de sua existência, pois é enviada por Deus ao mundo para, em favor dele, exercer a tarefa salvífica do próprio Deus, revelada na vida e obra de Jesus de Nazaré: prestar serviços de amor a quem necessitalutar pela transformação das estruturas injustas da sociedade; zelar pelos recursos da criação, conservar e renovar a vida na terra; e tudo isso em vista de   promover e garantir o “xalôm”, a Paz, ou melhor, a felicidade ou “bem-viver. Assim, na liturgia, celebramos e testemunhamos a maravilhosa obra de Deus, que se realiza pelo poder do Espírito Santo, através de nós e de todas as pessoas que lutam por um mundo novo, e, deste modo, nos confirmamos e fortalecemos na “missão de Deus”.

Tudo isto significa que liturgia é, essencialmente, evento simbólico que se dá pela mediação de determinados instrumentos de comunicação (posturas corporais, relações entre as pessoas, gestos, coisas, palavras, rituais, etc). Sua função, enquanto produto cultural (religioso), é servir a um objetivo antropológico, social e político: expressar e, ao mesmo tempo, reforçar, e até  produzir e legitimar uma determinada visão do mundo, o que equivale  a uma especifica maneira de compreender a ação, uma mentalidade, em outras palavras, uma espiritualidade, ou seja, explicitar os motivos teologais da ação e das lutas da vida.

Daí decorrem duas perspectivas, a partir das quais a Igreja é chamada a avaliar sua vida, as  relações e as instituições e, particularmente, o culto com o qual tanto se ocupa: estamos a produzir e manifestar uma vivência e visão do mundo de acordo com os padrões do sistema estabelecido, de exploração, dominação e alienação?  Ou estamos a promover a assimilação de atitude crítica que estimule a confrontar o sistema  estabelecido e, assim, encarnar a profecia bíblica, cuja finalidade é denunciar a injustiça  nas relações humanas e com o universo, e anunciar novas possibilidades da realidade? Só assim se garante à vida cristã sua dimensão escatológica de abertura ao futuro absoluto e transcendente em relação às ”obras” já produzidas “por mãos humanas” e ao presente como tal. A primeira perspectiva é o que a Bíblia designa como “serviço aos ídolos”, a segunda é o “sacrifício de louvor” ao Deus vivo, interessado na salvação, a saber, na cura dos males, na restauração da integridade das pessoas, em suma, na libertação e plenificação gloriosa da imagem de Deus na humanidade.

IMPORTÂNCIA DA LITURGIA

Temos de dedicar zelo, cuidado e reflexão à liturgia. Não porque seja o que há de mais importante na Igreja, uma vez que o mais importante é a prática do amor. Mas porque, através dela, é que aparece ao povo a face mais visível da Igreja, mais pública e identificável.  Isto é assim porque o senso do religioso é espontâneo e fundamental na vida das pessoas, celebrar dá prazer e é necessidade humana primária. Até quem é ateu tem necessidade de celebrar a vida  e manifestar sua dimensão poética profunda, isto é, sua transcendência, mesmo que essa não se refira a um Deus pessoal. De fato, é mediante a liturgia que a Igreja, ordinariamente, mantém contacto com a população, pois é o espaço aonde o povo acorre em maior quantidade e com mais frequência. E, em última análise, lamentavelmente, dependemos de uma já longa tradição de fazer da liturgia uma das atividades, senão a atividade, mais importante da vida da Igreja.

