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Só o ser humano é capaz de contar o tempo. Na natureza, há animais capazes de pressentir se vai chover ou estiar. Ao despontar da madrugada, o galo canta. Ao mudar das horas, o jumento relincha. No entanto, somente a humanidade faz história e, assim, faz do futuro (aquilo que há de vir) possibilidade do novo. Há pessoas que pensam: “o tempo resolve”. Infelizmente, isso não é verdade. A passagem do tempo não acarreta por si mesma e mecanicamente mudança para melhor. O que faz o tempo ser fecundo de algo novo é o amor. Celebrar o ano novo pode significar isso: colher as sementes de bondade espalhadas na terra durante o ano passado e garantir que sejam semeados novos brotos de paz e justiça.

Neste primeiro dia do ano, o Brasil assistirá a posse do novo presidente da Republica e dos governos estaduais, renovados ou reeleitos. Se, para a maioria dos brasileiros, esse governo será bom ou se será péssimo, será responsabilidade não apenas dos que foram eleitos, mas também das pessoas que os elegeram, sabendo quem são, o que pensam e o que propõem para o país.

Provavelmente, vamos precisar de um pouco mais de tempo e de distância histórica para compreender o que agora estamos vivendo. Talvez, para quem tem fé ou também para quem se declara ateu, o mais difícil será compreender porque bispos, padres e pastores cristãos assumiram as posições que tomaram e deram o seu voto a alguém que, publicamente, tomou posições opostas à paz, à justiça, aos direitos dos pobres e à não violência, princípios claros do evangelho de Jesus.

No campo católico, isso revela, ao menos, duas coisas.

1 – A primeira é que há modos não só diferentes (o que seria válido), mas divergentes de interpretar a fé e a missão entre grande parte do clero e as pastorais sociais. Diversos bispos tomaram posição contrária aos padres mais lúcidos de sua diocese e oposta a todas as pastorais sociais e mesmo às orientações mesmo tímidas e discretíssimas da CNBB.

2 – Ficou claro que, em muitas dioceses brasileiras, bispos e padres ainda não ficaram sabendo que, desde março de 2013, o bispo de Roma, o papa Francisco, propõe uma Igreja em saída e a serviço da humanidade, especialmente dos pobres. Não poucos bispos e padres parecem ignorar isso, ou se sabem, mostram claramente que não concordam e não querem seguir essa proposta.

Para nós e para todos os brasileiros, esse ano pode ser novo e mais venturoso independentemente do governo, aparentemente, escolhido pela maioria dos votantes. As Igrejas cristãs costumam falar em “ano da graça de 2019”. Ele será isso porque os cristãos que seguem o Cristo no caminho de sua encarnação no mundo atual não renunciarão ao amor e à solidariedade. Não responderão ao ódio com ódio e à violência com violência. Como, na época do Nazismo, afirmava a jovem judia Etty Hillesum no campo de concentração: “Podem tirar de nós tudo, menos a humanidade”. E quem enfrentou ditaduras passadas e repressões sabe que nenhum poder repressivo dura para sempre.

Para quem tem fé, o importante do tempo não é a contagem quantitativa, mas a sua densidade. A regra beneditina ensina aos monges que o tempo nos é dado como “um prazo a mais para a nossa conversão”. Paulo escreveu à comunidade cristã de Roma que “a escuridão da noite quase passou e o dia está chegando. Devemos, então, ser como pessoas que despertam na madrugada e organizam suas vidas não como quem vive na escuridão da noite e sim à luz do dia (Rm 13, 13).

Esse apelo para “viver à luz do dia” é um modo de dizer que temos de ser lúcidos (o próprio termo lucidez vem de luz). Concretamente, isso significa aprimorar o espírito crítico e refinar a consciência para saborear a vida como algo sempre novo. Assim, fortalecemos a comunhão com os outros e com a natureza.

Sem dúvida, as transformações sociais e políticas virão não de governos e sim da sociedade civil e dos movimentos do povo organizado. Independentemente se o novo governo respeita ou reprime, se valoriza ou combate as organizações da sociedade civil, todos temos de lutar para que se obedeça à Constituição Brasileira e aos direitos internacionais da sociedade civil.

Aos seus contemporâneos, Jesus se lamentou: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que são enviados! Quantas vezes, quis reunir os teus filhos e filhas, como a galinha junta os pintos debaixo das asas e tu não quiseste?” (Lucas 13, 34).

Hoje, para nós, inseridos nesse mundo como ele é, ele nos envia como ovelhas no meio de lobos, com a missão de ensaiar e testemunhar pelo nosso modo de viver, que o reinado divino no mundo está próximo e, de certo modo, já está presente. E isso, de fato, torna esse ano novo.

Obs: O autor é monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares.
É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 45 livros publicados no Brasil e em outros países.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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