As instituições sociais, políticas e religiosas parecem cada vez mais distantes da maioria

Que fazer? Que saídas encontrar para o caos político, econômico e cultural? Que caminhos encontrar para a fila de desempregados, a fila do SUS, a fila dos hospitais, a fila interminável no transporte público? Quem vive todas essas angústias e dificuldades? Nem todos, apenas a maioria da população.

Em breve as eleições acontecem e não sabemos quem escolher para nos representar. Há uma descrença generalizada nas instituições sociais, políticas e religiosas existentes. Elas parecem distantes do ordinário da vida, de suas tristezas e pequenas alegrias. Elas falam outra linguagem e parecem distantes da luta pela sobrevivência. Nós nos aproximamos dessa linguagem tentando entender algo, mas sua compreensão nos escapa.

A maioria busca sobreviver ou viver simplesmente no cotidiano. Cada dia é a corrida por aquele dia… Trabalho, comida, falta de dinheiro, falta de… Talvez alguma diversão, a cerveja ou o churrasco do domingo.

O imediato faz esquecer as estruturas maiores. A sobrevivência obriga o pensamento a concentrar-se na prioridade de sobreviver. Para sobreviver vale tudo ou quase tudo. Vale o apoio daquela igreja, vale recolher a mercadoria espalhada na rua deixada por um caminhão tombado, vale aceitar pacotes de peixe com data vencida, vale não pagar as contas.

Para sobreviver vale improvisar uma tenda para servir de casa, jornais velhos para servir de cama, andar 10 quilômetros para chegar ao trabalho, viver em dez num quarto de pensão…

Enquanto isso, políticos e grandes empresários se digladiam a falar da crise política e econômica, tentando fazer valer suas interpretações incompreensíveis para a maioria. Falam sobre democracia, sobre leis, sobre desenvolvimento para eles mesmos. Prometem mudar, dividir, cuidar, mas não se preocupam em não cumprir.

A maioria dos outros, daqueles que apenas lutam para sobreviver, fala da comida imediata, da moradia, do corpo sangrando, da criança que está para nascer, do velho esperando por uma cadeira de rodas. Pensam em realidades enquanto os outros pensam idealidades. Dois mundos, duas realidades no mesmo planeta, na mesma cidade, no mesmo bairro, mantendo a injustiça e a corrupção.

A correlação entre o sofrido no imediato e a percepção de um mundo de estruturas maiores que nos governam escapa de nossas análises. O que vejo, sinto e sofro, eu que estou do lado baixo do mundo, é infinitamente distante das estruturas que o governam, das teorias que o explicam, das conferências e publicações sobre ele.

As grandes estruturas que mantém a democracia, o capitalismo, as religiões, são como um muro invisível no cotidiano da dor dos pobres. Por isso se fala de esgotamento do que temos chamado de democracia. Governo do povo para o povo.

Mas qual é o povo que governa? E qual é o governado? O fosso entre os diferentes grupos parece aumentar. Não sabemos o que fazer nem por onde caminhar? Parecemos perdidos numa noite escura…

Mas há algo de bom na escuridão que nos envolve. A própria obra de nossas mãos, a atual democracia que construímos por tantos séculos, democracia tão glorificada desde os gregos, está ruindo. Nós a destruímos porque não garantimos a sua vida com nossos compromissos pessoais para nutri-la.

Não nos demos conta de que ela, essa gigantesca palavra que soa bem aos nossos ouvidos, não é uma ideia em si nem uma estrutura fora de nós mantida pelo poder central de governos estabelecidos.

A democracia é apenas um conjunto de relações a partir das quais ouvimos nossas vozes e reconhecemos nossos direitos recíprocos. Entretanto, quando essas relações deixam de ser recíprocas, tornam-se como uma casa sem alicerces que rui ao sopro dos ventos e das tempestades. A casa democrática mantida por uma elite de gordos empresários e governantes é falsa e está caindo sobre todos os corpos.

Imaginávamos que apenas o voto dado a um candidato que julgássemos bom ou o voto entregue a um partido político que parecia buscar o bem comum eram suficientes para que a ‘máquina’ democrática funcionasse bem, se renovando e reproduzindo sua própria estrutura de sustentação.

Esta democracia ruiu… Nós a fizemos ruir… Não se sustentou apenas com a gorda vontade das poderosas minorias civis, militares e religiosas… As maiorias famintas de pão, de casa e educação estão nas ruas desamparadas, estão nos frágeis barcos jogados ao mar, estão sem rumo…

Nossas democracias puras farsas ou nossas democracias oligárquicas estão ruindo e obrigando-nos a acordar e perguntar: O que é mesmo uma democracia? O que é isto que chamamos de governo do povo para o povo? O que é isso que chamamos de vontade popular? O que é solidariedade entre os povos? Estariam os lutadores/as pela sobrevivência incluídos nessa vontade popular?

A destruição da política atual é uma doença contagiosa. Entretanto, creio que tem o seu lado extremamente positivo, ao desnudar a nossa ignorância sobre ela. Atônitos, reagimos de diferentes formas. Alguns apenas se calam, outros começam a se sentir como alfabetizandos que procuram descobrir um novo alfabeto que a história de todos os povos está escrevendo, um alfabeto que vai mais além do que as relações anteriormente estabelecidas, das leis nacionais e internacionais de direitos e deveres em vigor.

Estamos em nossa terra e ao mesmo tempo em terra estranha. Por isso, acendemos luzes em pleno dia para tentar enxergar o passo seguinte. Estamos conversando entre nós e confessando nosso ‘não saber’, nossa ignorância que antes podia até se esconder enquanto a máquina democrática parecia funcionar.

A máquina parou. Seu ruído global estarrecedor começa a silenciar. O colapso acontece no motor central situado nos países mais desenvolvidos e com consequências para todos os outros. As peças que se quebraram não podem ser repostas. Não há quem possa fabricá-las… Até perdemos o mapa que acompanhava sua fabricação.

O sentimento é de estarmos vivendo um dilúvio à espera de ramos verdes, talvez nascidos de nosso esterco, para indicar outra ‘terra firme’ à vista. Talvez os que lutam para sobreviver possam nos ensinar a vida para além das teorias.

Talvez entre eles haja formas que não queremos admitir como boas. O fato é que alguns de seus segredos os ajudam a viver. Vi uma mulher entregando todo o dinheiro que havia ganhado lavando roupa para a vizinha cujo filho estava doente…

Vi um mendigo dividindo sua comida com seu cão… Vi alguns jovens cantando e pintando flores num muro sujo… Vi professoras aposentadas alfabetizando crianças… Vi… Vimos… A multidão dos que têm coração de carne cria milhares de velhos e novos gestos para reinventar a humanidade, a convivência, a solidariedade.

O que é isto que queremos ou chamamos de democracia? Poderia ser uma “terracracia”, um governo para os terrícolas? Ou talvez outro nome que nos lembre apenas a existência de uma coletividade humana e uma coletividade de seres vivos que querem ter o direito de viver com dignidade. Há pequenos sinais que anunciam sua chegada…

Publicado em Carta Capital em 02/08/2018 

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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