Sermão do descimento do Cristo Morto da Cruz
Introdução
Acabamos de celebrar a Paixão e morte do Senhor. Ecoam ainda nos ouvidos do nosso coração as últimas palavras e o último grito de Jesus na cruz (Mt 27: 46.50). A terra envolvida em trevas, como que a apressar o final desse dia tremendo e a hora da retirar da cruz aquele corpo macerado, ensanguentado e sem vida, mas inteiro. Daí a poucas horas se iniciaria aquele Sábado especialíssimo da Páscoa dos Judeus (Jo 19: 31). Era premente a necessidade de providenciar um lugar digno para colocar o corpo de Jesus, não longe daquele mesmo monte do seu sacrifício, pois não restava muito tempo antes do anoitecer. Os judeus não queriam que os corpos ficassem na cruz durante o sábado, pois era a Festa da Páscoa (Jo 19: 31).
No Calvário, a ressurreição dos santos falecidos já se dá com a morte do autor da vida! (Mt 27: 52-53). No Calvário, a fé dos gentios já manifesta a abrangência da salvação conquistada no sangue derramado na Cruz: o centurião e os guardas assustados com o que veem, reconhecem estar diante do Filho de Deus (Mt 27: 54).
No alto do Calvário, Jesus não estava completamente abandonado: algumas mulheres estavam ali, olhando de longe, esperando o momento propício de se aproximarem do corpo do Mestre. Estavam dispostas a continuar a servi-Lo com os seus bens (Mt Eram elas Maria Madalena, Maria mãe de Tiago e Joset, e a mãe dos filhos de Zebedeu… Discípulas corajosas que seguiram o Mestre até o Calvário (Mt 27: 56). Solidárias com a Mãe de Jesus, também ali presente (Jo 19: 25-27), com sua alma traspassada pelas dores terríveis do martírio do Filho amado, agora pendente morto na cruz, traspassado impiedosamente pela lança que lhe abre o peito, donde jorram sangue e água, mesmo já estando morto! (Jo 19: 33-35). Aquela lança atravessou também a alma da mãe, arrancando-lhe um grito surdo de dor. Cumpria-se a profecia do velho Simeão: Quanto a ti, uma espada traspassará tua alma (Lc 2: 34-35). “Essas coisas aconteceram para se cumprir a Escritura: ‘nenhum osso dele será quebrado’. E ainda outra passagem que diz: ‘Olharão para aquele a quem transpassaram’.” (Jo 19: 36-37). Do templo santo que é o corpo crucificado e morto de Jesus, transpassado pela lança, brota uma fonte de água viva. O corpo de Cristo é aquela rocha do deserto, de onde brota a água que sacia a sede do povo (1Cor 10: 4). Com a água e o sangue que jorram de seu lado aberto pela lança nascem os sacramentos da Igreja (prefácio do Sagrado Coração). Do lado direito do altar deste templo, brota um rio caudaloso de águas salutares, que saneiam tudo por onde passam, gerando vida, saúde, salvação (Ez 47). “Mas quem beber da água que eu vou dar, nunca mais terá sede. E a água que eu lhe darei vai se tornar nele uma fonte de água viva que jorra para uma vida eterna” (Jo 4: 14).
E eis que surge José de Arimatéia, como que providencialmente, para socorrer a mãe e os outros discípulos de Jesus. Para praticar uma obra de misericórdia por excelência, ao oferecer uma sepultura digna para o Crucificado. Todos os Evangelhos narram o episódio de José de Arimateia, discípulo discreto de Jesus, como Nicodemos (Jo 3: 1-21). Ambos se fazem presentes para cuidar do corpo e da sepultura de Jesus, como nos narra o evangelista São João (Jo 19:39-42).