Como dito acima, liturgia é expressão poética, simbólica, de nossa vida consagrada à obra deDeus. Em todo caso de amor é assim, precisamos de símbolos e momentos simbólicos que manifestem e confirmem os sentimentos que nos inspiram a mover-nos  e agir. O problema é que muita gente tem compreensão equivocada do que significa “símbolo”. Quantas vezes já não temos escutado frases como esta: “Ah, pensei que era real, mas é só símbolo”? Ora, “sým-bolos” quer dizer aquilo que nos conecta, une com outra coisa ou pessoa. O contrário é “diá-bolos”, o que divide, aparta, separa. No caso, o “sinal” externo nos conecta com a “realidade”, invisível, interior, vivida. Mas atenção, não se trata de realidade distante que é apenas lembrada mediante o sinal, mas de “realidade” presente, agora, perto de nós e em nós. Ao produzir o “símbolo”, fazemos vir à tona o que está “realmente” presente, mas não se mostra por si mesmo, só por nossos gestos e relações, por nós e em nós. Os mistérios da fé: o amor de Deus como Criador e Pai; a condição sublime de sermos, em Jesus, filhos e filhas; a ação redentora e santificadora de Deus, mediante Seu Filho e o Espírito Santo; a presença real de Cristo ressuscitado, vivo entre nós, como Cabeça do Corpo que somos nós, e do universo inteiro (cf. Cl 1, 15-20)… Tudo isto é realidade já presente, mas “escondida com Cristo em Deus”, pois não se mostra por si mesma, só por “sinais”.

Não é, porém, de admirar, pois também em nossas relações humanas as realidades mais belas e profundas não se mostram por si mesmas, só se revelam por sinais. Pensemos no amor. Não se mostra em si mesmo. Está “presente” realmente, marca o mais íntimo de nós, move o que somos e nosso agir, mas só aparece por gestos e relações. Beijar e abraçar, por exemplo, não são o amor, são sinais exteriores que podem revelar (sim, “podem”, porque correm o risco de ser falsos e significar até mesmo traição, pensemos no beijo de Judas), podem revelar que o amor está presente  e, “deseja”, pede fazer-se visível. Em outras palavras, os símbolos são sinais que nos conectam com a realidade atual e presente na vida, mas escondida. É isto o que chamamos de “sacramento”  ou liturgia. “Símbolo” é o que faz vir à tona as dimensões mais profundas e mais lindas da vida. Ao celebrar a Eucaristia, por exemplo, a Igreja não costuma falar de “memória de Jesus”, justamente para não deixar que tudo se perca em mera “lembrança”. Faz questão de falar de “memorial”, noção bíblica muito mais rica e que aponta para a presença da vida e da obra de Jesus no momento atual de nossa vida. Não se trata de mera recordação, mas de vivência atual do mesmo mistério revelado no passado, presente agora em nós. O Ressuscitado está no meio de nós (cf. Jo 20, 19-29; 14, 22.28; 15, 1-17), é Emanuel (cf. Mt 1, 23).

É por isso que podemos acrescentar que a liturgia manifesta a vocação escatológica do povo de Deus, a saber, aquele dinamismo, já presente, que nos impulsiona na direção do futuro de Deus, pois Deus presente entre nós já carrega e garante esse futuro. De repente, no espaço e no tempo do mundo presente, no “santuário”, espaço que reservamos simbolicamente para que aconteça o aparentemente impossível, como que “o véu se rasga”, abre-se a cortina e, à semelhança do que se narra em Apocalipse, nós nos sentimos participantes da liturgia celestial, para além do tempo e do espaço quotidianos. Eis por que a liturgia é espaço e momento particularmente estéticos, de beleza que deve atingir todos os sentidos – olhos, ouvidos, olfato, tato, pele, gosto, enfim, mexer com nossas emoções, desde o profundo das vísceras, e com nossas relações com as pessoas e as coisas. Isto está a exigir que a preparemos da melhor maneira possível, justamente como se faz com obra de arte, de poesia, de teatro, de música, de dança… Há texto, retórica, cenário, coreografia, arquitetura, escultura, pintura e ação de personagens em cena. Sim, não esqueçamos, liturgia é “drama”, expressão totalizante, concentrada, daquilo que se acha disperso e fragmentado nos tempos da história passada e nas vivências do quotidiano de agora. Como em bom teatro, tudo tem de chamar a atenção para o que há de mais profundo na vida que se vive a cada dia. Daí, a liturgia dever ser, simultaneamente, bela, poética e mística, “evento” estético, que recolhe e antecipa a ética e a política. Celebrar e contemplar, “como se estivéssemos a ver o invisível “(cf. Hb 11, 27), deve enviar a agir para que a Beleza se encarne no dia a dia da vida e do mundo, pois “o Verbo se fez carne” (Jo 1, 14; cf. Pr 8; Sb 7).

