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No post anterior sobre o tema, eu defendi que não necessitamos de uma nova lei garantindo liberdade ou pluralismo, pois já temos leis maiores com tal propósito. Não discuti sobre posicionamentos de direita ou de esquerda, apenas falei de sobreposição de legislação.
Vamos a alguns conceitos mais complexos. A neutralidade é um desejo e uma meta, jamais realizável na sua integridade. Todo cientista, todo saber, todo profissional deveria buscar a maior isenção pessoal possível e eliminar a maior quantidade da sua subjetividade possível. Neutralidade é uma meta. Todo ser humano nasce em uma inserção histórica, tem uma renda específica, uma orientação religiosa, uma identidade étnica, uma orientação sexual, uma visão de mundo e uma língua materna. Ele sempre expressará algo a partir de tal realidade. A língua não é neutra e o conhecimento não é neutro. Dentro da nossa subjetividade impossível de ser superada, devemos ter por objeto a busca de verdades claras e demonstráveis. Dentro da ciência, tais verdades serão superadas por outras um pouco menos erradas em breve. Se pensarmos em verdade como a parte cognoscível do real, entre mim e o real existe um sujeito e toda mediação implicará um sujeito que é mutável e histórico.
Vamos pensar por exemplos. Quando dizemos que a Suíça é historicamente neutra, significa que a Suíça evita fazer parte de subjetividades maiores em acordos e alianças internacionais e opta por uma subjetividade mais limitada e regional em busca de valores caros aos suíços, como salvar a vida de suíços e acumular mais capitais em paz. Quando dizemos que o juiz deve ser imparcial/neutro no julgamento, significaria que ele não parte de um pressuposto anterior, todavia segue uma busca de justiça que pode favorecer ou não o réu. Isso implica dizer que o juiz determina que o sistema legal maior e seus dispositivos constitui um grau maior de objetividade (ou de menor subjetividade a partir de regras conhecidas) do que as envolvidas no litígio. A subjetividade jurídica serviria para equilibrar as subjetividades das partes do processo. A questão maior é onde eu coloco meu ideal de subjetividade. Legisladores com opções políticas e partidárias muito claras elaboraram uma lei subjetiva. O juiz (que também possui opiniões e vivências políticas) deve introduzir nova subjetividade diante das duas subjetividades das partes envolvidas. Sempre é importante lembrar: todo juiz de futebol torce para um time. Seu objetivo é, ao apitar um jogo, evitar o máximo possível que suas subjetividades interfiram demais na subjetividade das regras do futebol. E novo: objetividade é desejável, jamais realizável em padrão total.
Quando eu utilizo a palavra ideologia (exemplo: o ensino de tal professor é ideológico) eu parto de um conceito de que ideologia seria a distorção de um dado real a partir de uma subjetividade prévia. Ora, toda fala, ensino, texto ou posição é fruto de um conjunto de crenças e vivências anteriores. A língua possui ideologia prévia ao estipular que o Deus cristão seja grafado com maiúscula e os deuses gregos com minúsculas. A gramática foi, ideologicamente, cristianizada. Quando eu leciono para uma turma de 50 pessoas de diferentes gêneros e digo “atenção alunos” a gramática optou pelo masculino em função de elaborações ideológicas de fundo masculino. Por que o grupo menor numérico (homens) domina sobre o grupo maior (mulheres)? Há ideologia na língua, nas roupas e nas crenças. Quando eu organizo um currículo escolar enfatizando A ou B, faço opções prévias e subjetivas.