José de Arimateia providenciou os aspectos legais para retirar o corpo santo de Jesus da Cruz: pediu a devida permissão à autoridade maior, Pôncio Pilatos, que lho concedeu, dando-lhe a mais preciosa de todas as relíquias: o corpo do Senhor. Providenciou também lençóis novos e limpos para envolver o corpo (Mc 15: 46), enquanto Nicodemos providenciou 30 quilos de mirra e aloés para perfumar o corpo de Jesus. A presença destes dois discípulos e os cuidados generosos dispensados por eles ao corpo de Jesus, não deixa de ser uma demonstração da importância daquele mestre inocente, assassinado tão brutalmente, trocado por um bandido homicida (Jo 19: 39-40).
Contemplemos Jesus na Cruz
Ei-lo, o meu servo será bem sucedido; sua ascensão será ao mais alto grau. Assim como muitos ficaram pasmados ao vê-lo – tão desfigurado ele estava que não parecia ser um homem ou ter aspecto humano –, do mesmo modo ele espalhará sua fama entre os povos. Diante dele os reis se manterão em silêncio, vendo algo que nunca lhes foi narrado e conhecendo coisas que jamais ouviram. Diante do Senhor ele cresceu como broto de planta ou como raiz em terra seca. Não tinha beleza nem atrativo para o olhar. Não tinha aparência que nos agradasse. Era desprezado como o último dos mortais, homem coberto de dores, cheio de sofrimentos; passando por ele, tapávamos o rosto; tão desprezível era, não fazíamos caso dele. A verdade é que ele tomava sobre si as nossas enfermidades e sofria, ele mesmo, as nossas dores. E nós pensávamos que fosse um chagado, golpeado por Deus e humilhado! Mas ele foi ferido por causa dos nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz, e suas feridas o preço da nossa cura. (Isaías 52, 13-15. 53,2-5).
O corpo morto de Jesus pendente da cruz. No alto da cruz, a inscrição que Pilatos mandara fazer: JESUS NAZARENO REI DOS JUDEUS (Jo 19: 19-22). Ironia? Escárnio? Zombaria? Seja o que for, sem querer talvez o Procurador Romano cumpria uma profecia. O representante do Império, autoridade máxima da Província, representante do maior poder político do mundo, faz uma afirmação profética, reconhecendo estar diante do Rei. E faz questão de manter sua afirmação, sem ceder às pressões das autoridades dos judeus, que exigiam uma mudança na inscrição: “O que escrevi, está escrito!“, reafirma veementemente Pilatos (Jo 19: 22). Jesus é verdadeiramente Rei, mas de um reino que não é deste mundo. Que não se confunde com aqueles que dominam e tiranizam as nações (Mc 10: 42). Ele é um rei que serve (Mc 10: 45). Manso e humilde de coração, cujo jugo é suave e o peso é leve. Ele não é opressor (Mt 11: 29-30). Ele é o Servo Sofredor da profecia de Isaías (Is 52: 13 – 53: 12).
Jesus não precisaria daquela placa para ser glorificado e reconhecido como Rei do Universo. Portanto, antes de retirar o corpo de Jesus da Cruz, vamos retirar aquela inscrição. A Cruz sem o Crucificado será completamente vazia, sem nenhuma placa! Nem a cruz precisará dela para ser reconhecida e venerada como árvore da vida! A Cruz, que era escândalo para os judeus e loucura para os pagãos (1Cor 1: 23) se transformou em sinal de vitória do Crucificado e de todos os seus discípulos, que se tornam vencedores do mundo pela fé no Ressuscitado (1Jo 5: 4-5).
