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Para além da Antropologia Cultural, da Sociologia e da Psicanálise
Grandes pensadores descrevem e analisam o fenômeno religioso a partir de suas funções em relação às pessoas e às sociedades: a religião funciona como força de coesão social (Durkheim), de motivação e ordenamento da vida em sociedade (Max Weber), projeção alienada do que há de sublime no ser humano (Feuerbach), de legitimação ideológica dos sistemas de opressão, “ópio do povo”(Marx).
Freud compreendeu a religião como mecanismo de compensação psíquica: sentimento profundo de orfandade, busca de apagamento da culpa pelo “assassinato” do pai primordial, carência de conforto afetivo, projeção de sonhos, mecanismo de transferência, máscara de conflitos, traumas e taras, sublimação ou repressão de pulsões instintivas.
O antropólogo francês René Girard, radicado nos Estados Unidos da América do Norte, analisa a religião como busca de “bode expiatório” para, mediante o “sacrifício”, abafar o acirramento da violência social, nascida da vontade de apropriação do poder. Nesse processo, as vítimas são penalizadas, as pessoas “marginalizadas” são identificadas e transformadas em “marginais” e, assim, condenadas e “excluídas”, “sacrificadas”. Com esse mecanismo, os algozes aparecem como vítimas e, por isso, podem continuar na cômoda posição de controladores da sociedade.
A Sociologia Crítica, a Psicologia e a Pedagogia da Libertação contrariam todas as análises funcionalistas da religião e olham para ela a partir da constatação de que “o suspiro dos oprimidos e coração de um mundo sem coração” (Karl Marx), já por si mesmo, é, ao menos virtualmente, expressão de inconformidade, gemido e protesto contra o sistema opressor. É sobre essa base que pode desdobrar-se como força de transformação social, mediante processos de desalienação da consciência popular (“conscientização”) e a mobilização política (práxis libertadora).
As Ciências Humanas descrevem as formas concretas e analisam as funções que a religião pode assumir nas diversas sociedades humanas, não chegam, porém, a explicar, em última análise, donde e por que nasce a religião. Freud, por exemplo, chegou a confessar não saber qual a origem da arte. Mas pretendeu explicar a origem da religião a partir dos complexos básicos infantis. Ora, a religião nasce da mesma esfera da arte, do encantamento com a beleza, da dimensão estética da realidade, a saber, dos sonhos e projetos para que a realidade do mundo transcenda sua figura atual, se ultrapasse. Na verdade, tanto Freud quanto Marx, apesar de preciosas intuições e análises, respiravam os ares do racionalismo do século XIX, herdeiro do Iluminismo.
Na verdade, a religião surge da vivência (bem além do mero sentimento e do raciocínio) da vida como Mistério, para além de qualquer experiência concreta e de qualquer explicação. Toda explicação é sempre provisória e suscita novas perguntas. O famoso filósofo francês, existencialista cristão, Gabriel Marcel, costumava distinguir “enigma” e “mistério”. Enigma pode ser decifrado, o mistério é indecifrável. E, de fato, o mistério está no centro da experiência da vida: a origem, o fim e as razões últimas de nossos trajetos no mundo… quem é capaz de penetrar? Nossos “porquês” mais profundos são indecifráveis.
A partir da experiência do Mistério que se dá a nós, a vida é experimentada como transcendência. Só sou mais plenamente em mim na medida em que me projeto para além de mim, mediante o amor. Essa dimensão transcendente é vivida na medida em que a pessoa se sente em referência à Realidade maior que a abarca (“ad-mirar”: olhar voltando-se para a Realidade diante da qual nos sentimos pequenos(as) e até espantados, atemorizados) e em relação com “Outrem”, isto é, a alteridade, como condição de alcançar maior plenitude humana. Dom Helder Camara, em certa ocasião, propôs falar-se de “centrar-se em si”, “descentrar-se no outro”, “supercentrar-se em Deus”. Os três movimentos se dão simultaneamente, coincidem. É interessante lembrar que o verbo “alterar” deriva do latim “alter” (outro) e significa mudar, transformar. Aí certamente está a intuição de que nós nos transformamos por força da referência a outrem, à alteridade, ao que é para além de nós mesmos(as). Se não me projeto para “além de mim”, na verdade, já não estou “”em mim”, mas “aquém de mim”. Ou seja, degrado-me em humanidade, subumanizo-me ou desumanizo-me. É o que nos sugere a narração bíblica de Gênesis 3º, quando nos fala da situação de pecado como “queda” e nudez, vergonha e sofrimento.
