Caro Eduardo,

Se aqui o trato desta maneira direta, é que sou bem mais velho que você. Tenho 88 anos e você apenas 35. Para mim, você é um jovem e suponho que isso me dê o direito de falar com simplicidade, mas sempre com respeito.

Digo de início que não gosto dos insultos que lhe são dirigidos, embora compreenda que são reações diante do modo ofensivo com que você se referiu, por exemplo, ao Ex-Presidente Lula, por ocasião do falecimento de seu pequeno neto Arthur.

Em segundo lugar não ignoro que você, aos 35 anos, alcançou importantes conquistas em sua vida. Foi reeleito Deputado Federal com exatos 1.843.735 votos, conforme vejo na Google. Um número impressionante, o maior já alcançado por um candidato a Deputado Federal na história do Brasil. Consulto seu currículo e descubro outros episódios que o honram: formado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2008, membro da Ordem dos Advogados, escrivão da Polícia Federal no Rio por meio de Concurso Público. Em 14/02/2016 você apoiou o Projeto Anticorrupção, que na época alcançara mais de dois milhões de adesões e no Governo Temer se declarou a favor do PEC do teto dos gastos públicos.

Ao lago desses merecidos pontos de seu currículo aparecem dados mais questionáveis: em 24/5/2016, você apoiou uma lei que criminaliza o comunismo ao equipará-lo ao nazismo. Como comento adiante, penso que você avança aqui em terreno movediço, o que merece um questionamento por parte de alguém formado em Direito e que, por conseguinte, deve ter também conhecimentos na área da filosofia.

Sim, queria falar com você acerca de filosofia. Posso? O que me inquieta em suas falas públicas, Eduardo Bolsonaro, é a facilidade com que você enuncia afirmações sem justificá-las. Aqui estamos diante de uma questão filosófica da maior importância. Você pode me acompanhar por alguns minutos para dizer algumas palavras sobre esse ponto?

Uma questão primária da filosofia diz respeito ao conhecimento humano. De que modo nós humanos chegamos a conhecer algo? A resposta secular, dada pela filosofia, é a seguinte: conhecemos por meio da informação, seja direta, por meio dos cinco sentidos, seja indireta, por falas, escritos ou imagens. As informações diretas, físicas, geram diretamente a evidência. Ou seja, o melhor meio de adquirir conhecimento consiste na observação atenta das coisas, por meio de nossos cinco sentidos.

As informações indiretas, ou seja, aquelas que nos vêm por meio de falas, escritos ou imagens, são mais problemáticas. Aqui estamos diante de uma questão em cima da qual os filósofos se debruçam desde séculos. O que eles dizem pode ser resumido nas seguintes palavras: o perigo das informações indiretas consiste no fato que nelas costumam penetrar imperativos não éticos, embora comumente revestidos de moralidade, ou seja, de normas vigentes. Nas informações indiretas costumam penetrar interesses pessoais, vantagens financeiras, lutas pelo poder, exercício do poder, obediência a ordens dadas, compromissos de vida já assumidos, opções por modelos autoritários, ou simplesmente acomodação com situações injustas existentes. Na maioria dos casos, esses discursos só aparentemente são enunciativos. Na realidade são camuflagens. Escondem a real intencionalidade de sua enunciação. Discursos aparentemente designativos podem ocultar o que se pretende efetivamente ao enunciá-los: emitir uma ordem, expressar um desejo, uma exortação, um projeto, um cálculo, etc. São discursos que contêm intencionalidades não confessas. Intentam exercer domínio sobre as mentes humanas, com a finalidade de fazer passar determinados posicionamentos, formar consensos, enfim, enganar as pessoas.

Você, que entrou em arena política, deve saber, meu caro, que a maioria dos discursos enunciativos, hoje emitidos por poderes políticos e econômicos, serve para justificar imperativos nem sempre éticos. Cria-se uma situação dramática, que podemos observar a cada dia. As pessoas, teleguiadas pelos grandes meios de comunicação (TV, internet em geral, twitter em particular) acabam se metendo num labirinto de palavras tão intricado e aparentemente desconexo, que elas não encontram mais a saída, de tão confusas e desorientadas que ficam, tão desacostumadas a refletir. Acostumadas a entregar sua inteligência a noticiários da TV, manchetes de revistas e jornais, mensagens no twitter, não conseguem escapar ao bombardeio diário de Fake News. Correm para lá e para cá que nem baratas tontas.