Jesus pendente da Cruz tem ainda na cabeça aquela coroa de espinhos terríveis. Duros espinhos encravados na sua cabeça, já sem dor. A irmã morte fizera cessar a dor e o sofrimento provocados por tão cruel tortura. O entrelaçado de espinhos apertando a cabeça, faz uma terrível moldura naquele rosto agora sereno, sem dor e sem sofrimento. Na cabeça do Rei do Universo não há uma coroa de metais e pedras preciosas, ricamente ornada para indicar a riqueza e o poder do soberano. Ele está coroado com um diadema de espinhos grandes, pontiagudos, extremamente doloridos. Esta coroa pensada como instrumento de tortura e zombaria, só colocou em evidência a humildade deste rei, cujo reino durará para sempre! São as dores do mundo que ele carrega em sua cabeça. Somos nós, por vezes esta coroa de Cristo crucificado? O que nós, cristãos levamos em nossa cabeça, em nosso coração? O Apóstolo Paulo nos exorta a termos em nós os mesmos sentimentos que animavam Jesus (Fl 2: 5-11). Que pensamentos e sentimentos nos animam? Olhemos para a coroa de espinhos na cabeça de nosso amado Jesus e peçamos que Ele nos ajude a vencer os nossos maus pensamentos e más intenções; lutar para nos vencermos a nós mesmos, pelo exercício da humildade, buscando em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua Justiça (Mt 6: 33).
Jesus é nosso Rei. Um rei que não precisa de nenhum tipo de coroa. Nós é que devemos ser a sua coroa por uma vida de virtudes, sobretudo pela fé, esperança e amor. Retiremos esta coroa de espinhos da cabeça do Senhor. E peçamos que o Senhor retire de nossa carne os espinhos do pecado e da iniquidade. Dê-nos forças para lutar contra eles, por um esforço permanente de conversão!
Jesus pendente da Cruz tem suas duas mãos presas ao madeiro por enormes cravos. “Transpassaram minhas mãos e os meus pés, e eu posso contar todos os meus ossos” (Sl 22). Os braços abertos do Verbo divino encarnado se abrem sobre o mundo, num abraço salvador. Os braços do Senhor estão presos ao madeiro da Cruz por dois enormes cravos, que abrem naquelas mãos santas, do artífice da Criação, duas enormes chagas. Além do corpo todo macerado pelas torturas impiedosas, as mãos transpassadas! Aquelas mesmas mãos que criaram, afagaram, consolaram, ressuscitaram os mortos, repartiram o pão da vida, abençoaram, levantaram tantos enfermos de sua prostração, curaram tantos males da humanidade… agora se tornam a síntese perfeita da doação total. Nelas se concentra todo o bem do universo. Delas, brotam raios da divina misericórdia, projetando-se sobre o mundo impiedoso e ferido pelo mistério da iniquidade. Como do lado aberto do peito do Senhor, brotou uma fonte de água viva, das santas chagas de suas mãos misericordiosas brotam raios de luz que dissipam as trevas do mundo! Podemos olhar para as chagas dolorosas das mãos do Senhor e olhar para as nossas mãos e nos perguntar: o que tenho feito de minhas mãos e com as mãos que o meu Criador e Redentor me deu? Minhas mãos fazem as mesmas obras de misericórdia que as mãos transpassadas de Jesus fizeram? Minhas mãos fazem mais o bem ou mais o mal? “Se a mão direita leva você a pecar, corte-a e jogue-a fora! É melhor perder um membro do que o seu corpo todo ir para o inferno” (Mt 5: 30).
Contemplemos as mãos transpassadas do Senhor e retiremos os cravos de suas santas mãos! Deixemos que seus braços fatigados de interceder por nós ao Pai desçam sobre nós, num abraço restaurador e consolador. Que as santas chagas de suas mãos santas curem as feridas do pecado, que tornam nossas mãos impuras e incapazes de fazer misericórdia! “A mão direita do Senhor fez maravilhas, a mão direita do Senhor me levantou!” (Sl 117). Que nossas mãos expressem sempre o amor a Deus e ao próximo, amor de que está pleno o nosso coração! Curados pelas mãos transpassadas de Jesus, sejamos nós também, com Ele, artífices da justiça, do bem e da Paz!
Vamos descer o Senhor Crucificado da Cruz e com Ele, descer todos os pobres crucificados deste mundo! Com Ele, libertar todos os que se encontram aprisionados por qualquer tipo de cativeiro e opressão humilhante e desumanizante. A santa Cruz abraça todo o mundo e indica-lhe o caminho da salvação, a verdade que liberta, a vida verdadeira que nos leva ao Pai.