A transcendência não precisa ser percebida explicitamente como “absoluto”, nem como “absoluto pessoal”. De qualquer modo, resta sempre o fato de que o amor se apresenta sempre como exigência total e final, absoluta, enquanto pode exigir a entrega da própria vida, justamente o bem mais excelente. Para isso, não é preciso que se compreenda por raciocínio o absoluto como pessoal, como se dá na tradição cristã. O que importa, antes de tudo, é o fato de que o “chamado” da vida sempre nos chega através das outras pessoas, de modo que “o sentido da vida são as outras pessoas” (poeta Ferreira Gullar). A experiência do absoluto transcendente, do que nos faz ser para além, tem sempre rosto, não é abstrato e impessoal.
Religião e Fé
É importante distinguir dois sentidos de “religião”. Como fenômeno social e cultural, trata-se da busca de legitimação suprema das pessoas e das sociedades, trata-se da “aprovação divina” aos sistemas humanos, isto é, relações, estruturas e cultura. Com essa função, a religião assume a forma de sentimentos, ideias e instituições, e é objeto de análise das ciências sociais, particularmente da Antropologia Cultural e da Sociologia. Outro sentido é o da religião como impulso profundo para “re-ligar” toda a existência pessoal e social com o Mistério que nos habita, como se fosse fundamento sobre o qual tudo se assenta, e luz que se projeta sobre o inteiro caminho da existência. Neste segundo sentido, é a fonte da mística, de identificação com a dimensão divina da existência, e é objeto da Antropologia Filosófica e da Teologia Fundamental. Aí é que se percebe a vocação do ser humano para ser “ouvinte da Palavra”, como costumava dizer o grande teólogo católico romano Karl Rahner.
Essa dimensão mais profunda é o que faz surgir a fé, no sentido de FIDES (fé), FIDELITAS fidelidade), FIDUCIA (confiança). Ou seja, a capacidade de escutar o chamado do Mistério da vida (vocação) e obedecer (“ob-audire”), voltar o ouvido para dar atenção às necessidades do que ou de quem está “fora” de nós ou nos chega. Isto significa claramente que “fé” é abertura radical e confiante (Lutero) ao Mistério que nos transcende e nos exige (absoluto). Por isso, a fé toma corpo, por assim dizer, no ato de amar, que é a entrega de si. A tradição chama essa entrega de “martírio”, quando chega ao extremo da morte, ou de “mortificação” quando se trata da quota de entrega de si a cada dia (cf. 2Cor 4, 7-12). Daí, fé, esperança e amor serem três aspectos da mesma atitude global de resposta ao chamado. A atitude contrária é o fechamento egoísta ao chamado que a vida nos faz continuamente. É, na verdade, a alteridade que nos constitui como pessoa, pois “pessoa” é essencialmente relação. “A religião é a tentativa miserável” (Frederico Maurice, teólogo anglicano do século XIX), sempre imperfeita de encarnar essa atitude mais profunda e global que é, na verdade, a fé (abertura) ou o seu contrário, a idolatria. Esta, fechamento da pessoa à transcendência da vida, ao amor. Por isso, o dilema não é entre fé e ateísmo, como negação explícita de um deus, mas entre fé e idolatria. Por isso é preciso distinguir bem entre fé e crença. Sobre esse fundamento firme, que é justamente o Inexplicável, o Inefável, o Abscôndito (cf. Isaías), dá-se a experiência da transcendência da vida em relação a mim e a meu grupo, seja minha família, seja o Estado, seja a religião, seja a própria humanidade como um todo.