Permita-se que fale de duas experiências pessoais. Durante o período em que fui bispo na Diocese Anglicana de Pelotas, tive a felicidade de ser, ao mesmo tempo, pároco de duas comunidades, sucessivamente. Na primeira, o objetivo principal era suscitar o senso de participação, não só na execução, o que já acontecia de maneira exemplar, mas também na reflexão e na decisão; avivar nas pessoas o senso missionário; promover o estudo bíblico; renovar o canto na liturgia. Experiência gratificante que ainda hoje recordo com alegria e saudade.  Na outra, o principal era renovar a liturgia, mediante a constituição de uma “equipe de liturgia”. Reuníamo-nos, cada segunda-feira à noite, para avaliar o culto do domingo e planejar a celebração do domingo seguinte. Éramos uma diácona, um ministro pastoral auxiliar, o primeiro guardião, a coordenadora da UMEAB (associação das mulheres), mais um leigo e eu.  Compartilhávamos as leituras bíblicas e as comentávamos, como também recordávamos o que estava acontecendo em torno de nós, na comunidade e na sociedade, em vista de preparar a pregação; escolhíamos os cantos correspondentes; cada qual se encarregava de uma determinada tarefa, inclusive da pregação. Tudo devia acentuar o tema bíblico do domingo e levar a comunidade ao compromisso ao qual a Palavra nos chamava como povo em comunhão. Era bonito sentir como a congregação percebia que a celebração não saíra de uma única cabeça, nem estava concentrada numa só pessoa. Ou seja, a maneira de preparar a liturgia já era mensagem de comunhão e participação, de intercâmbio de dons entre clero e povo. Sinto saudades daquele momento, quando experimentávamos o que o povo gosta de dizer: “O melhor da festa é esperar por ela”.

A LITURGIA, EXPRESSÃO DO QUE É DE FATO A IGREJA

Todos e todas nós conhecemos o clássico adágio do Catolicismo, desde a Antiguidade, apropriado com muito zelo pela tradição anglicana: “Lex orandi, lex credendi”.  Isto quer dizer que na liturgia se revela o que cremos, é espelho de nossa fé. Podemos acrescentar-lhe uma paráfrase e dizer também: “Lex orandi, lex agendi”, na liturgia também se revela como agimos, não é apenas espelho do que cremos, mas do  que na realidade somos. Ao celebrar, temos o retrato de como vivemos nossa vida na Igreja e como Igreja.

A liturgia vai, necessariamente, mostrar se somos comunidade aberta ao mundo e aos problemas da vida do povo, ou se somos um gueto de gente piedosa; se somos um grupo de pessoas comprometidas com a obra de Deus, ou apenas buscamos no culto consolo para nossas dores e expressão de nossos sentimentos religiosos; se somos comunidade alternativa ao sistema do mundo, onde se acolhem em pé de igualdade gente rica e gente pobre, homens e mulheres, pessoas adultas, jovens e crianças, gente madura na fé e neo-convertida;  ou  somos classistas, sexistas, moralistas, gente cheia de preconceitos e excludente; se somos uma roda de dons, onde se partilham serviços , carismas e bens, ou uma pirâmide hierarquizada, conforme modelos de poder mundano; se somos comunidade participativa  na qual as pessoas leigas têm plena condição de autoridade e criatividade, como “laós (povo) de Deus”, ou se somos um “rebanho”  controlado e dominado pelo clericalismo de pastores ou padres; se somos comunidade onde domina o personalismo do clero ou de pessoas leigas influentes, ou, realmente, uma fraternidade vivida com alegria e participação e sem constrangimentos; se somos um povo politizado, com atitude crítica diante de qualquer sistema estabelecido, seja civil, militar ou eclesiástico, ou uma massa acrítica e alienada; se somos gente com profundidade espiritual, aberta culturalmente, preparada teologicamente e capacitada metodologicamente, ou gente superficial, infantilizada, despreparada. Na maneira como celebramos, infalivelmente, deixamos transparecer a maneira de pensar a Igreja (teoria eclesiológica) e de viver a Igreja (prática eclesial). Nossa práxis litúrgica (prática e teoria) será reflexo da práxis eclesial (prática e teoria).