Não mais torturado pelas dores do martírio, o Corpo Santo do Senhor precisa ser retirado da cruz com todo cuidado. José de Arimateia e Nicodemos cuidam de todos os detalhes. Sabem que a mãe e os discípulos se sentem impotentes e paralisados pela dor para fazerem alguma coisa. Eles assumem este encargo doloroso e solidário, que felizmente, podemos ver em muitas pessoas misericordiosas diante da dor dos parentes de um falecido, especialmente quando se trata de uma mãe ou de pais que passam por esta dor indizível de perder um filho no auge da vida! Quanta gente solidária nestes momentos cruciais da nossa vida! São os Arimateias e Nicodemos de todos os tempos! Vão retirando aos poucos da cruz, com todo o cuidado, o corpo exangue do Senhor. Gesto que inspirou grandes artistas, que contemplaram misticamente esta cena e a imortalizaram nas belíssimas “Deposições da Cruz”…
Os dois pés do Senhor, unidos um sobre o outro numa posição muito incômoda, foram transpassados por um único, enorme cravo!
“Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa notícia, que anuncia a salvação, que diz a Sião: ‘Seu Deus reina'” (Is 52: 7). Os pés de Jesus foram incansáveis no anúncio da paz! Ele se tornou o mensageiro por excelência da boa notícia do Reino de Deus! Mas encontrou a rejeição daqueles que não queriam a paz. “Jesus se aproximou, e quando viu a cidade, começou a chorar. E disse: ‘Jerusalém! Jerusalém! Se também você compreendesse hoje o caminho da paz! Agora, porém, isso está escondido aos seus olhos!'” (Lc 19: 41-42). Agora, estes belos pés do mensageiro da paz estão aprisionados por um enorme cravo! Imobilizados e inertes, temporariamente paralisados pela morte corporal. Mas os pés transpassados e inertes do Senhor, não permanecerão por muito tempo imobilizados, paralisados pela força já vencida da morte. Eles vão ser novamente levantados da terra, não mais na humilhação das torturas da cruz, mas alçados às alturas da glória da ressurreição! Eles vencerão os violentos e as forças ilusórias do poder das riquezas e das armas, que dão uma falsa segurança! O Príncipe da Paz vencerá o príncipe deste mundo!
Podemos contemplar os belos pés do Príncipe da Paz, agora transformados em fonte de luz e de paz! E podemos nos perguntar qual é a mensagem que transmitimos às pessoas, ao mundo que nos rodeia, nestes tempos de acirramento dos ódios e da intolerância, de dificuldades de diálogo, e de tantos males que dividem diabolicamente as pessoas? Que mensagens transmitimos e replicamos e repetimos e repassamos e partilhamos nas redes sociais e por onde temos facilidade de comunicar? É principalmente a Boa Notícia do Reino de Deus – chamada Evangelho – ou são outras mensagens que destroem diabolicamente a paz? Disso dependerá a beleza ou a feiura de nossos pés. Mas também, podemos lembrar que são nossos pés que nos levam para o bom ou para o mal caminho. Se nossas mãos podem simbolizar o bem o ou mal que fazemos, os nossos pés podem simbolizar nossas escolhas na vida, os caminhos que decidimos trilhar. Pés e caminhos têm tudo a ver uns com os outros! Lembram-nos também as “topadas” e os tropeços com as consequentes quedas. Lembram das infidelidades e pecados que nos ferem não só os pés, mas toda a nossa pessoa. Nossos pés também podem nos levar para longe da casa paterna, para a fome e a sede dos lugares distantes, lamacentos, estéreis e emporcalhados pelo afastamento de Deus, pelo pecado (Lc 15: 11-32). Mas eles também podem nos conduzir de volta ao convívio feliz com Deus e o próximo pela caminhada da conversão, do arrependimento e do perdão reconciliador. A contemplação dos pés transpassados do Senhor, na Cruz, nos dão tantas lições. São pés do Caminho, Verdade e Vida que conduz ao Pai (Jo 14: 6). Os santos pés do Mensageiro da Paz também nos lembram do nosso discipulado: “Então Jesus chamou a multidão e os discípulos. E disse: «Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; mas, quem perde a sua vida por causa de mim e da Boa Notícia, vai salvá-la. Com efeito, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perde a própria vida? Que é que um homem poderia dar em troca da própria vida? Se alguém se envergonhar de mim e das minhas palavras diante dessa geração adúltera e pecadora, também o Filho do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória do seu Pai com seus santos anjos.»” (Mc 8: 34-38). Os pés transpassados do Senhor vão à nossa frente e chamam nossos pés a seguir os seus passos! Dos pés transpassados do Senhor brota uma paz infinita. Cristo é a nossa Paz! (Ef 2: 14). “Felizes os íntegros em seu caminho, os que andam conforme a vontade do Senhor” (Sl 119: 1). “Tua palavra é lâmpada para os meus pés, e luz para o meu caminho” (Sl 119: 105).