É verdade: podemos verificar que, aos poucos, embora de modo pouco visível, a humanidade está criando anticorpos contra discursos mentirosos, assim como ela, ao longo dos milênios, criou anticorpos contra outras ameaças à sua vida neste planeta. Hoje, uma frase como ‘Fulano é comunista’ não soa mais como cinquenta anos atrás. As pessoas se tornam menos ingênuas. Mesmo assim o processo é lento e merece especial atenção por parte de políticos. Pois os perigos que a população corre por causa de uma cognição pervertida não podem ser negligenciados. Quem contempla o atual cenário político, verifica com espanto quão facilmente, malgrado certo progresso na cultura da dúvida, as pessoas ainda se deixam prender nas redes de discursos enganosos. As palavras de Maquiavelli, do século XVII, não são de todo superadas. As pessoas, em geral, ainda costumam ficar passivas e até indefesas (Machiavelli fala mesmo em ‘disponíveis’) diante de enunciados emanados de fontes que lhes parecem confiáveis. Voltaire ainda acrescentou: ‘mintam, mintam sempre: algo há de ficar’. E Goebbels, ministro da informação do governo de Hitler, completou: ‘uma mentira repetida mil vezes se torna verdade’.

É nesse sentido que um dos analistas políticos mais argutos de nossos dias, o americano Noam Chomsky, nos propõe um exercício contínuo e até automático de ‘dúvida’ e de limpeza da mente. Pois os perigos de estrago irremediável na mente humana são grandes. Hoje, só quem não se conhece a si mesmo é capaz de se declarar imune à influência deletéria do atual sistema mundial de comunicação. Enfim, nossa única defesa reside em exercer nosso cérebro na arte da dúvida, se possível for de modo automático. Isso também se aprende. No momento em que assisto ao noticiário da TV, mantenho meu sistema de defesa ativado. Duvido de tudo que se diz no tubo, até ter elementos para julgar que a informação procede e merece confiança. Fico alguns momentos em silêncio para verificar o eventual valor de uma mensagem recebida. Exercício nada fácil, pois a proliferação de ‘Fake News’ veio para ficar e se desenvolver sempre mais, já que repousa sobre uma tecnologia em pleno desenvolvimento, que ainda não revelou todas as suas potencialidades. Vivemos em sociedades cada vez mais ‘informáticas’, onde não só enormes conglomerados informativos derramam sobre nós diariamente um fluxo ininterrupto de informações e afirmações duvidosas, mas onde já é possível que cada um(a) de nós emita, por sua vez, informações e afirmações, a seu bel prazer.

Permita-me escrever algo mais, Eduardo. Você é jovem, mas mesmo assim já deve ter experimentado que o corpo recomenda insistentemente a humildade. As lições do corpo podem passar despercebidas por quem é jovem. Você sabe que o poder costuma inflar o Ego, e que um Ego inflado costuma negligenciar as lições do corpo. Por isso, a sabedoria recomenda ouvir os sinais do corpo. Aparece uma doença, uma fragilidade, um acidente, um imprevisto, uma contestação. Sempre acontece algo. Nessas horas, a humildade é preciosa. Ela nada mais é que a simples verdade do corpo. O corpo nos torna humildes. A humildade das coisas inacabadas, inconclusas, imperfeitas, interrompidas, por vezes inadequadas e inconvenientes, que compõem a condição humana. A humildade, só ela, nos faz conhecer a nós mesmos e fugir das ilusões de grandeza e prepotência. O aspecto mais emocionante de determinadas personalidades com as quais me foi concedido conviver, é a humildade. Quando pessoas dotadas de talentos excepcionais no plano da organização, articulação política, oratória, literatura, poesia ou comunicação, das quais se poderia esperar uma forte carga de auto-afirmação, um Ego bem inflado, se demonstram humildes, aí elas emocionam e convencem. Só os humildes fazem história. Os demais só fazem barulho.

Se você me acompanha até aqui, eu acrescentaria que sua ‘redenção’ pode vir de uma mulher que o ame, de um colega que o apoie, de um mestre que lhe mostre o caminho, enfim, de alguém que lhe convença que não adianta ser tão ansioso, tão auto-destrutivo. Alguém que se apresente bondoso, gentil, amoroso. Uma personalidade conciliadora, que cultive um verdadeiro amor pela humanidade, pratique o perdão universal e cujas dúvidas, insuperáveis e inevitáveis, se encontrem resolvidas pelo compromisso em fazer o bem.

Na vã perspectiva de que você venha a ler o que escrevo aqui, termino com um conselho final. Leia com atenção, meu caro, o texto-roteiro que a vitoriosa Escola de Samba do Salgueiro divulgou antes de se apresentar no Sambódromo do Sapucaí, no passado dia 4 de março: Ao dizer que o Brasil foi descoberto e não dominado e saqueado; ao dar contorno heroico aos feitos que, na realidade, roubaram o protagonismo do povo brasileiro; ao selecionar heróis ‘dignos’ de serem eternizados em forma de estátuas; ao propagar o mito do povo pacífico, ensinando que as conquistas são fruto da concessão de uma ‘princesa’ e não do resultado de muitas lutas, conta-se uma história na qual as páginas escolhidas o ninam na infância para que, quando gente grande, você continue em sono profundo.

Aí tudo vai dito.
Salvador, 07/03/2019,
Eduardo Hoornaert.

Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”

Explicação do painel(foto)

O autor é o primeiro à direita.

“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.“

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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