Maurice costumava distinguir entre “Evangelho” e “religião, e Karl Barth fazia o mesmo quando falava de “Fé” e “religião”. Na mesma linha refletia o grande teólogo e mártir nas mãos dos nazistas, Dietrich Bonhoeffer. É preciso então distinguir entre Evangelho, enquanto Palavra viva de Deus, e cultura, ao mesmo tempo, porém, que se torna possível e necessário o constante processo de enculturação do Evangelho, como lembraram os bispos anglicanos na Conferência internacional de Lambeth 1998, ao falarem da possibilidade futura de cristianismo budista, hinduísta, islâmico, judaico, aborígene, africano, etc. A religião de cada povo pode ser vista, de alguma maneira, como correspondente a seu Primeiro Testamento, assim como em larga medida o é a própria religião cristã, já que “religião cristã” não equivale necessariamente a “fé cristã”. É também essa “antigo testamento”, condição de “imagem e sombra” daquilo que ainda está por revelar-se a nós e em nós.
Perspectivas Bíblicas
A Bíblia nos fala da aliança de Deus com a humanidade, desde a criação, com Adão (Humanidade, cf. Gn 1-5) e com Noé (nova humanidade, cf. Gn 6-9). Eclesiástico se refere a essa aliança como “eterna” (cf. Eclo 17, 1-14). E Jeremias e os Salmos fazem dela o fundamento da aliança com o povo e com Davi (cf. Jr 33, 20-26; Sl 89). Os Pais da Igreja falam de quatro alianças antigas: com Adão, Noé, Abraão e Moisés.
O Primeiro Testamento não hesita em apresentar gentios como santos e testemunhas fiéis: Abel, Enoc, Noé, Melquisedec (cf. Eclo 44, 16-18; Gn 14, 18-20) e o mesmo faz o Novo Testamento (cf. Hb 11, 1-7). O próprio Abraão é justificado antes de ser membro do povo “eleito” e receber o sinal da circuncisão (cf. Rm 4). O propósito divino de salvação é compreendido como “economia universal”, mediante a Palavra, a Sabedoria e o Espírito. É evidente na corrente sapiencial, a qual chega a acolher textos estrangeiros como revelação de YHWH, como se sabe de Provérbios (cf. Pr 22, 17-23, 11; 30, 1 a 31,8), e adapta, tranquilamente, salmos preisraelitas ao culto de YHWH e, mais ainda, apresenta um sábio moabita, Jó, como exemplo de fidelidade ao Deus de Israel. O mesmo vemos nos textos proféticos quando relacionam as nações estrangeiras com seu próprio Deus, chegando a explicitá-lo de maneira muito clara no livrinho de Jonas. Amós “universaliza” a sagrada tradição do êxodo quando a atribui ao mesmo YHWH a condução de outros povos da região (cf. Am 9, 7); o rei estrangeiro Ciro é visto como instrumento dos desígnios do Deus de Israel (cf. Is 45).
Para São Paulo, os gentios podiam buscar a Deu autenticamente e encontra-Lo, mesmo que de maneira velada (cf. At 17, 2-31; Rm 1, 18-32). E diz de maneira cabal que a consciência humana é expressão interior da mesma Lei de Deus dada a Seu povo, mesmo que não a conheçam segundo a letra (cf. Rm 1, 14-15).
No Prólogo de São João, o Verbo é a Palavra/Sabedoria que se tem revelado pela criação e a história humana desde o Princípio. Por isso é preciso distinguir o Verbo do evento Jesus de Nazaré, no qual acha sua mais plena manifestação, pois n’Ele “tudo foi feito e sem Ele nada foi feito, o que foi feito n’Ele era a vida” (Jo 1, 3-4); e já estava a iluminar todo ser humano, pois vinha a este mundo. Estava no mundo e o mundo foi feito por meio d’Ele, mas o mundo não o reconheceu” (ibd., 9-10). São Paulo, com ousadia, diz que não importa conhecer em Jesus “o Cristo segundo a carne”, é preciso conhecê-Lo a partir da condição de “nova criatura” (cf. 2Cor 5, 16-17), pois o “Filho é nascido da estirpe de Davi segundo a carne, estabelecido porém Filho de Deus com poder pela ressurreição dos mortos” (Rm 1, 3-4).