Retiremos o cravo dos pés de Jesus! Aliviemos estes pés benditos do Mensageiro da Paz! Façamos este gesto nos comprometendo a seguir sempre os passos de Jesus, sem nunca nos desviar do seu Caminho!
Vamos descer o Senhor Crucificado da Cruz e com Ele, descer todos os pobres crucificados e sofredores deste mundo! Por sua divina misericórdia, ele assumiu nossas dores a as dores do mundo inteiro! Vamos, José de Arimateia e amigo Nicodemos! Desçamos com cuidado este Corpo precioso da Cruz e o entreguemos aos braços de sua santa Mãe, já esperando ansiosa por este momento tremendo de dor, imortalizado pelos artistas nas inúmeras “Pietás”.
É possível descrever a dor indizível da mãe, com o filho amado inerte no seu colo maternal? Difícil descrever esta dor! A única atitude que se pode tomar diante de tal dor, é o silêncio solidário de quem sente junto a dor! Assim acontece em tantas situações em que presenciamos a morte de um ente querido, um filho, uma mãe, um pai, uma pessoa amada… Não existem palavras para expressar um consolo, senão a palavra da esperança, que muitas vezes nem precisa ser verbalizada: a fé na ressurreição. A morte foi vencida no sacrifício da Cruz: “eu sou a ressurreição e a vida… ” (Jo 11: 25-26). Maria não está só neste momento doloroso. Ela tem ao seu lado o discípulo amado, a quem foi confiada como mãe. Ela tem os outros discípulos de seu Filho, que com ela vão preparar o corpo de Jesus para a sepultura.
São Bernardo deixou esta meditação sobre a mãe de Jesus junto à cruz. “Estava sua mãe junto à cruz”. “O martírio da Virgem é mencionado tanto na profecia de Simeão quanto no relato da paixão do Senhor. Este foi posto, diz o ancião sobre o menino, como um sinal de contradição, e a Maria: e uma espada traspassará tua alma (Lc 2: 34-35). Verdadeiramente, ó santa mãe, uma espada traspassou tua alma. Aliás, somente traspassando-a, penetraria na carne do Filho. De fato, visto que o teu Jesus – de todos certamente, mas especialmente teu – a lança cruel, abrindo-lhe o lado sem poupar um morto, não atingiu a alma dele, mas ela traspassou a tua alma. A alma dele já ali não estava, a tua, porém, não podia ser arrancada dali. Por isso, a violência da dor penetrou em tua alma e nós te proclamamos, com justiça, mais do que mártir, porque a compaixão ultrapassou a dor da paixão corporal. E pior que a espada, traspassando a alma, não foi aquela palavra que atingiu até a divisão entre a alma e o espírito. Mulher, eis aí teu filho? (Jo 19: 26). Oh, que troca incrível! João, mãe, te é entregue em vez de Jesus, o servo em lugar do Senhor, o discípulo pelo Mestre, o filho de Zebedeu pelo Filho de Deus, o puro homem, em vez do Deus verdadeiro. Como ouvir isso deixaria de traspassar tua alma tão afetuosa, se até a sua lembrança nos corta os corações, tão de pedra, tão de ferro?
