Élio Lima – da família incorporou grandes aprendizados e atitudes necessários a uma vida de comportamento humano e justo. Na infância e adolescência demostrou grande destreza, sendo considerado exímio jogador de futebol e nas peladas era o primeiro escolhido na hora de formar os times. Muito simples, educado, simpático, espírito brincalhão e cheio de motivação. Tinha facilidade em fazer amigos e os mais próximos eram considerados como parte dele mesmo.

Como estudante, sentiu necessidade de multiplicar seus conhecimentos e logo percebeu que a ciência abria as portas ao saber e não podia continuar escravo a dogmas que devessem ser aceitos sem críticas. Seria mais vantajoso aprender as leis de Newton, as teorias de Einstein, o teorema de Pitágoras, a Lei da Queda Livre e a teoria da evolução das espécies do que procurar abrigo em contos de fadas. Na busca de um futuro feliz, tornou-se um aluno dedicado, e sem “avareza, gula, inveja, ira, luxúria, orgulho e preguiça”, um profissional humano. Seu único pecado foi o original, um pecado hereditário que herdamos de Adão e Eva e cujas observações cientificas dos geneticistas ainda não conseguiram localizar o gene e o cromossomo bem escondidos por Deus. O exorcismo, realizado através do batismo com água sagrada, tornou Élio puro aos olhos dos cristãos.

Plantando a primeira semente do conhecimento, em solo fértil, a escolarização foi responsável pelo crescimento de Itabaiana e sendo o cérebro do povo maior do que o território do município, o Murilo Braga foi o maior impulso ao ensino e um marco fundamental em nossa história. Tão importante que, a cada ano, depois da última gota de conhecimento adquirido, uma cacada de estudantes migrava para o Atheneu, em Aracaju, com certificado na mão, em busca do caminho prometido a prosperidade. Éramos extremamente solidários e mesmo sem ser iguais, tínhamos em comum a curiosidade insaciável e o desejo arrebatador de tornar-nos vencedores. Nunca é demais salientar que o Atheneu nos prestava boas-vindas, sentia-se orgulhoso de nos receber e, de forma carinhosa, nos preparar para o curso superior. A esperança parecia renascer nas salas de aula.

Nos anos de chumbo, os militares tinham nas mãos as instituições, todas as regras do jogo político e quando se aproximava o dia 31 de março promoviam diversas atividades com a finalidade de despertar sentimentos de patriotismo, respeito aos símbolos da pátria e, de forma sub-reptícia, atribuir às forças armadas o desenvolvimento do país. A sala de aula se transformava de maneira harmoniosa numa obra de arte: sobre o birô, um buquê de flores e ao lado a Bandeira Brasileira, que deveria permanecer hasteada das 07 às 19 horas.

Por pura distração, no beiço do quadro negro esqueceram algumas velas de parafina misturadas a giz escolar e apagador. Qualquer brincadeira nos distraía. Élio acendeu as velas e cantamos o Hino Nacional com entusiasmo. Inesperadamente o vento jogou a bandeira sobre as chamas e parte foi queimada. Tudo ocorreu sem malícia e sem vínculos a qualquer herói, protesto, ideologia ou organização política. Os torturadores e o censuradores viviam escondidos no meio de nós e não podiam ser identificados. Sentiram o estado democrático e a segurança nacional em perigo.

Diretórios acadêmicos, diretoria central dos estudantes e diretores das escolas viviam sob controle oficial e deviam tratar apenas de assuntos acadêmicos. Com passos rápidos e excesso de zelo, a queima da bandeira foi comunicada aos órgãos de repressão. Alguns minutos depois, veículos com placas frias tomaram o pátio do Atheneu. O colégio foi decretado em “estado de sítio”. A sala foi fotografada e uma comissão foi formada para apurar os acontecimentos.

A pátria estava ameaçada, não podia continuar deitada em berço esplêndido. Na luta para conhecer “os subversivos”, não havia limites para crueldade psíquica durante os interrogatórios. Entretanto, o revide veio com um pacto de silêncio e nenhuma informação foi compartilhada com a comissão. Tornou-se mais fácil “tirar leite de pedra” do que a confissão de um de nós. O inquisidor, com a cara de predador, bocejos barulhentos, a estalar os dedos e frustrado pela ausência de informações, fazia várias ameaças. “Minha sentença não sofrerá revisão, nem anulação. Não devemos assegurar respeito e direitos a subversivos, tenho poderes e vou determinar a expulsão de todos e proibir-lhes ensino e emprego públicos. Sem universidade e sem trabalho, o caminho de vocês é a criminalidade”.

A forma como as pessoas lidam com as dificuldades em suas vidas variam de um indivíduo para outro. No dia seguinte, Élio Lima se apresentou à comissão e assumiu a responsabilidade pelos acontecimentos. Ninguém deveria sofrer por sua culpa. Deixou claro que não houve planejamento, não houve maldade e tudo foi uma brincadeira que deu errado. A decisão da comissão (três meses de suspensão), cruel e exagerada causou um resfriado psíquico forte na comunidade. O Atheneu chorou baixinho para si mesmo. Alunos e professores exibiam movimentos corporais reduzidos, fala lenta e olhar fixo para o chão ou para o céu através das frinchas das janelas. Em casa, seu pai chorava quase todas as noites. Antônio Lima era um homem pobre e simples, dono de um pequeno bar, de um sítio de poucas tarefas, meia dúzia de galos de briga e um jegue tão velho que não precisava ser tangido porque sabia o caminho de cor. Por muitos meses seus dias foram turvos, até Élio Lima ter sido aprovado no vestibular de medicina. Um divisor de águas. Passou a sonhar com a formatura do filho e em suas súplicas religiosas, no silêncio da noite, pedia a Deus para abençoar sua família e vida por tempo suficiente para assistir a diplomação do filho.

Na festa de formatura, houve momentos de apatia, retraimento e lágrimas pela ausência do pai. Sua partida irrevogável ocorreu antes de o tempo solicitado a Deus e não assistiu a seu filho ainda jovem, conhecer a fama. O sentimento de tristeza é muito grande, quando perdemos o que amamos, porém, não podemos apagar o passado, apenas tentar esquecê-lo e seguir adiante. (Aracaju, 12 de fevereiro de 2019)

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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