Cristo é o primogênito de toda a criação (cf. Cl 1, 13-20), Senhor e cabeça da totalidade do universo (cf. Ef 1, 10. 20-23), por isso está intimamente envolvido com o processo de evolução que se consumará na nova figura do mundo, processo esse que tem o Espírito Santo como mola propulsora (cf. Rm 8). Apocalipse O designa Primeiro (criação) e Último (consumação), fonte e ao mesmo tempo cume do processo que envolve a universalidade dos seres e dos povos (cf. Ap 21 e 22). Teilhard de Chardin falou disso com a expressão “Cristo cósmico”.
O pluralismo religioso
Os Pais da Igreja se referiram a isto ao desenvolver a reflexão sobre “as sementes do Verbo”, espalhadas por Deus na criação e nos povos, de modo semelhante aos rabinos que tinham contado sobre a Lei enviada do Sinai às 70 (setenta) nações da terra, em forma de labaredas de fogo. Nos poemas bíblicos de elogio da Sabedoria já estava presente a imagem de que essa é o fundamento da ordem do mundo e da criação dos povos, que acha na Lei sua expressão mais alta (cf. Pr 8; Jó 28; Sb 6, 1-25: a Sabedoria é que instrui os reis da terra para governar com justiça; Sb 7, 22-8, 1: “Ela se estende com vigor de um extremo ao outro do mundo e governa o universo com bondade”; Eclo 24, 1-22). O conhecido teólogo católico da Teologia do Diálogo Interreligioso, DUPUIS, traz-nos uma bela afirmação de Santo Agostinho: “Aquela que agora recebe o nome de ‘religião cristã’ já existia antigamente e não esteve ausente nem, mesmo na origem do gênero humano (…) desde os primórdios do gênero humano, todos aqueles que acreditaram n’Ele e, de algum modo, O conheceram e levaram uma vida piedosa e justa, conforme os Seus preceitos, não importa onde e quando tenham vivido, sem dúvida se salvaram por meio d’Ele”. Nessa mesma óptica, os Pais cunharam expressões significativas, como “praeparatio evangélica” (preparação para o Evangelho, Eusébio de Cesareia) e “anima naturaliter christiana” (Tertuliano).
Decerto, a plenitude da Revelação é “qualitativa” em Jesus, enquanto n’Ele temos a mais intensa e radical, por isso insuperável, experiência de intimidade com Deus. Sente-se “filho”, isto é, absolutamente inseparável de Sua fonte, por isso tem a ousadia de chamar-Lhe “Abbã” (papai). Mas, por exigência do mistério da encarnação, também n’Ele a experiência de Deus é necessariamente limitada e incompleta, pois “encarnação” implica em limite (“quantitativamente”, se assim se pode falar). É apenas “um” ser humano masculino, judeu, do século Iº, portanto capaz de perceber a Deus no horizonte de seu psiquismo, marcado por Sua origem e religião, portanto no horizonte de “consciência possível” do contexto de Seu povo e de Sua época. Mesmo mostrando-se um homem para além de Sua própria sociedade e de Seu tempo, não podia fugir inteiramente dos condicionamentos de ter “assumido a natureza humana”, como diz belamente e de maneira tão radical a Epístola aos Filipenses, capítulo 2, 1-11. Os evangelhos nos dizem que “crescia, tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria e a graça de Deus estava com Ele” (Lc 2,40) e, de maneira ainda mais enfática: “crescia em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos seres humanos” (Lc 2, 52). Têm a coragem de dizer que poderemos “fazer obras ainda maiores” do que as d’Ele (cf. Jo 14, 12). O Apóstolo Paulo chega à ousadia de dizer: “Completo o que falta às tribulações de Cristo em minha carne pelo Seu Corpo que é a Igreja” (Cl 12, 24). Além disso, o Novo Testamento tem a coragem de dizer que Jesus é o Princípio (começo e fundamento) do que deve ser continuado por Seus discípulos e discípulas (Mc 1, 1; At 1, 1); ademais, tem consciência de que Jesus não nos deixa o testemunho completo da Revelação, ao advertir-nos de que o Espírito é quem nos guiará a toda a Verdade (cf. Jo 16, 13), fazendo-nos ver para além do que foi possível manifestar-se em Sua existência terrestre e na compreensão de seus seguidores e seguidoras (cf, Jo 21, 25).