Não vos admireis, irmãos e irmãs, que se diga ter Maria sido mártir na alma. Poderia espantar-se quem não se recordasse do que Paulo afirmou, que entre os maiores crimes dos gentios estava o de serem sem afeição. Muito longe do coração de Maria tudo isso; esteja também longe de seus servos.
Talvez haja quem pergunte: “Mas não sabia ela de antemão que iria ele morrer? Sem dúvida alguma. E não esperava que logo ressuscitaria? Com toda confiança. E mesmo assim sofreu com o crucificado? Com toda a veemência. Aliás, tu quem és ou de onde tua sabedoria, para te admirares mais de Maria que compadecida, do que o Filho de Maria a padecer? Ele pôde morrer no corpo; não podia ela morrer juntamente no coração? É obra da caridade: ninguém a teve maior! Obra de caridade também isso: depois dela nunca houve igual”. (Sermões de São Bernardo, abade, século XII).
O Filho de Deus morto nos braços da Mãe, agora não só d’Ele, mas de todos nós seus discípulos e discípulas. A cruz permanece vazia, agora com um novo significado, com um sentido totalmente diverso do que tinha antes. A Cruz se transformou em símbolo de vitória para os séculos futuros. Antes de levar o Santo Corpo de Jesus para o seu túmulo, no jardim que redimirá o jardim do paraíso, perdido pela desobediência dos primeiros pais, rezemos diante da Cruz vazia, esta oração de São Leão Magno: “Ó admirável poder da Cruz! Ó inefável glória da Paixão! Nela se encontra o tribunal do Senhor, o julgamento do mundo, o poder do Crucificado! Atraístes tudo a vós, Senhor, para que o culto divino fosse celebrado, não mais em sombra e figura, mas num sacramento perfeito e solene, não mais no templo da Judeia, mas em toda parte e por todos os povos da terra. Agora, com efeito, é mais ilustre a ordem dos levitas, maior a dignidade dos sacerdotes e mais santa a unção dos pontífices. Porque vossa Cruz é fonte de todas as bênçãos e origem de todas as graças. Por ela, os que creem recebem na sua fraqueza a força; na humilhação, a glória; na morte, a vida. Agora, abolida a multiplicidade dos sacrifícios antigos, toda a variedade das vítimas carnais é consumada na oferenda única do vosso corpo e do vosso sangue, porque sois o verdadeiro Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo (Jo 1: 29). E assim realizais em vós todos os mistérios, para que todos os povos formem um só reino, assim como todas as vítimas são substituídas por um só sacrifício” (Dos Sermões de São Leão Magno, papa – Século V).
Conclusão
Caríssimos irmãos e irmãs, continuemos nossa contemplação deste grande mistério da nossa fé. Acompanhando nossa Senhora das Dores, levando o Corpo Santo de seu Filho, meditando sobre estes grandes acontecimentos da nossa redenção. Com diz uma antiquíssima homilia do século IV: “Um grande silêncio reina na terra. Um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio, porque o Rei está dormindo; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque o Deus feito homem adormeceu e acordou os que dormiam há séculos. Deus morreu na carne e despertou a mansão dos mortos” […]. (De uma antiga Homilia no Sábado Santo – Século IV). Somos convidados à contemplação, ao silêncio orante da esperança. Que o Senhor nos conceda a graça de crescer sempre mais nesta nossa fé e nos conceda em abundância a fé, a esperança e o Amor! Feliz Páscoa!
Obs: Frei Edilson Rocha, OFM – Sexta-feira Santa de 2019 – Catedral Metropolitana de Belém do Pará