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CARTA PASTORAL DOS BISPOS DA IGREJA EPISCOPAL ANGLICANA DO BRASIL POR OCASIÃO DA PÁSCOA 2003 E EM PREPARAÇÃO AO MÊS DA RESPONSABILIDADE CRISTÃ

“Cada qual dê conforme decidiu em seu coração, sem pena nem constrangimento, pois Deus ama quem dá com alegria!” (II Cor 9,7)

Em 16 de Fevereiro de 2016, publiquei aqui uma carta pastoral que tinha sido escrita para a Diocese Anglicana de Pelotas-RS, no período em que era seu bispo, justamente no dia 17 de fevereiro de 2002, Primeiro Domingo da Quaresma. Imediatamente meus colegas bispos me pediram que tentasse abreviar o texto, de tal modo que pudesse ser publicado como Carta Pastoral coletiva a ser enviada a todas as nossas dioceses anglicanas no Brasil. Publico agora essa versão, que sintetiza o texto de 2016, aqui publicado, com a expectativa de que possa, quem sabe, fazer aparecer com mais clareza o conjunto da reflexão.

SAUDAÇÃO

  1. Ao reverendo clero e a todos irmãos e irmãs, graça e paz. “Verdadeiramente o Senhor ressuscitou! Aleluia!”.

QUARESMA

  1. Estamos no grande “retiro” quaresmal. Em breve vamos rememorar e reviver intensamente alguns momentos da Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e celebrar o momento culminante da Fe Crista, a Páscoa da Ressurreição. Que estejamos aproveitando bem este tempo, especialmente dedicado à prática daoração e da avaliação de comportamentos(exame de consciência), de tal modo que nos seja possível corrigir rumos e nos decidir por um estilo de vida mais fraterno e generoso, aberto à comunhão interpessoal, à partilha dos bens, à solidariedade para com os excluídos/as e ao compromisso responsável pela transformação da sociedade.

    3. Durante a Quaresma, a Tradição Crista nos lembra:

– oração: é o exercício de buscar com mais empenho escutar a Palavra de Deus no silêncio do coração e perceber qual o propósito de Sua vontade em nossas vidas. A Bíblia, especialmente nos Salmos e de maneira particular nas profecias e nos evangelhos, é um meio privilegiado pelo qual Deus entra em diálogo íntimo e amoroso com suas filhas e filhos e conduz a contemplar a beleza e perceber Sua presença em meio às vicissitudes do dia-a-dia;

– conversão: é voltar, ainda e sempre mais, nossos caminhos na direção de Deus e examinar por onde estamos andando, quais os critérios que nos guiam e qual tem sido o nosso jeito de nos comportar no quotidiano. E igualmente abandonar vícios, manias e costumes que nos fazem “massa de manobra” para a manutenção do “status quo” e nos alienam do “olhar critico” e senso do bem comum que o Evangelho nos propõe;

– jejum: é privar-se, renunciar, abster-se. Nossa sociedade atual é marcadamente permissiva, consumista, estimula a busca do supérfluo, e do secundário, em detrimento do que é realmente necessário. Jejuar é voltar-se ao essencial. E testemunhar que o ser é mais importante que o ter, que nossas relações com as coisas têm de estar a serviço das relações entre as pessoas para tornar possível a experiência de felicidade;

– esmola: não pode ser entendida apenas como estender a mão e dar auxílio a alguém. Esta palavra vem de um termo grego que quer dizer “misericórdia”, compaixão, solidariedade. 0 gesto de ajudar alguém deve manifestar, através de nosso corpo e de nossos bens, que o nosso coração esta procurando sentir o sofrimento alheio (miseri + córdia = o coração sente a angústia de outrem), e que igualmente está disposto a compartilhar a paixão e o sofrimento com profunda e real compaixão (padecer com);

       4 .Aqui está o sentido e a finalidade de nosso retiro quaresmal: optar por um modo de vida mais austero e mais parecido com o jeito de Jesus viver. Entretanto, essa austeridade não é so para “nos tornar mais santos(as)” ou “economizar alguns trocados em refeição”, mas, bem além disso, poder partilhar com quem necessita mais e, assim, contribuir para que se faça uma justa distribuição de bens e de dons na terra, pressuposto de uma economia solid6ria, buscada na fraternidade e na partilha. Trata-se de solidariedade, de fazer-se sócio a ponto de formar com a pessoa necessitada um só corpo, um “único sólido”.

