https://www.facebook.com/pg/prof.leandrokarnal

Queria agora enfatizar a realidade da sala de aula. Claro que são generalizações e que há notáveis exceções. Os colegas professores podem acrescentar dados ou me desmentir. Continuo apostando em uma capacidade superior de leitura e foco.

a) O primeiro problema: o aluno costuma vir de um lar sem valorização forte da ideia de aprendizado e conhecimento formal, especialmente na escola-pública. Em escolas privadas, o aluno-cliente raramente encara a ideia de se submeter à disciplina do conhecimento. Em ambas, o desafio do professor é ser ouvido. Em um mundo de realidade virtual e informações superficiais e instantâneas, a análise lenta de um texto ou de uma questão de geometria está muito distante de tudo. A questão mais importante é o abismo crescente entre os interesses do aluno e o que existe para ser estudado. O desinteresse dele não surge da postura de esquerda, direta, centro, católica, evangélica ou ateia do professor ou da professora. A questão central está no conhecimento em si e o desafio de um novo tipo de cérebro: o do aluno. Hoje eu sinto que, quando damos aula, fazemos como comissários de bordo falando as normas de segurança no avião: estamos falando e todos estão ao celular.

b) O segundo problema deriva, especialmente em escolas públicas, da questão material. Falta água, falta papel higiênico, falta merenda, as carteiras estão “detonadas”, o ambiente necessita de manutenção e as bibliotecas estão desatualizadas. A mensagem que os prédios passam é de que não existe importância na educação e, por isso, o prédio está assim. Já visitei escolas com goteiras no meio da sala, janelas quebradas e nas quais bate um sol abrasador, quase nunca existe um sistema de refrigeração e com sorte, há um quadro bom com giz. Nas escolas particulares o ambiente material, em geral, é melhor.

c) Terceiro: a formação pedagógica nas licenciaturas precisa de uma reformulação enorme. Existe uma crescente desvalorização da função do magistério. Pesquisa recente entre muitos países mostra que nosso olhar sobre o professor é o pior na comparação mundial. Escasseiam educadores em todas as áreas, especialmente em química, física e matemática. A carreira é cansativa e, normalmente, mal paga. Dadas as condições dominantes, quem desejará ser professor nos próximos 30 anos?

d) Aumenta a pressão sobre a escola para que ela, além de ensinar conteúdos, prepare para a vida profissional e garanta a aprovação no vestibular. Há expectativa que o ambiente escolar seja um centro de formação de valores pessoais e de atitudes. Cada vez mais demandas e cada vez menos autoridade e tempo: a equação é impossível de ser equilibrada.

e) Os alunos não são uma folha de papel em branco. Todos já possuem valores, ideias, visão de mundo e preconceitos. Tudo deriva mais das redes sociais do que do livro didático. Como eu já disse, ao final do curso do ensino médio, o desejo deles é por i phone e por carros, não por um sindicato ou pelo manifesto do partido comunista. Há professores doutrinando para o comunismo? Deveríamos olhar o resultado: se houve tal doutrinação ela é um retumbante fracasso. Vi dois vídeos de colegas tomando atitudes erradas e sendo autoritários com a divergência política encontrada pelos alunos. Um professor berrando e descontrolado (possível de ser explicado mas não de ser defendido como atitude) será alvo do grupo de WahttsApp dos alunos e de piadas na hora do intervalo. Alguém acha que um aluno contrariado por um professor fora de controle passará a mudar de opinião política? O mesmo ocorre com escolas religiosas que doutrinam para as crenças: os alunos não terminam o ensino médio piedosos, teólogos ou aspirando à vida contemplativa. Gostaria que nós tivéssemos essa influência e ela existe em algum grau. É muito menor do que as pessoas imaginam.

Em resumo, se um paciente está com hemorragia, não necessito perguntar a visão dele sobre Che Guevara ou sobre Adam Smith, necessito parar a sangria. As verbas de educação cresceram nos últimos anos e o Brasil gasta relativamente bastante, porém, o dinheiro parece não chegar à trincheira da sala de aula. Precisamos aprimorar o uso do dinheiro e usá-lo onde realmente faz falta. Há importância em discutir escolhas políticas nos currícula e na sala. Ainda sinto que a hemorragia deveria ser estancada primeiro. O professor de esquerda e o de direita continuam ganhando mal, ambos, não sendo ouvidos pelos alunos e são esmagados pela carga horária. O corpo sofre, as pernas cansam, a voz falta e ansiedade dos professores está no limite. A crise da educação existe se você gritar “companheiros” ou “anauê”. Como disse Yuval Harari, somos a primeira geração da história que não sabe o que ensinar aos alunos. Para tudo que afirmei existem exceções notáveis e fatos que desmentem as afirmações. Tentei um quadro geral de um aluno que, na sua maioria, é de escola pública. Existe uma hemorragia enorme e ela não nasce de camisetas vermelhas ou auriverdes. Quem você, no fundo, imagina que definiu nossa última eleição? Um professor descontrolado ou grupos de WhattsApp? Livros didáticos ou fake news? Temo pela crescente irrelevância da escola e pela ascensão dos algoritmos definidores de gostos e de mercados. Se todos os professores são doutrinadores petistas e foi eleito um candidato contrário ao petismo, não seria a prova científica e clara de que a doutrinação escolar não funciona?

Obs: Leandro Karnal é historiador, doutor em História social pela USP e professor na UNICAMP.  É convidado de programas como o Jornal da Cultura e Café Filosófico. Escreveu em autoria ou co-autoria inúmeros livros, alguns dos quais estão entre os mais vendidos do Brasil, como “Verdades e Mentiras” ; “Felicidade ou Morte”; “Pecar e Perdoar”; “Detração – breve ensaio sobre o maldizer”; “História dos Estados Unidos “ , “Conversas com um jovem professor” e outros. É membro do conselho editorial de muitas revistas científicas do país. É colunista fixo do jornal Estadão e tem participações semanais nas rádios e canais de TV do grupo Bandeirantes.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]