Paulo Rebêlo 15 de janeiro de 2019

(www.rebelo.org)

Vovó recheava a mesa de cimento com comida caseira, ele pegava uma coisa ou outra, mas era uma prévia do grande momento: a bolacha creme craque.

De todas as memórias que mantenho do meu avô materno, nenhuma delas é mais presente e engraçada do que a bolacha cream cracker.

Vovó recheava aquela mesa gigante de cimento com pão, banana, cartola, queijo, sopa, galinha, manga, macaxeira, doce caseiro e kisuco de guaraná. O vô pegava uma coisa ou outra, talvez um pouco de cada coisa, mas era tudo meio que uma prévia do grande momento: a bolacha creme-craque.

Ele olhava para aquela bolacha de um jeito tenro que beirava a poesia. Não era fome, era uma ligação maior. Sem pressa alguma, passava a manteiga bem devagar por cima da bolacha como se estivesse pintando o corpo de uma linda mulher.

As mordidas eram várias e em câmera lenta. De pedaço em pedaço, de curva em curva.

Depois de uns anos, comecei a pensar que gostaria de olhar para uma mulher do jeito que meu avô olhava para a bolacha creme-craque.

Teve doença, teve derrame, teve enfarte, teve mais doença, teve mais derrame, teve mais enfarte, teve o tempo passando e as décadas sumindo, mas só me preocupei e achei que ele fosse morrer de verdade quando, em algum momento, me falaram que o médico havia proibido o coitado de comer bolacha creme-craque.

Foram restrições alimentares sérias e pesadas, mas até a bolacha?

 Tentaram bolacha Água & Sal, sem manteiga ou margarina. Tentaram novas marcas, novas experimentações e sabores, mas sempre achei meio inútil. Acho que ele também.

Eu, no lugar dele, teria morrido ali mesmo naquela época.

Mas o danado superou tudo de novo, como sempre, e depois mais uma vez, e depois de novo, e assim foi vivendo e quebrando bolachas, mesmo que eventualmente em quantidades limitadas.

Nunca gostei muito de bolacha creme-craque, nem quando criança. Não sei o que aconteceu ou quando bati a cabeça, mas de uns três anos para cá tenho comido creme-craque com vontade. Acho que coincidiu com a época que estivemos mais afastados, mas talvez nem isso, no fundo estou afastado há bem mais tempo.

Talvez, inconscientemente, tenha aprendido a gostar de creme-craque porque a cada mordida me vem alguma memória daquela mesa gigante de cimento; e a cada pacote terminado, a lembrança de que nem se eu vivesse por mais quatro vida teria como pagar ou retribuir o quanto devo a eles.

Notei que a bolacha creme-craque começou a resolver minha vida do jeito que meus avós resolveram tanto a vida dos meus pais no passado. A creme-craque tem salvo minhas madrugadas e tem quebrado o silêncio da noite e a solidão daqueles farelos soltos pelo chão.

 Fiz x-burger com a bolacha no lugar do pão.

 Também coloquei lasanha congelada, carne de sol, escondidinho de charque, requeijão estragado, queijo mofado, cogumelo, miojo, maionese, catchup e lembro (remotamente) de alguns dias de larica com maionese na creme-craque.

Agora que ele se foi, não fico me perguntando aqueles clichês-mimimis se no céu tem bolacha, apenas me questiono até quando vou sentar no terraço de casa e vê-lo sorrindo com uma bolacha na mão e a faca de manteiga na outra.

Tenho o sentimento de que me vou deste mundo bem antes que chegue o momento de um médico me proibir de comer um pacote de bolacha creme-craque por causa da saúde. Mas, se errado estiver, serei o primeiro caso de morte voluntária e premeditada por excesso de bolacha creme-craque em desobediência médica. (04.11.2018)

Obs: Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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