Fala-se e defende-se ironicamente o direito absoluto à vida. De que vidas?

Muita gente se reuniu na praça do mercado central para discutir e vender crenças e convicções sobre a força e a fragilidade dos corpos femininos. O intuito era de legislar sobre a reprodução desses corpos.

Muito barulho e muita mercadoria à venda. Os compradores atraídos pela força das vozes passavam de um lado para outro tentando descobrir quem ganharia mais na venda de ideias. Além disso, havia também pequenos grupos de ambulantes que tentavam expor ideias diferentes das habituais.

As habituais eram marcadas pela polarização entre o certo e o errado, o injusto e o justo, o libertador e o opressor, o falso e o verdadeiro. Eu estava no meio delas como uma mascate carregando ao mesmo tempo uma diversidade de histórias, emoções, frios e calafrios.

Na praça havia de tudo e cada um podia encontrar parte de sua própria imagem no que era vendido. Aparentemente, parecia um jogo onde a diversidade de opiniões e o tom das vozes era tão variado que valia o espetáculo.

Onde estavam os sujeitos reais sobre os quais discursavam? Por que elas não falavam naquele mercado? Por que não se mostrava a “mercadoria” real sobre a qual havia disputa de ideias e de vendas? Vendiam apenas ideias sobre elas, mas suas vidas reais estavam ocultas, encobertas, escondidas…

O fato é que os vendilhões de ideias falavam de corpos ausentes em público, de gente real proibida de aparecer porque se temia apedrejamento, prisão e até processo penal nos tribunais.

Eram mulheres proibidas de contar suas histórias reais, as dores do corpo e da alma para não se expor a julgamentos inadequados, violentos e até prisões.

Se falassem, podiam ser condenadas e aprisionadas. Por isso, os pretensos defensores da vida e a Polícia Militar com fuzis e bombas de gás estavam ali para garantir a (des) ordem.

Dos palanques montados, muitos discursos inflamados podiam ser ouvidos… “A vida humana é o valor mais absoluto que temos”, dizia uma insigne jurista. E o clérigo barrigudo fazia-lhe eco confirmando a verdade proclamada e acrescentando que “essa era também a vontade indiscutível de Deus e disso ele tinha certeza absoluta”.

“Todos nós temos que preservar a vida das crianças como um dever absoluto”, continuava um religioso vereador de uma grande cidade, sorrindo para possíveis eleitores. Até um bispo estava no meio e, em altos brados, erguia seu báculo falando do dever de obedecer às leis divinas desde o primeiro instante de vida.

Outros, do outro lado da praça do mercado, seguiam com discursos diferentes… “As estatísticas falam da morte de mulheres, sobretudo pobres”. Falam das consequências em seus corpos caso não haja hospitais e leis que garantam sua vida. Explicam que a vida das mulheres carentes está em jogo, e também a vida daquelas que têm outros filhos.

E continuavam a insistir sobre a importância da liberdade de escolha, do direito a decidir, da educação sexual da juventude, da educação para os homens, do cuidado com a saúde das mulheres. Enfatizavam que na Bíblia não havia proibições para a interrupção da gravidez.

Cada grupo tinha a sua verdade e, dentro de cada um, cada indivíduo defendia a sua nuance particular discordando do outro ou acenando afirmativamente num aparente consenso.

Um estranho medo habitava as convicções manifestadas ou ocultadas. Medo do outro, medo da morte, medo de des-ocultar ações e intenções, medo do castigo divino…

Todos os que discursavam possivelmente não tinham experimentado em seus corpos as convicções que defendiam. Falavam em nome das pobres mulheres, em nome de Deus, em nome do valor da vida, em nome da ciência e das estatísticas, em nome da medicina, da teologia, da Bíblia. Traziam ideias anacrônicas ou atuais, cada um defendendo a sua verdade, cada um tentando argumentar para convencer os outros, acreditando poder legislar para todas as mulheres e impor sua mercadoria como lei nacional.

Quase não ouviam as vozes uns dos outros nem a contradição e os limites de suas falas. Falavam do vago direito à vida… Mas quem não quer o direito à vida? Entretanto, sabemos bem que a vida e a morte se misturam a cada instante e é isso que confunde.

Que saídas diante das idealistas “mercadorias” vendidas? Quem compra o que se vende? Quem possui “mais” o absoluto da vida? Que Deus? Que sociedade? Que vidas? Que teorias? Que religiões? De fato os absolutos são apenas aparentes e convenientes… Retórica. Pura retórica.