RESPONSABILIDADE CRISTÃ

  1. Em nossa Igreja Provincial estaremos celebrando o mês de Maio como “Mês da Responsabilidade Cristã”. Talvez a palavra-chave que melhor traduz a ideia de mordomiaseja cuidado amoroso. isto é, somos responsáveis por CUIDAR de todas as coisas com o amor e o zelo do próprio Deus.

6 Primeiro, porque tudo é, de certo modo, parte de nós, e nós somos uma partícula (porção muito pequena) do todo. Sim, o Universo está dentro de nós e somos parte do mesmo Universo. Nossa carne é do mesmo tecido, composição e energia que compõem toda a matéria. E, como bem nos ensina São Paulo: “Ninguém jamais quer mal a sua própria came” (Ef 5,29);

Nosso parentesco com a Natureza é descrito pricamente pela Bíblia: somos ADAM feitos de ADAMAH (barro da terra, humus = fonte de matéria orgânica). A Bíblia imagina coma se houvesse entre nós e a terra uma aliança matrimonial onde a humanidade fosse o masculino (adam) e a Natureza fosse o feminino (adamah) (Gn 1-2);

Segundo, porque além de sermos parte do Universo, sermos da mesma matéria da Natureza, somos a Imagem e a Semelhança de Deus, isto quer dizer que somos Seus representantes para governar e cuidar carinhosamente de Sua obra e de Seus domínios, pois o Senhor é o “amigo da vida” (Sb 11,24- 26).

Terceiro, porque somos mais que criaturas, somos, na verdade, filhos e filhas de Deus, o mundo de Deus é nossa casa e a obra da Criação é nossa herança. O chamado divino é para cuidarmos do que é nosso, como cooperadores e cooperadoras de Deus, como nos ensina a Carta aos Gálatas (G1 3 e 4).

  1. “Responsabilidade” vem de “resposta”. Ou seja, é a capacidade e o dever de responder. Nosso cuidado com o mundo é a maneira concreta de responder à vida que se dá e se entrega a nós, e assim nos convoca a dela cuidar. Por isso, ao respondermos à vida, estamos, na verdade, respondendo a Deus, a nossa vocação. Assim:

Responsabilidade Cristã é a capacidade e o dever que temos de assumir o cuidado com o mundo e com as mais variadas formas de vida como resposta a Deus que nos confia Seus dons e bens

  1. Nossa resposta brota do sentimento de gratidão pelo DOM, pois “TUDO E GRAÇA”. Supera-se, assim, qualquer sentimento° de apropriação individualista. O mundo, a vida, tudo nos é dado de graça. Até mesmo o que nos conquistamos é Dom, pois, embora as conquistas sejam nossas, a capacidade de conquistar nos é dada, precede nossas obras, é graça. A vida toda vai sendo experimentada como maravilhoso presente, é a experiência da gratuidade. E nossos olhos vão sendo lavados pelo sentimento de gratidão. Completa-se, assim, o círculo da graça. Ao nos sentirmos objetos do dom. tornamo-nos sujeitos do dom: através de nós a vida prossegue em seu dinamismo de dar-se generosamente.
  2. Portanto, responsabilidade cristã são atitudes globais que vão manifestar-se por comportamentos concretos em todos os campos da existência humana: pessoal, interpessoal, comunitária e social. Sendo tudo obra de Deus, nada é profano e nada é impuro. É o que Jesus nos ensina em Mc 7,1-13. Além disso, a vida é como urn senhor que parte em viagem, torna-se uma presença invisível, e nos confia o cuidado de seu patrimônio. Há várias parábolas que falam disso: Mc 12,1-12; 13,36-36; Mt 25.. 14-30; Lc 19,12-26).
  3. Sentir-se responsável pela obra de Deus no mundo, em nome de Cristo, é o resultado da conversão ao Evangelho. O desafio segue sendo o mesmo que um dia foi lançado aos primeiros discípulos: “Vem e segue-me!” Na verdade, a questão de fundo é aquela tão bem formulada pelo apóstolo São Paulo: “Oferecei vossos corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus: este é o vosso culto como deve ser! E não vos adapteis às estruturas do sistema deste mundo, mas transformai-vos profundamente pela renovação de vossos sentimentos e pensamentos! É assim que podereis discernir qual é a vontade de Deus, o que e bom, desejável e perfeito!” (Rm 12,1-2).
  4. 0 que está na raiz do que chamamos de responsabilidade cristã é uma opção profunda que brota do centro do coração (Mc 7,14-23; Mt 6,21) e transforma a totalidade da vida, jogada agora num movimento permanente de conversão, isto é, de estar voltada para Deus. Entretanto, não é suficiente (apesar de muito importante) que sejamos pessoas honestas, “caridosas” e profundamente religiosas. Há uma pergunta fundamental que nos temos de fazer: Se somos de Cristo, será que isso produz alguma diferença em nosso estilo de vida? Nossa “vida crista” é assumida como urn simples conjunto de crenças e de rituais ou como um caminho de vida, seguindo o jeito de viver de Jesus?