Se é assim, qualquer celebração litúrgica deve carregar algumas características elementares: deve ser tradicional e inculturada, carregar nossa herança de família e, ao mesmo tempo, testemunhar que nossos olhos estão abertos ao contexto no qual estamos inseridos(as). Dom Sherrill, bispo emérito e fundador de nossa Diocese, dizia certa vez, com sabedoria: “Ser anglicano é, ao carregar nossa herança de família, fazer em cada lugar onde estamos, com a iluminação do Espírito Santo, o de que o povo necessita aqui e agora”; presidida (atenção, não “celebrada”) pelo clero, mas celebrada pela comunidade toda, portanto, com a qualidade verdadeiramente de “oração comum”, isto é, da comunidade. Por isso, o que está no centro do espaço litúrgico é a mesa da refeição comunitária, não a tribuna do pregador; bem preparada para que “faça acontecer” e não seja apenas ato de recitação de um texto. Tem de levar em conta as lições bíblicas com o tema central que propõem para cada celebração, a situação em que se acha a comunidade no momento, e os problemas da sociedade que nos envolve e, assim, seja cheia da vida; participativa, com tarefas do clero e do povo leigo, de tal modo que não esteja centralizada, personalizada e clericalizada.

LITURGIA É PEDADOGIA: PROFECIA DO QUE A IGREJA DEVE SER

Se “lex orandi, lex credendi”, a Liturgia é espaço privilegiado de fortalecimento da fé e de aprendizagem e assimilação da mente da Igreja (doutrina, catequese, teologia, prática conforme o Evangelho)). Por isso, é imprescindível dar particular importância a sua função pedagógica que se desdobra em três aspectos: deve formar para a koinonía (comunhão da vida comunitária) que se edifica mediante a diakonía (serviço fraterno),  deve ser disdaskalía(transmitir a doutrina da fé), e deve ser mystagogía  (introduzir ao mistério de Cristo revivido em nossas vidas).

O mais elementar é o povo perceber o curso do Ano Litúrgico, ou Ano da Igreja. Conhecer as várias diferentes quadras do Ano, saber de sua importância e sentido.  Sobretudo as quadras de Advento-Natal-Epifania e a da Quaresma-Páscoa, concluindo-se com a festa de Pentecostes e o Domingo da Trindade. Ao longo do ano se desenrola pedagogicamente, mediante “drama”, o mistério da salvação, para que sejamos introduzidos(as) nele e o assimilemos profundamente ao crescer na identificação com Cristo. Ao celebrar o Ano Litúrgico, a Igreja nos convoca  aconsagrar a Deus todo o curso de nossa vida, da sociedade e da própria criação.

