Para a tradição cristã, significa querer que todos possam ter pão, casa, saúde e dignidade respeitada

A cultura popular religiosa brasileira costuma usar com frequência a expressão “Deus acima de todos” ou “Deus acima de tudo” ou ainda a variante “Primeiro Deus”.

Podemos nos perguntar o significado que tem essa expressão encontrada nos lábios de multidões, sobretudo nos conturbados e aflitivos dias de hoje.

Tento arriscar-me a precisar sentidos visto que esta é uma das funções da filósofa teóloga que sou. Precisar sentidos é uma missão perigosa que poucos gostam. A maioria nem se pergunta pelas palavras que usa. Habituam-se a usá-las e pronto.

Referem-se a elas como se elas e os que as escutam soubessem exatamente o que significam. Nem desconfiam que cada expressão tem um sentido conforme a nossa história, conforme a musicalidade ou o tom com que as pronunciamos, conforme nossa classe social, conforme nosso gênero e orientação sexual, conforme o tempo e o espaço em que vivemos.

Além disso, muitos se desacostumaram ao ato de pensar sobre suas palavras, sobre si mesmos e sobretudo sobre suas crenças. Pensam, mas não pensam os sentidos de sua vida.

Tudo se passa como se o pensamento fosse reduzido a acolher o que outros dizem ou escrevem como verdade. Nosso tempo tão individualista tem medo de pensar. É nessa linha que convido-nos a pensar a expressão “Deus acima de tudo”.

Em geral, a expressão “Deus acima de tudo” indica certa submissão de quem pronuncia esta expressão a uma força maior que estaria acima do comum dos mortais e acima de todas as forças do universo.

Este parece ser o significado também dessa afirmação no mundo cristão. Entretanto, me parece que no cristianismo essa submissão é explicitada e se expressa a partir de uma ordem ética exigida em todos os nossos relacionamentos, uma ordem que prioriza uma universalidade de comportamentos sociais cotidianos.

Na tradição do Evangelho e das cartas de João, por exemplo, se afirma de forma bastante clara que “ninguém pode amar a Deus se não ama aqueles/as que vêem”, ou seja, que encontra em seu caminho, que cruza as ruas com eles/elas.

O amor se exerce a partir dos encontros e não é apenas um sentimento de atração romântica. O amor é exigência em relação à vida dos outros/as, é de fato e não de boca fazer acontecer o bem para mim e para os outros.

Nessa linha, as imagens que os Evangelhos nos apresentam são desconcertantes: encontramos escrito que um grupo de operários que trabalhou num campo por diferente número de horas recebe ao fim do dia o mesmo salário.

Por quê? Porque todos têm que comer. No Juízo final no Evangelho de Mateus se diz que os que foram visitar prisioneiros, partilharam seu pão, vestiram o nu, acolheram as crianças todos entram na ‘vida de Deus’.

O que seria esta vida? Não se sabe. Apenas se afirma essa condição para que “Deus seja acima de tudo e de todos”.

Para a tradição cristã ‘querer Deus acima de tudo’ é querer que todos possam ter pão, casa, saúde e dignidade respeitada. O caminho para afirmar ‘Deus acima de tudo’ é querer o bem de todos/as.

Desconcertante, não é? Então lá vai mais um desconcerto em relação à crença nesse Deus: “coxos, mancos, leprosos, prostitutas” entrarão primeiro no reinado deste Deus. Eles e elas revelam que também ao acolher os outros como eles e para além deles também estarão nesse Deus.

Ninguém é excluído na medida em que são obedientes a essa maneira de conviver que propicia “vida digna para todos, todas, todes”.

Desconcertos e espantos continuam: “Aquilo que fizerdes ao menor que está entre vós é a mim que o fazes”. Estranha exigência para que “Deus seja acima de todos”.

É essa inclusão da vida e de todas as vidas para que o império do dinheiro não nos domine, para que a chaga do egoísmo não tome conta de nosso coração, para que a sedução do poder a favor de poucos não nos domine, para que meu narcisismo não seja lei.

Desde a filosofia moderna que muitos pensadores e pensadoras quiseram mostrar em que consiste historicamente a ‘bondade’ de Deus, não a sua misteriosa existência.

Retomaram a Bíblia para mostrar justamente que são as boas relações, as relações que fazem justiça e promovem o direito as únicas capazes de explicitar a misteriosa soberania de Deus, do Deus desconhecido, daquele que não pode ser reduzido à nossa explicação, pensamento e vontade.

Só podemos falar desse mistério maior a partir das relações humanas. Por isso, retomando São João, quem diz ‘amar a Deus e odiar seu irmão’ é mentiroso e se exclui do caminho histórico da misteriosa soberania divina.

Mais uma vez somos convidado a pensar, a acordar nossa consciência, a não nos deixar submergir nos pesadelos e medos que parecem nos ameaçar.

As ‘palavras de ordem’ exteriores a nós, nossos medos e antipatias não podem dissolver nossa capacidade de pensar sobre nossa vida e nossas reais necessidades. Os raciocínios e conclusões que outros nos obrigam a ter de fora não podem ser a verdade que nós mesmas experimentamos.

Voltar a nós mesmos, voltar a perguntar a nós mesmos, no silêncio de nosso quarto, ou no cantinho de um jardim público, ou até no transporte público ‘o que é mesmo que estamos querendo?’, ‘O que sabemos do que estamos repetindo sem pensar?’, ‘O que eu posso fazer?’, ‘O que significa e como entendo o “Deus acima de todos”?’

Mais uma vez o que sabemos sobre o mistério do mundo, o mistério que envolve galáxias e a Via Láctea, que envolve rios, mares e a multiplicidade de animais…

O único que podemos saber é como fomentar relações humanas que nos permitam ‘partilhar o pão’ para que não haja mais excluídos entre nós.

Por isso, pensar, dialogar conosco em silêncio, sem o celular colado ao corpo, apenas por alguns minutos para ‘fazer a verdade’ habitar no coração parece ser um dos caminhos para enfrentar os tumultos e as ondas gigantescas que nos assolam e amedrontam.

Cada um de nós tem que ser seu próprio ponto de apoio para que possamos nos tornar apoios uns para os outros. Não é fácil, mas é um convite possível… O velho matemático Arquimedes já falava e ensinava algo sobre isso.

Publicado em Carta Capital em 26/10/2018

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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