DIMENSÕES DA RESPONSABILIDADE CRISTÃ

  1. Hoje a grande questão já não é simplesmente a da pobreza (onde infelizmente imperam a fome e a miséria), nem mesmo a da opressão e a da da margina1ização. Estamos diante de algo muito mais grave, radical e global: o fenômeno da exclusão, cujo substrato político-ideológico é o neo-liberalismo. Por isso, a responsabilidade cristã se manifesta clara e decididamente quando assumimos alguns compromissos como por exemplo:

– com a ecologia: ter zelo e cuidado com a Natureza a começar em nossa casa, rua, bairro, cidade, etc. Como? Selecionando e reciclando lixo; combatendo e denunciando aos órgãos competentes (Secretaria Municipal de Meio Ambiente, IBAMA), todo tipo de destruição da Natureza com equipamentos e ou atividades que provoquem poluição (da terra, do ar e da água), desmatamento, etc. Mas, ao mesmo tempo, participando e apoiando eventos e instituições que promovam a agricultura ecológica (sem agrotóxicos), a produção caseira, o desenvolvimento sustentável, etc;

– com a politica: estar atentas/os e participar de movimentos sociais (marchas, carreatas, boicotes, protestos) que denunciem qualquer tipo de exclusão ou instiguem qualquer tipo de preconceito político-ideológico. Como? Associando-se a alguma instituição governamental ou ONGs; criando grupos de estudo temáticos e/ou centros de reflexão; participando de alguma organização político-partidária; cobrando postura éetica e transparente de seus eleitos/as, particularmente no cumprimento de promessas de campanha, execução de programas e projetos de investimentos para o bem público, etc;

– com a economia: lutar pelas mais variadas formas de distribuição de renda que atinjam e beneficiem a todas as pessoas excluídas do processo da vida econômica. Como? Reclamando a criação de empregos, a comercialização direta (produtor-consumidor) de bens primários; colaborando e/ou associando-se em instituições que promovam o cooperativismo; pressionando os governos para que implementem as reformas (da previdência, fiscal, agrária, tributaria) justas e necessárias mesmo que essas limitem as vantagens de alguns em favor de todos(as), etc;

– com a sociedade: exigir que sejam criados mecanismos que ampliem a forma igualitária e direta de participação e acesso aos serviços sociais e resgate da cidadania. Como? Abrindo vagas e construindo escolas e universidade (federais, estaduais, municipais) públicas e gratuitas; descentralizando o atendimento à saúde, melhorando e equipando os postos; oferecendo, fiscalizando e ampliando o transporte coletivo com menor custo aos usuários/as; construindo casas e/ou conjuntos habitacionais em lugares seguros e com completa infraestrutura; exigindo maiores investimentos em segurança e em áreas de lazer que estejam ao alcance de todos(as), etc

– com a comunidade eclesial: ofertar generosamente nossos dons e bens para a Igreja: ser, cada vez mais e melhor, um espaço alternativo de convivência humana, e ter, cada vez mais, melhores condições de testemunhar sua responsabilidade cristã para com o mundo, a sociedade e as pessoas necessitadas. Somente cumprindo o mandamento de Jesus através da Evangelização é que a comunidade eclesial é e sera sinal e instrumento (Sacramento) de uma nova sociedade. Como? Integrando-se às atividades comunitárias; participando em conselhos governamentais; abrindo espaço ao convívio e troca de experiências para os movimentos minoritários e/ou segregados; cada anglicana/o sendo efetivamente, membro em plena comunhão. (Vide Canon 12, dos Cânones Gerais, do Regulamento dos Leigos/as); unindo-se a outras denominações cristãs para aprofundar o entrosamento ecumênico; promover e participar decisivamente diálogo inter-religioso, etc

