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Festas tradicionais funcionam como marcos de memória

Machado fez essa pergunta num soneto cometido próximo do fim da sua vida. Ele imagina um homem que decide registrar a data cristã do “berço do Nazareno” em versos. De repente, a personagem hesita e perde a inspiração. Diante da folha em branco, registra apenas: “Mudaria o Natal ou mudei eu?”.

Machado tem o dom de desconstruir crenças. Os contos A Cartomante e Missa do Galo indicam esse esforço de retirar metafísica do mundo. Difícil saber de onde surgia esse sentimento no autor. Amava sua esposa Carolina, mas não teve filhos. Frequentava altas rodas e era mulato de origem humilde, situação que o perturbou algumas vezes. Era um gênio e estava cercado de burocratas repetitivos que fariam o conselheiro Acácio de Eça parecer um gênio. Acho que Machado não gostava do Natal. Eu, pelo contrário, adoro.

Festas tradicionais funcionam como marcos de memória. Sendo balizas, indicam nossa caminhada desde a última ocasião. Por vezes, a memória retorna às celebrações da infância e a recordação nos toma de assalto. Misturar uma discreta melancolia com entusiasmo de fim de ano chega a ser de bom-tom.

É clichê dizer que o Natal é a festa da família. Quero ampliar a percepção. A festa dos dias 24 e 25 de dezembro é também da família atemporal. Convidamos pais e mães, avós e parentes. Os mortos todos se convidam para nossa casa. Não há como evitá-los; espíritos entram sempre. São como uma bruma densa que se imiscui sob a soleira de um castelo. O Natal é uma festa da memória de mortos e do contato com os vivos. Todas as casas ficam sempre lotadas, inclusive as casas que encerram apenas uma pessoa imersa no seu mundo.

Os jovens reclamam um pouco dos vivos presentes: há sempre um tio chato, pode existir uma cunhada excêntrica, é quase obrigatória a avó depressiva. Hoje, acho essa fauna (incluindo-me nela) parte da originalidade natalina.

Eu penso nos mortos que marcaram meus natais. Sinto falta deles. À medida que amadureço, dialogo mais com os ausentes, que, naturalmente, crescem a cada década. Nenhum jovem imagina o que eu sempre tenho presente: quem estará na festa do ano que vem? Mas a coluna não se pretende melancólica, nem fúnebre. Hoje é Natal. Volto ao leitmotiv: mudaria o Natal ou mudei eu?

Eu tenho certeza absoluta de que mudei muito. Algumas coisas foram muito boas, outras nem tanto. A ideia de estar com a família sempre foi importante, mas a idade a tornou fundamental. Abasteço-me de quem eu sou, de raiz, de afeto, de um Leandro sem a cenografia do mundo. Volto ao espaço que me gerou, onde cresci, no qual aprendi quase tudo. Lá chorei e ri tantas vezes. Mudamos eu e o Natal e, por isso, preciso voltar a encontrá-lo sempre.

Lutei, ao longo de 2016, para controlar a alimentação. O Natal me convida a abrir mão do plano sempre fracassado da forma perfeita. Relaxe, sente-se e coma, insinua a mesa bem-posta. Hoje, você terá um dos maiores prazeres do mundo: compartilhar refeição com quem se ama. Fora Twiggy! Viva Pantagruel!

Pormenor pequeno-burguês: não haverá, na minha família, o presépio tradicional a decorar a árvore. Motivo? Esse autor o espatifou ao guardá-lo, há mais de duas décadas. Eu, historiador, zeloso de memórias e de tradições, formado no trato com patrimônio, eu que recebi a incumbência de preservar essa peça histórica da família, que iluminava a ceia dos karnais desde o século passado. Eu, nefando destruidor, descuidado guardador; quebrei a caixa com o presépio ao guardá-lo. Foi um desequilíbrio, um baque seco, uma dor no coração e um vazio a me lembrar todo ano que devemos aproveitar tudo enquanto temos. Quando fui a Belém, na Terra Santa, procurei nas lojas da cidade algo similar que repusesse meu crime. Nada! Como Caim, vagarei sobre a Terra com o remorso gravado na testa: sou um destruidor de presépios. Ao visitar o extraordinário presépio napolitano do Museu de Arte Sacra de São Paulo, afasto-me ainda mais da obra de arte: afinal, tenho precedentes…

Assim, com iconoclastas e devotos, vamos construindo nossos natais. Conheço pessoas que se isolam totalmente nesta época e afirmam, repetidas vezes, que detestam a data. Evitam contatos e dizem ser uma noite igual a todas. O esforço delas demonstra que não. Essa sanha de negar o Natal cabe bem como uma busca de espaço na adolescência, de afirmação diante do rito familiar. Ser blasé é uma defesa diante da força avassaladora do simbolismo. Fica estranho manter esse tom na vida adulta.

Em ordem hierárquica: Natal é festa de fé. Não tem fé? Não se preocupe. Natal também é festa de família. Está longe ou rompido com a sua? Calma! Tem saída. Natal é festa gastronômica. Não gosta de comidas especiais e abundantes? Vamos tentando. Natal é festa musical. Experimente o Messias, de Haendel. Desagrada-lhe a música? Saia da sua individualidade e visite um presídio na data, um asilo, um hospital, ajude um morador de rua. Veja dores maiores do que a sua. Nada disso o toca? Vem cá, meu amigo: você tem certeza de que o seu problema é o Natal?

Para nós, religiosos e ateus, bem resolvidos e normais, com família ou sozinhos: um Feliz Natal. Um bom domingo a todos vocês!

Publicado no Estadão 25 Dezembro 2016 

Obs: Leandro Karnal é historiador, doutor em História social pela USP e professor na UNICAMP.  É convidado de programas como o Jornal da Cultura e Café Filosófico. Escreveu em autoria ou co-autoria inúmeros livros, alguns dos quais estão entre os mais vendidos do Brasil, como “Verdades e Mentiras” ; “Felicidade ou Morte”; “Pecar e Perdoar”; “Detração – breve ensaio sobre o maldizer”; “História dos Estados Unidos “ , “Conversas com um jovem professor” e outros. É membro do conselho editorial de muitas revistas científicas do país. É colunista fixo do jornal Estadão e tem participações semanais nas rádios e canais de TV do grupo Bandeirantes.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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