Encontramos um exemplo extraordinário de hospitalidade e cuidado na Bíblia, no Novo Testamento, no Evangelho narrado por Lucas, uma das páginas mais importantes da história humana relacionada com a hospitalidade e o cuidado do outro. Trata-se da parábola do bom samaritano, que todos nós conhecemos e que se transformou num verdadeiro patrimônio da literatura universal, para além da cultura judaico-cristã (cf. Lc 10,30-38).
Inspirados nessa parábola, destacamos algumas características essenciais para o exercício da hospitalidade. A primeira atitude que constatamos é de total descaso e indiferença. O sacerdote e o levita veem o outro necessitado, mas não lhe dão a mínima importância. Ambos são membros do povo escolhido, não se fizeram próximo do outro. A segunda atitude é de quem vê, se comove e muda radicalmente os seus planos. De quem coloca o outro em primeiro lugar; e sua agenda e interesses, em segundo plano. Testemunham hospitalidade e cuidado. Segundo as leis e cânones da época, não se poderia esperar nada de bom desse samaritano, pois é considerado um herege e está fora da lei divina.
O samaritano, diante do despojado e assaltado, suspende sua agenda de viagem, para, se aproxima e vê o outro. Não se trata de uma visão fria de jornalista que busca uma reportagem sensacionalista. O samaritano vê com o coração, por isso se enche de “compaixão”. Ele se despoja de si próprio e prioriza o outro, “vendo-o” e descobrindo-o na sua originalidade de ser e, em seguida, presta-lhe cuidados. Esse gesto de cuidar se traduz num serviço de profunda solidariedade e compaixão. Compaixão significa “assumir a mesma ‘paixão’ pelo outro, sofrer com quem sofre, mas também se alegrar com quem se alegra”.
Amor sem condições − O samaritano se aproximou do outro e se fez seu próximo. A atitude que temos em relação aos outros faz emergir a ética. Ele “tratou de suas feridas’’, “colocou-o na sua montaria” e “levou-o a uma hospedaria mais próxima”. Não foi apenas um cuidado emergencial, mas ele também se preocupou com o depois, pagou as despesas de abrigo. Manifestou, enfim, uma hospitalidade incondicional até o fim. Destacamos um trecho lindíssimo da exortação apostólica Salvifici doloris, de João Paulo II, sobre o sentido cristão do sofrimento humano, quando fala da parábola de Lucas: “Bom samaritano é todo homem que se detém junto ao sofrimento de outro homem, seja qual for o sofrimento. (…) é todo homem sensível ao sofrimento de outrem, o homem que se ‘comove’ diante da desgraça do próximo. Se Cristo, conhecedor do íntimo do homem, põe em realce essa comoção, quer dizer que ela é importante para todo o nosso modo de nos comportar diante do sofrimento de outrem. É necessário, portanto, cultivar em si próprio esta sensibilidade do coração, que se demonstra na compaixão, para quem sofre” (no 28).
O papa emérito Bento XVI, na sua última mensagem para o Dia Mundial do Doente, de 2013, propõe a imagem do bom samaritano para iluminar a qualidade de cuidado frente ao ser humano fragilizado pela dor e pelo sofrimento. Diz o então papa Bento XVI: “Jesus quer fazer compreender o amor profundo de Deus para cada ser humano, especialmente quando se defronta com a doença e o sofrimento. Ao mesmo tempo, porém, com as palavras finais ‘vai e faze tu também o mesmo’ (Lc 10,37), o Senhor indica qual é a atitude que cada um dos seus discípulos deve ter para com os outros, em especial se necessitados de cuidados”. Urge redescobrirmos com urgência a arte de cuidar num contexto extremamente indiferente e hostil à vida!
Obs: Publicado na Família Cristã 934 – Out/2013