Que bom será se o povo cristão tiver em mãos as indicações do Lecionário Bíblico para a leitura diária das Escrituras! Se tiver conhecimento do Santoral para contemplar, no testemunho de santos e santas, como pessoas humanas como nós têm vivido o mistério de Cristo, de tal forma que em suas vidas resplandece a vitória da graça de Deus. Assim, são exemplo e estímulo para a caminhada, como o faz a Carta aos Hebreus (cf. Hb 11-12). E há certos sinais ou costumes que, com sabedoria, a tradição da Igreja tem conservado e que são pedagógicos, como, por ex., a cor litúrgica para cada tempo;  a diferença nos paramentos entre as ordens; as velas e as flores; a coroa do Advento; o presépio; as cinzas (ou outro sinal mais atual) para marcar o começo dos exercícios quaresmais; o Domingo de Ramos com a evocação da entrada de Jesus em Jerusalém, aclamado com ramos de palmeira; o Tríduo Pascal com a bênção dos óleos e a renovação dos votos ministeriais, que deveriam ser do clero e do povo; o lava-pés; a solenização da Ceia do Senhor e sua relação com a ceia judaica; o desnudamento do templo; a Vigília Pascal, “mãe de todas as vigílias”, dizia Santo Agostinho, com a cerimônia do fogo novo, do círio e da água para lembrar o batismo… Uma outra tradição anglicana – não católica romana – é, durante a Quaresma, abster-se de celebrar  casamentos, por seu tom particularmente festivo, e batizados, reservando estes últimos para a Vigília ou o domingo de Páscoa, momento mais apropriado para batizar.

Um dois ministérios mais importantes na Igreja é o do canto e da música, e a eles se pode associar o da dança. Digo sempre que o canto está na mesma altura da pregação e, sob certo aspecto, acima dela. É que a pregação, por sua própria índole, tem de apelar bastante para o raciocínio, a reflexão, enquanto o canto e a música vão ao mais recôndito das emoções. O sentimento é a região mais secreta, brota das vísceras, o mais íntimo, a região dos afetos, dos desejos profundos, onde se acha nossa dimensão erótica (do prazer) e a sexualidade.

Não se trata simplesmente de “tocar e cantar”, como se fosse só enfeite ou entretenimento. O canto e a música na liturgia devem fluir da espiritualidade de quem dirige esse ministério. Devem ser fruto de sensibilidade espiritual.  Por isso, como se dá com o ministério pastoral, o “ministério de louvor” exige de quem o carrega profunda coerência de vida cristã: honestidade nas relações e nos negócios, vida de oração, simplicidade, bondade, modéstia e humildade, delicada atenção às pessoas e fina sensibilidade para perceber seus sentimentos e estado de espírito. Muito para além de arte, é “espírito”, atitude ética e atitude mística. Assim, o ministro ou ministra se prepara para enfrentar certas tentações típicas que avançam, com frequência e às vezes sorrateiramente, sobre quem se põe à frente e, particularmente, pastores(as) e ministros(as) de música. No caso destes(as), com o agravante de que se trata de artistas: a vaidade, o encantamento consigo mesmos(as) e com a própria obra, a concorrência, a dificuldade de trabalhar em equipe, o personalismo, o exibicionismo e a facilidade para impor seus próprios gostos e projetos…

Além disso, é ministério que supõe fina sensibilidade para auscultar o estado de espírito da comunidade e sua realidade no que diz respeito ao estágio de maturidade da fé e da prática cristãs. Seu encargo é o de conduzir a comunidade a expressar pelo canto o que já vive e pensa, seu jeito de crer e de praticar a fé. Mas é sua tarefa também ajudá-la a sedimentar e aprofundar as convicções de fé. Além disso, o canto da fé tem de ser profético, como se lê nas Escrituras (cf. Ex 15, 1-21; Jz 5; 1Sm 2, 1-11; 1Cr 16; Jt 16; Lc 1, 39-80; Mt 11, 25-27). Na mesma linha profética, de louvar a Deus por proezas na história em favor de Seu povo e sobretudo pela consolação e o levantamento de quem é pobre e abatido, encontramos muitos textos nos livros proféticos e em diversos salmos. Para isto, é necessário ousadia, assim como, ao mesmo tempo, agudo senso de paciência pedagógica para conduzir delicadamente a comunidade a crescer na fé e perceber novas dimensões dos apelos de Deus, particularmente ajudá-la a abrir-se a manifestar, pelo canto, o compromisso da Igreja – de nós – com a “obra de Deus”, que é a libertação das pessoas, particularmente do povo mais pobre e desprezado pelos sistemas deste mundo. Em outras palavras, ministério de música é carisma de inspiração“profético faro” de pastor e instinto profético.

