O cristianismo nasceu universal, sob os impulsos da postura universal de Jesus de Nazaré que não tomava em consideração se alguém era judeu ou não judeu, pecador ou ‘justo’, homem ou mulher, mas tratava a todos e todas de modo igual, independente de gênero, nacionalidade, situação social, cultural ou econômica. Com isso, ele colocou as bases para o universalismo cristão, marca registrada da novidade trazida pelo profeta galileu.
Mas, na medida em que o cristianismo cresceu, perdeu-se o senso do universalismo. A igreja começou a formar um ‘rebanho de fieis’, lutar contra ‘infiéis’ e ‘hereges’ e formatar paróquias para proteger os fiéis contra influências maléficas de fora. Perdeu-se o senso universalista. Quanto mais a igreja cresceu, tanto mais ela agiu como se o mundo inteiro fosse seu território e que ela pudesse fazer valer suas leis para a humanidade toda. Correndo atrás de poder e prestígio, ela perdeu um dos mais preciosos tesouros do legado de Jesus de Nazaré: a capacidade de se dirigir com amor e desinteresse a todas as pessoas que habitam este planeta. Ela se envolveu em guerras (como as Cruzadas contra o Islã, uma religião irmã) e perseguições, chegando ao ponto de legitimar a tortura (na Inquisição) e a escravidão (ao longo das colonizações europeias). Só no ano 1964 ela pronunciou uma condenação formal da escravidão (numa referência de passagem que passou despercebida por muitos), por ocasião do Concílio Vaticano II. Isso mostra como a falta de sensibilidade universalista é algo bem recente (apenas 50 anos nos separam do Concílio Vaticano II). Não se pode pensar que ela desaparecerá tão cedo.
Nesse contexto é importante que surjam pessoas públicas que aproveitam de sua posição privilegiada para reavivar entre nós o senso perdido do universalismo. No século XX tivemos figuras como Mahatma Gandhi, que aproveitou da grande visibilidade que a imprensa mundial lhe deu para difundir amplamente a ideia do universalismo (foi morto por um fanático que não entendeu nada). Tivemos Nelson Mandela, presidente da República da África do Sul, tivemos Martin Luther King, pastor batista, tivemos Helder Câmara, arcebispo católico. Essas pessoas aproveitaram da visibilidade que os meios de comunicação lhes forneciam para difundir o evangelho do universalismo, cada um num determinado setor.
Hoje, entram novos atores a divulgar esse evangelho. Temos o líder grego Alexis Tsipras da Syriza, um político situado num determinado contexto, que divulga uma mensagem que vale para o mundo inteiro: a política não deve servir aos bancos, mas aos cidadãos. Mas temos igualmente líderes que aparecem quase diariamente nos grandes meios de comunicação, mas que não se dirigem à humanidade como um todo, como Barack Obama, que só fala em benefício dos Estados Unidos, e Ángela Merckel, que só age em benefício da Alemanha.
É com alegria que se percebe que o papa Francisco vem se juntar aos líderes que enxergam a realidade universal em vez de olhar somente para seu ‘rebanho’. A publicação de sua Carta Encíclica (carta circular) ‘Laudato si’ é um sinal inconfundível dessa nova postura. Pelo que sei, nenhum papa, ao longo dos séculos, se dirigiu a todas as pessoas que vivem neste planeta sem nenhum tipo de discriminação. O título da Carta já diz tudo: ‘Carta encíclica Laudato si, sobre o cuidado da casa comum’. O planeta terra é nossa casa comum, a casa de todos e de todas. Ao longo da Carta, o papa escreve ´nós´, ou seja, envolve seus leitores e suas leitoras numa comunhão de leitura e observação. De vez em quando, ele escreve ‘eu’ (não ´nós’, segundo tradicional protocolo papal), quando enuncia uma opinião pessoal. Isso faz com que estejamos dialogando com Francisco quando lemos sua Carta. Significativamente, o papa assina o documento com seu nome, numa só palavra: ´Franciscus´. Francisco deseja conversar conosco de igual para igual, pois faz ponderações sobre temas que nos atingem a todos e todas, desde o papa até o mais ferrenho ateu: o clima, a água, a biodiversidade, a sujeira dos rios e dos córregos, a qualidade de vida, a degradação social, a desigualdade planetária, etc. Repito: papa Francisco não escreve como líder da igreja católica, embora seja verdade que ele está na posição privilegiada de poder divulgar suas ideias num raio muito amplo. Ele se aproveita disso, como toda razão. Afinal, o papado não é um serviço prestado a toda a humanidade?
Todos e todas necessitamos de ar puro (não o ar que se respira em São Paulo), água pura e suficiente, eletricidade produzida por água, pão e feijão produzidos por plantas sadias (não como muitos produtos nos Supermercados), terra para plantar (não para enriquecer os que já têm dinheiro demais), respeito (inclusive para homossexuais etc.), liberdade (não a falsa liberdade de imprensa defendida pela Globo), dignidade (dos indígenas, negros, mulheres domésticas). É uma coisa só, um bloco só. Um dos pontos mais inovadores da Carta papal consiste no fato que ele alinha problemas ecológicos e problemas sociais e culturais. Afinal, o universalismo é uma atitude global.
Com o papa Francisco voltamos a Francisco de Assis, universalista ao ponto de pregar para peixes e pássaros, e, mais adiante, a Jesus de Nazaré, que convida cobradores de impostos à sua casa para comer juntos, como se descreve no Evangelho de Marcos (Mc 2, 15-20), atende a uma mulher siro-fenícia que não pertence ao ‘povo eleito’ (Mc 7, 24-30) e permite que uma mulher derrame óleo precioso sobre sua cabeça (Mc 14, 60 sqq). Um universalismo que passa por cima de todas as barreiras.
Com a Carta encíclica do papa Francisco se abre uma perspectiva que para muitos cristãos parece nova, mas que na realidade pertence ao DNA do movimento de Jesus.
Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”
Explicação do painel(foto)
O autor é o primeiro à direita.
“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.“