O pluralismo religioso não deve ser visto apenas como um fato “tolerável”, mas necessário. Pois a religião é sempre a legitimação suprema de cada pessoa e de cada sociedade e cultura. Até pessoas e Estados, que chegam a proclamar-se ateus, são, na verdade, intensamente religiosos, ao buscarem legitimação em valores simbólicos e apelarem para a devoção e entrega totais. Além disso, a história demonstra sobejamente a “inconveniência teológica” de uma única religião autoproclamada e aceita como “a única verdadeira”, algo semelhante ao que a Bíblia pensa da Torre de Babel: no Judaísmo gerou mentalidade de privilégio e orgulho diante de Deus e dos outros povos (cf. Rm 1-3); no Cristianismo produziu as Cruzadas, a Inquisição, a intolerância, a legitimação do colonialismo, o racismo e o etnocentrismo; no Islamismo tem fortalecido a mentalidade guerreira e exclusivista em alguns segmentos radicais. Não se pode pretender que Deus faça depender Sua relação de paternidade e Sua comunicação com os seres humanos e a “salvação eterna” de fatos conjunturais: geográficos, políticos, culturais, ou de nosso testemunho e maior ou menor empenho missionário. Ficar vinculado a esses seria “voar” no mundo da fantasia e da lenda.
O diálogo interreligioso surge como decorrência do mistério da encarnação e condição para atingir maior plenitude no conhecimento e na experiência de Deus. É imprescindível prestar atenção à palavra das diversas culturas e religiões para acercar-se à totalidade humana da experiência de Deus. É, evidentemente, um dos campos onde se pode experimentar a transcendência, enquanto abertura a outrem e deixar-se interpelar. É urgente rever o tão frequente julgamento que se tem feito da religião dos gentios como idólatra e pervertida. Baste pensar no absurdo como foi encarada na Afroameríndia a religião dos aborígenes e dos povos africanos. É preciso cuidadosamente escutar a diferente experiência religiosa de cada povo, voltar ao conceito genuinamente bíblico de idolatria e estabelecer a necessária distinção entre fé e expressões culturais em cada sociedade e em cada época, assim como discernir entre “ethos” (costume, moral) e horizonte “ético” capaz de fazer os povos avençarem em seus costumes a partir da interpelação da prática do Amor.
Os fundamentos do diálogo são evidentes: a unidade e complementaridade da humanidade tem sua base última na criação através da qual Deus se comunica com todas as pessoas e povos; o Novo Testamento é explícito quanto à vontade salvífica universal de Deus, Criador e Pai (fonte última do ser); o evento Jesus de Nazaré tem ao mesmo tempo uma significação particular e universal; e a perspectiva escatológica, sob a qual podemos “tocar” a ação do Espírito Santo “que enche o orbe da terra” (cf. Sb 1, 7), nos orienta na direção de esperar que a função de Cristo como Cabeça do universo (cf. Ef 1, 10) seja plenamente revelada na consumação do mundo (cf. 1Cor 15, 24-28).
É importantíssimo distinguir o “espirito de diálogo” enquanto atitude de radical respeito ao interlocutor e o diálogo enquanto elemento constitutivo do processo de evangelização. Isto é, não se trata apenas de dialogar como etapa preparatória do “anúncio”, ou seja, o diálogo como “instrumento” do anúncio. Antes, trata-se de fazer uma caminhada em conjunto na busca da Verdade, ao longo da qual ambas as partes se devem transformar pela recíproca aprendizagem.