Finalmente, não devemos esquecer que o ministério de música não é para produzir “show musical”, objeto de enfeite ou de distração, não é para chamar atenção para si, mas para servirna liturgia, ou seja, é estímulo e auxílio a uma comunidade orante. Por conseguinte, é preciso escolher o que cantar em cada quadra litúrgica. Há cânticos próprios de Advento, tempo de espera; de Natal, alegria e louvor para celebrar a Presença; de Epifania, revelação de Jesus a todos os povos; de Quaresma, tempo de penitência, de intensificar a oração, a meditação da Bíblia e de aprofundar a própria conversão; de Semana Santa e de Páscoa, celebração da doação total de Jesus e de Sua Ressurreição. Deve mesmo haver aqueles cânticos que só voltam cada ano na quadra litúrgica apropriada. Não é para cantar qualquer coisa em qualquer tempo. Música litúrgica tem tudo a ver com memória afetiva (o que se cantava em casa, ou na infância, ou em determinados eventos de nossa história pessoal, familiar, comunitária…), com discipulado, com formação bíblica, com catequese, com conscientização e aprofundamento dos critérios do Evangelho, com profecia e estímulo a comprometer-se com a obra de Deus na sociedade. Tem tudo a ver com “nós”, e não apenas com “eu”…

Além de observar a quadra litúrgica, o canto tem de ser apropriado a cada momento da celebração. Uma coisa é cantar na “entrada”, outra, é preparar-se para confessar pecados; outra é louvar e agradecer pela generosa graça de Deus que se derrama em nossas vidas, outra é cantar para meditar, o salmo, por exemplo; outra é aclamar o Evangelho, santa palavra de Jesus; outra é cantar para expressar nosso ofertório de vida e bens; outra é celebrar nossa comunhão com Cristo e entre nós;  outra é o canto final de envio e de compromisso com a  missão…  Cada momentos desses exige tipo de canto diferente.

Há certas Igrejas aonde nunca se chega com atraso, pois o culto está sempre, de certo modo, a recomeçar: canto, leitura, palavra, testemunho; de novo, canto, leitura, pregação, canto… Em nossa Igreja, no entanto, a celebração da Santa Eucaristia tem um ritmo próprio, de acordo com duas linhas dinâmicas. Uma corre em ritmo ascendente, cada parte do culto vai conduzindo a comunidade ao ápice que é a Grande Oração Eucarística e a santa comunhão. A outra linha corre em ritmo circular, tudo deve girar em redor do tema bíblico do dia. O canto litúrgico deve levar em conta essas duas linhas. De um lado, conduzir a comunidade a dirigir-se à mesa, ao momento sublime da Ceia do Senhor, para participar do mistério da Paixão e da Ressurreição de Jesus. Santa Ceia não é apêndice à liturgia da Palavra. Daí, a importância do cântico de ofertório, de comunhão e de envio, que contribuem como pedagogia “mistagógica” (que introduz ao mistério da fé). Doutro lado, o canto deve levar a comunidade a assimilar o tema bíblico proposto pelas leituras e pela homilia, deve cumprir a função de “eco” da palavra bíblica e, assim, ajudar a comunidade a interiorizá-la e aprofundá-la, enquanto a recebe sempre de novo, de variada forma, ao longo da celebração, já desde o processional de entrada, passando pelo canto de confissão, o louvor, a aclamação ao Evangelho, o ofertório, a comunhão até o envio. Destarte, será fácil ao povo levar o tema bíblico na mente e no coração para toda a semana, fortalecido pela comunhão no Corpo do Senhor, presente entre nós.

 CONCLUSÃO

Espero que esta reflexão, sobre princípios básicos da relação entre liturgia e vida cristã, a jóia preciosa e “o corpo oferecido em sacrifício vivo”, ajude a renovar em nós a compreensão mais plena da função do culto como expressão e, ao mesmo tempo, confirmação de nosso compromisso com “o brilho da glória de Deus” neste mundo.

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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