Outros cenários fora do mercado…

Imagine a senhora que minha filha Madalena, 14 anos, engravidou de meu companheiro, o pai de meu filho Carlinhos. Ela quer se matar e o desgraçado ainda disse que, se ela continuar com a gravidez, ele não dá mais a pensão do meu menino…

Imagine a senhora que minha filha Marisa, 14 anos, engravidou do namorado. Ele é de família rica como nós, mas não dá para ter filho agora. Um amigo nosso, excelente ginecologista, resolveu o problema e estamos em paz…

Na porta do palácio do governo, na porta do palácio episcopal, na porta da casa do senador há policiais com ordem de matar possíveis invasores… Os morros e favelas são cercados de milícias… O fato é que todos matam.

Alguns moradores de rua foram acordados com jatos de água fria numa manhã de inverno… Um morreu na rua.

As crianças de dez escolas públicas adoeceram com os excessos de agrotóxico nas verduras… Duas morreram.

E ironicamente fala-se e defende-se o direito absoluto à vida. De que vidas?

Estes fatos, talvez banais, mostram a mistura da vida com a morte, da morte com a vida, mostram a diversidade dos comportamentos de classe, de gênero e de etnias.

Mistura significa que tudo se mantém na mistura, que afirmação e negação subsistem porque estão juntas. Bem e Mal são uma mesma mistura, assim como Deus e o Diabo… Uns contra os outros, uns com os outros, uns na dependência de outros… O mal mantém o bem e o bem mantém o mal.

O pretendido bem é afirmado na defesa contra o suposto mal e vice-versa. Mas onde está a razão, a ordem, a liberdade, a verdade, o direito? Estão na MISTURA da vida. Impossível outro jeito no interior de nossa real diversidade. Só nos é possível a impossível separação entre eles, a mistura na mesma massa. Nessa mistura o múltiplo e o contraditório subsiste como num mesmo corpo que desafia qualquer lei e qualquer direito.

Por isso, há que negociar, há que legislar na mistura da vida, para a mistura da vida, da vida misturada que somos e que nos permite viver. Há que legislar no provisório, na desarmonia, na contradição. O fato é que os absolutos não se sustentam. São pura retórica. São aparência da verdade e da unidade. São ilusão.

Uma única língua não dá conta da complexidade do real. Por isso, no mito da “Torre de Babel” onde se pretendia impor uma só língua para todos os humanos, a torre é destruída por Deus.

A língua é multiplicidade, é “misturança”, diversidade de línguas, polifonia de instrumentos, de vidas e vozes. O direito e as leis devem apenas garantir que se manifeste e se garanta a vida da diversidade de escolhas e necessidades.

Nessa linha, há situações que embora legisladas não somos obrigadas a cumpri-las. Por exemplo, “Proibido fumar nos restaurantes”. Essa lei não se aplica aos não fumantes, mas é necessária para a manutenção da ordem da saúde pública.

“Não ultrapassar com o sinal vermelho”, essa toca a todos os motoristas, mas provavelmente não toca o grupo de indígenas que vivem na mata sem automóveis.

Tudo é misturado, contingente, limitado, situado. Quando a lei se faz necessária num contexto é melhor tê-la por medida de segurança e proteção. Ela não obriga a todas, mas sustenta a necessidade das vidas.

É isso que vivem as eruditas da vida, as que experimentaram a dor que sangra e mutila por falta de lei, aquelas que não podem falar porque não as deixam, aquelas que receberam pancadas, que foram apedrejadas à luz do dia.

Por que não recuperar o espírito das leis? Esse espírito indica que as leis são provisórias, contextuais e seletivas e nem sempre somos obrigadas a observá-las. As leis aprovadas podem ser discutidas, contextualizadas e sua aplicação acolhida ou não, dependendo da situação.

O espírito das leis indica a necessidade de liberdade de escolha na diversidade dos seres. Só me submeto a algumas leis quando delas necessito, quando minha vida está exposta a situações de risco.

Nada é absoluto… Nada é historicamente eterno… Tudo é mutação… Nenhuma Bíblia pode ser a verdadeira Palavra do Mistério Infinito. Nenhuma pode ser a última palavra para nós…

Nossos pequenos deuses são nossa imagem, a imagem de nossas necessidades, de nossas fragilidades, de nosso desejo de dominar e aparecer como melhores e mais donos da verdade.

Como está escrito no livro do Eclesiastes: “Tudo é vaidade, tudo é fugaz (…) e não há nada de permanente debaixo do sol”.

De forma espantosa, o autor do texto diz ainda ter examinado todas as opressões que se cometem debaixo do sol e conclui de forma talvez ambígua e pessimista: “Mais feliz é o que não nasceu, pois que não vê todo o mal que está debaixo do sol”.

Trata-se de uma alerta aos insensatos, aos que afirmam absolutos e usam do nome de Deus para justificar seus propósitos. Por isso, é salutar aplicar nosso raciocínio e nosso “coração de carne” para bem interpretar a diversidade de seres humanos e das situações.

Não caiamos na tentação dos absolutos. Quem somos nós que ontem não éramos e amanhã não seremos?

Publicado em Carta Capital em 16/08/2018 

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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