O Secretariado para os não Crentes, da Igreja Católica Romana, num documento intitulado “Diálogo e Missão”, formulou alguns princípios de particular relevância:
“A Missão é constituída pela simples presença e pelo testemunho vivo da vida cristã (cf. EM, 2), embora se deva reconhecer que “trazemos esse tesouro em vasos de barro” (2Cor 4, 7) e, portanto, a diferença entre como o cristão aparece existencialmente e o que afirma ser é sempre insuperável. Há depois o empenho concreto de serviço em favor dos homens e toda atividade de promoção social e de luta contra a pobreza e as estruturas que a provocam. Há a vida litúrgica, a oração e a contemplação, testemunhos de uma relação viva e libertadora com o Deus vivo e verdadeiro que nos chama para seu Reino e para sua glória (cf.; At 2, 42). Há o diálogo no qual os cristãos se encontram com os seguidores de outras tradições religiosas, para juntos caminharem rumo à verdade e colaborarem em obras de interesse comum. Há o anúncio e a catequese, quando se proclama a boa notícia do Evangelho e são aprofundadas as consequências para a vida e a cultura. O arco da missão engloba tudo isso (nº 13)”.
Não se pode evitar perceber a grande semelhança entre esses pontos e as chamadas “06 Marcas da Missão” na Comunhão Anglicana, em versão não estritamente ao pé da letra: 1. Proclamar a Boa Nova em vista da conversão das pessoas; 2. batizar e nutrir quem se deixa atrair pela fé e a conversão: participação na vida comunitária (koinonía), aprofundamento da Palavra (didaskalía), iniciação aos mistérios da vida cristã (mystagogía) e celebração “sacramental” desses mistérios (leitourgía); 3. dedicar-se a serviços de amor a quem necessite (diakonía da solidariedade); 4. lutar pela transformação das estruturas injustas da sociedade (diakonía da justiça); 5. zelar pela criação e cuidar de preservar e renovar os recursos da terra (diakonía do cuidado); 6. lutar pela paz e garantir sua preservação (diakonía do diálogo em base à compaixão universal).
É evidente que se nos situamos nesse horizonte da “diakonía de agapé” (serviço de amor comunitário) e da “diakonía de martyría” (serviço do testemunho), é preciso passar do denominacionalismo (particularismo) à Igreja (“catholicidade”); do eclesiocentrismo ao Cristo (Cristianismo), fundamento e Cabeça do Corpo; do cristocentrismo a Deus (Reino e Povo de Deus); do teocentrismo à Vida (biocentrismo). É preciso compreender ainda que a atenção radical à Vida (“Vim para que tenham vida e a tenham em plenitude”, Jo 10, 10) exige a superação do “antropocentrismo” como dominação do ser humano sobre o conjunto da criação, passando a compreender-se como “adam”(terrestre) feito de “adamah”(terra), polo no qual a natureza toma consciência de si mesma e se dispõe ao amor e exercita o diálogo, enquanto se projeta para o futuro. Para isso, o pressuposto é assumir a tarefa que a Bíblia define como “de cultivar e guardar” o mundo como jardim de Deus. Antropocentrismo se converte, assim, em logocentrismo (Na Palavra estava a vida, cf. Jo 12, 1-5) e pneumatocentrismo (“Envias Teu Espírito e renovas a face da terra”, cf. Sl 104,30), porque nossa compreensão do universo, se não nos leva ao “panteísmo” (tudo é deus), leva-nos, sem dúvida, ao “panenteísmo” (tudo está em Deus), como nos sugere o Apóstolo: “Nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17, 28).
A função salvífica de Jesus resulta de sua condição de Filho de Deus que se faz ser humano como nós e, assim, por Sua radical solidariedade, abre na humanidade um caminho de perfeita fidelidade e obediência ao Mistério que nos chama: “O que é assumido, é elevado” (Santo Atanásio). Ele é o “sacramento primordial”, “sinal e instrumento da “união com Deus e da unidade humana”(Constituição Lumen Gentium, Vaticano II). A partir de Sua experiência, revela-se possível a salvação para quem passe a andar por esse caminho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Jesus “salva” a religião enquanto a interpela pela profecia e, assim, a conduz a tornar-se expressão e instrumento da fé. O que equivale a proclamar o juízo de Deus sobre nossas “obras”, pois também a religião não passa de obra nossa. Por outro lado, Ele proclama a Boa Nova da reconciliação e do perdão da culpa. Jesus é o foco de irradiação que interpela toda vida humana pelo critério do amor, também a religião e entre essas a cristã, e faz com que toda experiência autenticamente humana de amor seja participação na própria experiência do Filho de Deus, mesmo que alguém não tenha consciência explícita disso, pois o que importa decisivamente é a experiência, não sua formulação temática.