RESPONSABILIDADE ESPIRITUAL ENCARNADA EM REALIDADES MATERIAIS

  1. Nossa relação com os bens materiais revela a qualidade e intensidade de nossa vida espiritual. Quando as pessoas perguntavam a João Batista o que fazer para converter-se espiritualmente a Deus, ele respondia exigindo decisão a respeito de coisas bem materiais: “Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem”. Ao homem rico que o procura, Jesus lhe pede que redefina sua relação com os bens materiais a partir de novo relacionamento espiritual com os pobres (Mc 10,17-27). A partilha material dos bens é o “corpo” através do qual se manifesta a realidade da conversão espiritual.
  2. A Presença Real de Cristo em nós e em nossa comunidade eclesial só se manifesta ao tornar a nossa vida real diferente da realidade do sistema do mundo. Do contrário, Sua presença em nós será apenas ilusória teoria ou imaginação e a nossa comunidade reproduzirá o sistema do mundo.
  3. A Comunhão Anglicana na Conferencia de Lambeth, formulou nossa missão como Igreja em cinco marcas que abrangem a totalidade da vida e de nossos relacionamentos, e que integram, com sabedoria, a fé no Evangelho com nossas responsabilidades para com a vida pessoal, na comunidade da Igreja e na sociedade: 1. Proclamar as Boas-Novas de Deus em Cristo (anunciar pela vida e pela Palavra o Evangelho); 2. batizar, instruir e nutrir discípulos e discípulas de Jesus (formar comunidades); 3. responder às necessidades humanas com serviços de amor (ser pessoas e comunidades solidárias com quem necessita); 4. lutar para transformar as estruturas injustas da sociedade (dedicar-se à luta para promover a justiça); 5. zelar pela integridade da Criação, defender e conservar e renovar os recursos da terra (exercer o cuidado com a criação de Deus).

CONCLUSÃO

  1. Concluímos lembrando alguns aspectos materiais nos quais se encarna a vida espiritual e que demonstram nosso novo estilo de vida ressuscitada, os compromissos concretes de nossa Responsabilidade Cristã: – cuidar da Natureza: zelar pela pureza e pelo volume da água, pela saúde da terra, pela produção ecológica dos alimentos, pela limpeza e preservação do meio-ambiente, fonte, extensão e suporte do nosso corpo; – distinguir entre o principal e o secundário e viver com austeridade, frugalidade e economia de recursos; – planejar bem os próprios gastos, evitando luxo e ostentação, pois preocupação com aparência e símbolos de “status social” é sinal de superficialidade e de vazio interior; – escolher com cuidado e criteriosamente o que compramos, tendo como ideia mestra a simplicidade de vida, não nos deixando arrastar pela propaganda e pela tentação do consumismo; – ter cuidado com o que e coma investimos daquilo que poupamos; – ter atenção a quem está a nosso redor, desde as pessoas mais próximas até aquelas de países distantes, das quais só sabemos pelo televisor ou Internet, para manter aberta nossa casa e disponíveis nossas coisas; – aprender a dar de maneira proporcional ao que ganhamos, incluindo em nosso orçamento mensal o que vamos destinar para o sustento da Igreja e para ajudar as pessoas mais necessitadas; – dar o que realmente podemos dar: nossa oferta pode ser a do rico Zaqueu (Lc 19,1-10) ou a da pobre viúva (Mc 12,41-44), o importante é que seja feita com lealdade e gratidão para com Deus, e com a honestidade de quem se sente estar “restituindo” aos pobres
  2. Finalmente, queridos irmãos e irmãs, escutemos atentamente e guardemos no coração as inspiradas palavras do Apóstolo São Paulo à, Igreja de Corinto: “Deus ama quem dá com alegria! .

FELIZ PÁSCOA! Sobre toda a Igreja invocamos a benção de Deus.

Porto Alegre, Páscoa de 2003.

+ Glauco Soares de Lima + Almir dos Santos + Jubal Pereira Neves + Robinson Cavakanti + Orlando dos Santos Oliveira + Celso Franco de Oliveira + Naudal Alves Games + Sebastitio Armando Gameleira Soares + Filadelfo Oliveira Neto + Hiroshi Ito +Edmund Sherril + Sumio Takatsu + Clovis Erly Rodrigues + Luiz Osorio Pires Prado.

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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