Sempre acreditei que a principal função do ensino não seria realizar a plena neutralidade, mas desvendar as ideologias presentes nas ações e discursos nossos e do mundo. Um bom professor de história, por exemplo, não é aquele que estuda exclusivamente a figura de Napoleão III ou, pelo contrário, explora apenas a vida do nascente operariado francês em Lyon, por exemplo. As duas escolhas são ideológicas. Se eu estudasse luta de classes na França ou modelos de arte romântica em Delacroix ou os estudos de Pasteur, eu seria, igualmente ideológico. Todo recorte apresenta limites. O ideal em uma boa aula não seria a neutralidade (em si já uma ideologia) mas a análise dos andaimes de cada ideologia, a análise da construção do que os alemães chamavam de visão de mundo ou cosmovisão (Weltanschauung). Conservadores e marxistas estão de acordo que ideologia seria a distorção. Para marxistas, por exemplo, ideologia seria a elaboração cultural ou discursiva (ou outro padrão) que mascara relações de dominação. Assim, para um marxista, não enfatizar luta de classes (para eles o motor da História) seria ser ideológico e, como tal, falso. Para um conservador, enfatizar luta de classes em sala de aula seria ser ideológico, e, como tal, falso ou parcial.
O tema é mais vasto do que o esboço acima. Apenas queria enfatizar o que eu disse: neutralidade é uma meta, isenção absoluta não existe. Vivemos imersos em valores (conscientes e inconscientes) e a sala de aula seria, do ponto de vista ideal, um espaço de contraposição de valores para a elaboração individual de uma nova subjetividade chamada, em geral, conhecimento. Encerro com um exemplo de três caminhos possíveis para um tema clássico, Revolução Francesa:
01) Posso optar pela descrição dos fatos como a queda da Bastilha ou a fuga de Luís XVI para Varennes. Seria uma opção pela metodologia positivista e a subjetividade estaria em quais fatos eu destaco ou quais eu omito, já que, mesmo de forma positivista, não posso descrever todos os fatos. Um professor que descreve fatos e não acrescenta nenhum adjetivo ou julgamento já fez o julgamento na seleção dos fatos. Ele decidiu, por exemplo, descrever Robespierre e não Olympe des Gouges a partir de conceitos prévios. A grande fantasia positivista era buscar as coisas “tal como ocorreram”. Nenhum historiador profissional persegue tal meta.
02) Posso pensar a revolução do ponto de vista de macroestruturas sociais e econômicas. Por exemplo, a existência da mão de obra servil ou a tipologia estamental da sociedade francesa. Neste caso, saio do fato individual e agrupo em conjuntos maiores, diminuindo o indivíduo e valorizando grupos. De novo: quais grupos e por quais critérios? Normalmente o numérico (ênfase na população camponesa) ou qualitativo ( ênfase da burguesia urbana).
03) Posso destacar estruturas entremeadas de fatos, caminho dominante na sala de aula do ensino médio. Falo da nobreza provinciana, igualmente descrevo o juramento da sala do “Jeu de Paume”. Entremeio tudo com análises de ideias como Iluminismo, de biografias como Danton, de representações como a de David sobre a morte de Marat ou até de músicas revolucionárias como o popular “Ça ira! Ça ira!”. Por fim , geralmente escolhemos trechos de documentos importantes como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Por que tal documento? Porque nele identificamos valores que nos acompanham como o poder derivar do povo e a isonomia jurídica. Nosso presente determina as escolhas que fazemos em relação ao passado.
Em resumo, mesmo nunca atingindo neutralidade, o papel do historiador é evitar anacronismos, teleologias e contrapor visões distintas sobre um mesmo fato. No momento atual, essa é a subjetividade que consideramos científica.
No próximo texto tratarei da realidade da sala de aula.
Obs: Leandro Karnal é historiador, doutor em História social pela USP e professor na UNICAMP. É convidado de programas como o Jornal da Cultura e Café Filosófico. Escreveu em autoria ou co-autoria inúmeros livros, alguns dos quais estão entre os mais vendidos do Brasil, como “Verdades e Mentiras” ; “Felicidade ou Morte”; “Pecar e Perdoar”; “Detração – breve ensaio sobre o maldizer”; “História dos Estados Unidos “ , “Conversas com um jovem professor” e outros. É membro do conselho editorial de muitas revistas científicas do país. É colunista fixo do jornal Estadão e tem participações semanais nas rádios e canais de TV do grupo Bandeirantes.