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Estimulada pela entrevista de um escritor a um canal de televisão, sobre sua experiência literária, fui ao parque mais próximo da minha casa. Lá, caminhei durante algum tempo. Vi, por toda parte pedras de vários tamanhos. Apanhei algumas. Escolhi-as de acordo com a história que eu queria contar. Procurei um banco onde pudesse arrumá- las e fazer a simulação do que tinha em mente. Todos ocupados. O sol àquela hora era implacável. As pedras, quentes, esfriavam em minhas mãos. Avistei um banco onde uma jovem, entretida na leitura de uma revista, não dera pela minha presença. Sentei. Na extremidade do banco, à minha direita, comecei discretamente a arrumar as pedras uma ao lado da outra. Eram seis, aos todo. Uma delas maior. Por que? Nem eu sabia. Segundo o entrevistado, era assim que desenvolvia seu processo criativo: montava toda a trama dos seus livros utilizando objetos, de preferência bonecos, aos quais dava os nomes dos personagens e com eles conversava como se estivessem vivos. Na falta de bonecos tentei substituí-los por pedras.

Percebi que a moça me observava, certam pensando que eu era doida. Também, não era pra menos. Continuei o meu raciocínio sobre as pedras, os personagens, o enredo da história. Que título poderia dar ao meu futuro livro? Alguns me ocorreram: Eu e as Pedras, As Pedras e Eu – O Louco. Este viria a calhar por que, no final das contas, todo doido atira pedras e eu já estava municiado.

A jovem começou a me olhar com insistência querendo, talvez, saber o que eu fazia com aquelas pedras arrumadas sobre o banco. Desconfiado, feito quem está fazendo alguma coisa errada, desmontei o esquema da suposta história e deslizei, um a um os seixos para dentro do bolso do casaco. A idéia de escrever um livro se evaporou. O olhar da jovem havia atuado como um apagador num quadro negro. Comecei a pensar nela como um personagem, em tratá-la como se fosse a pedra maior, puxar conversa, perguntar seu nome, onde morava, por que estava ali sozinha, por que o vestido preto.

Ela falou primeiro, me assustando:

 –  O senhor coleciona pedras?
– Não, é apenas um exercício.
– Para a memória, ou para a coordenação motora?
– Não moça, é como já lhe disse, apenas um exercício.
Então, para preservar minha integridade mental disse-lhe que frequentava uma oficina literária e o professor mandara que usássemos objetos como se fossem personagens das histórias que pretendêssemos escrever.
Diante do seu olhar desconfiado, levantei-me, e, sem dizer nem até logo saí apressado.

Obs: Texto retirado do livro da autora – Doido é quem tem Juízo

A autora é poetisa, escritora contista, cronista, ensaísta brasileira.

Faz parte da Academia de Artes e Letras de Pernambuco, Academia de Letras e Artes do Nordeste, Academia Recifense de Letras, Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, Academia Pesqueirense de Letras e Artes , União Brasileira de Escritores – UBE – Seção Pernambuco
Autora dos livros: Em ponto morto (1980); A magia da serra (1996); Maldição do serviço doméstico e outras maldições (1998); A grande saga audaliana (1998); Olho do girassol (1999); Reescrevendo contos de fadas (2001); Memórias do vento (2003); Pecados de areia (2005); Deixe de ser besta (2006); A morte cega (2009). Doido é quem tem Juízo (2012); Saudade presa (2014); O Sorriso da Borboleta (2018)
Recebeu vários prêmios, entre os quais:

Prêmio Gervasio Fioravanti, da Academia Pernambucana de Letras, 1979
Prêmio Leda Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, 1981
Menção honrosa da Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1990
Prêmio Antônio de Brito Alves da Academia Pernambucana de Letras, 1998 e 1999 
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2000
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2010
Prêmio Edmir Domingues da Academia Pernambucana de Letras, 2014

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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