(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Há muita coisa digna de nota e de reflexão acontecendo no Brasil: ruptura de barragens, enchentes, violência urbana, descoberta da rede tentacular das milícias etc.  E, no entanto, sinto-me movida a escrever sobre o feminicídio. Talvez porque ele venha aumentando exponencialmente em nosso país, que ocupa o quinto lugar no mundo em números absolutos dessa forma de violência de gênero. A cada duas horas uma mulher é morta no Brasil.

No entanto, talvez o propulsor mais imediato de minha perplexidade diante desse crime e seus terríveis e abomináveis rostos esteja em um dos últimos casos registrados pela mídia.   Aconteceu no último fim de semana, exatamente após o dia internacional da mulher.   Jonathan escreveu uma mensagem amorosa para Lidiane, com quem vivia há um ano. Postou-a nas redes sociais.  Depois disso, à raiz de uma briga motivada provavelmente por ciúmes, matou-a com várias facadas, atacando igualmente a mãe da jovem.  Lidiane morreu e a mãe se encontra hospitalizada em estado grave.

Passa-se do amor ao ódio em poucas horas, agride-se aquela a quem antes se abraçava e beijava, ataca-se até matar a companheira um dia depois de declarar nas redes sociais que ela era “a mulher que qualquer homem queria ter”. A casa onde a jovem estudante de direito morava com a mãe tornou-se palco de tragédia e de derramamento de sangue.

Complexo é o feminicídio justamente porque nele as fronteiras são movediças e dificilmente definidas.  O amor e o ódio convivem, a vítima e o algoz têm relação de proximidade e mesmo de intimidade.  São companheiros, namorados, amantes até que o ódio e a violência tomem a frente da cena e a morte ocupe o lugar da vida.

O conceito é recente, dos anos 70.  Foi cunhado pela socióloga sul-africana Diana E. H. Russel.  Com ele, a pensadora pretendia contestar a neutralidade presente na expressão “homicídio”, que por sua generalidade contribuiria para manter invisível a vulnerabilidade experimentada pelo sexo feminino em todo o mundo. Enquanto os homicídios dolosos atingem todo tipo de pessoas, idades e gêneros, o feminicídio diz respeito fundamentalmente às mulheres, que em sociedades marcadas pelo patriarcalismo como a nossa, ainda são consideradas – consciente ou inconscientemente – propriedade dos homens.

Além disso, o feminicídio acontece em geral em casa, no espaço onde o assassino e a vítima vivem relações familiares e íntimas.  A violência é despertada pelo ciúme, ou pela recusa da mulher em levar avante a relação.  E o lar, a casa, passam a ser palco de terror e agressões letais dirigidas contra as mulheres, porque se rebelam ou não se acomodam na condição subordinada na qual séculos de machismo as situaram.

Argumentos contra a concepção do feminicídio como fenômeno social diferente do homicídio sustentam que a maioria dos assassinatos acontecidos no mundo todo – cerca de 80% – têm como vítimas pessoas do sexo masculino.  É fato.  Mas enquanto tais assassinatos acontecem no espaço público, os feminicídios se produzem na calada da noite, no segredo da casa e do quarto, no avesso do amor que se tornou agressão e terror. E se os motivos para os homicídios são de diversos formatos e procedências, como violência urbana, tráfico de drogas e outros muitos, os feminicídios acontecem por ódio pelas mulheres serem o que são: mulheres. Representam a culminância de um processo de agressões e intimidações, no qual a vítima é abusada em sua inferior força física, em sua fragilidade e vulnerabilidade e em sua sexualidade, que é subjugada, violada até o assassinato.

Diante desse quadro sombrio, a teologia cristã tem algo a dizer. Naquele tempo, o rabi de Nazaré salvou a vida de uma mulher adúltera que ia ser apedrejada por vários homens religiosos. Aceitou o carinho e a homenagem de uma prostituta conhecida na cidade protegendo-a da condenação a que se expunha por amor a ele. Deixou-se tocar por uma mulher hemorroíssa considerada impura e, em lugar de rejeitá-la, curou-a. Em meio a esta realidade deplorável em que seres humanos tiram a vida de outros – outras – por não aceitar sua diferença, o Cristianismo pode contribuir com uma palavra própria e diferenciada.

A prática de Jesus de Nazaré reflete a fé no Deus que criou a humanidade à sua imagem e semelhança. A imaginação do Criador é fecunda e as diferenças são condição indiscutível para que haja vida e vida em abundância.  Quando a diferença é sufocada e estrangulada para que não se faça visível nem audível; quando a dominação já não consegue exercer seus direitos abusivos e reage com violência assassina, é hora de saber que o feminicídio é o assassinato não de uma ou outra das vítimas sobre as quais lemos nos jornais ou até eventualmente conhecemos.  É o assassinato do futuro da humanidade e de toda a criação. Admiti-lo ou minimizar sua importância é ser cúmplice desse assassinato que encurta os horizontes e condena as novas gerações a uma lamentável esterilidade.

Obs: Maria Clara Bingemer é  autora de  de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.

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