Djanira Silva 1 de fevereiro de 2019

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Passamos a maior parte da vida procurando desculpas para a morte, e cuidando para não morrer. O médico nos manda andar, beber e sorrir. Tudo bem. Ou tudo mal. Não sei. Andar quando as velhas pernas pedem descanso. Beber água sem ter sede E sorrir. Sorrir de quê quando olhamos na direção do fim.

Caminho na praça. Muita gente faz o mesmo. Final de tarde que me faz voltar aos tempos de adolescente quando caminhar na praça era diversão, namoro e muita alegria. Os velhos sentados nos bancos ao redor dos jardins, me fazem lembrar das festas no clube. Naquela época as jovens ficavam sentadas à espera de serem “tiradas” para dançar. Esperar pela festa era um suplício e não o que se diz – o melhor da festa é esperar por ela. Acho que o melhor da festa é a festa mesmo.

Agora, aqui neste salão, as pessoas esperam, esperam a chamada para os exames, em vez dos galanteios dos namorados, recebem diagnósticos nem sempre agradáveis. De qualquer forma, alguns “dançam”.

Ouço conversas. Pedaços de conversas. As pessoas caminham e falam dos mais variados assuntos.Se conseguisse juntar tudo, com coerência, teria, certamente, uma boa história para contar. À minha frente um casal que, pela indiferença com que se tratam, dá para perceber, claramente que a união está com a validade vencida. Estão, declaradamente em campos oposto. Um não concorda com o outro em nada. Não conseguem disfarçar os problemas que têm em casa. Às vezes penso que as pessoas casam para terem com quem brigar e a quem trair.

Escuto uma senhora dizer, hoje comprei uns pegadores ótimos. Não deu para saber se eram pegadores de roupas ou de panelas. Certamente para fechar pacotes com restos de biscoitos,de farinha ou açúcar. Para ela devem ser especiais. Do contrário por que estaria tão eufórica contando à amiga e me deixando curiosa para saber onde comprar? Quase perguntei.

A conversa dos homens é diferente. Alguns falam baixo de forma quase imperceptível. Vejo um banco desocupado. Quando me aproximo dois senhores se afastam para que eu me sente. Conversam. O assunto são as reservas indígenas. Tento prestar atenção. Um deles fala da falta de ambição dos índios – eles caçam pescam e, enquanto tem o que comer, descansam. Por isto, são taxados de preguiçosos. Penso com os meus botões, será que estão errados? Ou errados estamos nós, que trabalhamos a vida inteira, privando-nos de muitas regalias, para amealhar e deixar de herança para quem não ajudou a ganhar? Na verdade tudo quanto poupamos serve mais aos outros do que a nós mesmos

O índio foi retirado da natureza para morrer na civilização. O homem chegou às reservas implantou novos costumes, modificou os hábitos alimentares acarretando com isto graves e irreversíveis consequencias – a obesidade e o infarto. De paletó e gravata, vivendo em ambientes fechados, escravos de uma conta bancária perderem o contato com a vida e a natureza para morrerem esquecidos de suas origens.

Obs: Texto retirado do livro da autora – Doido é quem tem juízo

A autora é poetisa, escritora contista, cronista, ensaísta brasileira.

Faz parte da Academia de Artes e Letras de Pernambuco, Academia de Letras e Artes do Nordeste, Academia Recifense de Letras, Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, Academia Pesqueirense de Letras e Artes , União Brasileira de Escritores – UBE – Seção Pernambuco
Autora dos livros: Em ponto morto (1980); A magia da serra (1996); Maldição do serviço doméstico e outras maldições (1998); A grande saga audaliana (1998); Olho do girassol (1999); Reescrevendo contos de fadas (2001); Memórias do vento (2003); Pecados de areia (2005); Deixe de ser besta (2006); A morte cega (2009). Saudade presa (2014)
Recebeu vários prêmios, entre os quais:

Prêmio Gervasio Fioravanti, da Academia Pernambucana de Letras, 1979
Prêmio Leda Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, 1981
Menção honrosa da Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1990
Prêmio Antônio de Brito Alves da Academia Pernambucana de Letras, 1998 e 1999 
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2000
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2010
Prêmio Edmir Domingues da Academia Pernambucana de Letras, 2014

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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