A primeira epístola de São João, justamente, estabelece o amor como critério para definir a pertença a Cristo, “porque Deus é amor”. Daí, a ideia antiga da “Igreja invisível”, “ab Adam”, desde o início da humanidade. Essa imagem da Igreja invisível foi retomada com força pelos reformadores. Na mesma linha está a imagem do “batismo de desejo”, que não equivale ao desejo explícito do batismo, mas à sincera busca de Deus e de obediência a Ele, na perspectiva da Epístola aos Romanos, quando fala da Lei que se dá mediante a consciência dos gentios (cf. 2, 12-16). O núcleo, o miolo da revelação de Cristo é o caminho do amor como único caminho de salvação, a saber, de autêntica felicidade humana, pessoal e coletiva (“xalôm”), conforme se lê em Mt 25, 21-46, e aparece em diversas religiões, para as quais a figura do “pobre” é epifania de Deus e julgamento sobre nosso mundo e modo de viver..
A tarefa missionária da Igreja não consiste em “levar Cristo aos povos não alcançados”, mas revelar, “desvelar” Cristo já presente e agindo no mundo e na história. Em uma das orações eucarísticas da Comunhão Anglicana, dizemos: “(…) abre os nossos olhos para que vejamos a Tua mão agindo no mundo que nos cerca (…) para que trabalhemos na transformação dos reinos deste mundo no Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo”. A fé em missão é tarefa “sacramental” de “sinal e instrumento” da unidade com Deus e da unidade humana”. A Igreja, como “sacramento fundamental”, testemunha no mundo a realidade da presença ativa do Filho de Deus em Jesus e a obra do Espírito Santo, e declara que, por isso, as utopias e sonhos humanos (de “divinização”, diriam os Pais da Patrística Grega) não são mera ilusão, mas realidade na experiência histórica de Jesus de Nazaré, ungido pelo Espírito. A Frederico Maurice agradava o termo “anámnesis” para definir a tarefa da Igreja: “memorial” que traz à tona, faz “ver o invisível” (Hb 11, 27) e, assim, revela a ação de Deus no mundo. No “sacramento” se acha o “símbolo” da realidade, o sinal que nos liga com ela, que a aponta e manifesta. Por isso, a tradição teológica diz que o sacramento significa o que contém, isto é, “retira o véu” e mostra a realidade presente entre nós. Isto significa que o que se contém é bem mais amplo que o sinal. Os antigos teólogos falavam de “res” (realidade) e “sacramentum tantum” (o mero sinal), e entre os dois termos interpunham “res et sacramentum” (a realidade e o sinal), como elemento intermediário no qual está contida a realidade apontada pelo sinal. Quando, por exemplo, na liturgia, celebramos os “sinais”, os gestos e coisas são o “sacramentum tantum”, são só sinais, por isso podem ser até ambíguos; Deus presente é a “res”, a realidade invisível que se nos manifesta; nós somos “sacramentum et res”, ou seja, em nossas pessoas se conjugam o sinal e a realidade, uma vez que em nós, por graça, se comunica realmente Deus.
Assim, enviada (missão) a evangelizar (tarefa), a Igreja não deve ter como método os meios e os caminhos do poder mundano, mas o serviço, a diaconia de Jesus, único caminho (método) do discipulado: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar Sua vida em resgate pela multidão” (Mc 10, 45; cf. 35-44). Os gestos (sinais) que produzimos são indicações do que deve estar contido em nossa prática de comunidade de serviço (realidade). Jesus mesmo sugeriu que o testemunho do Povo de Deus na sociedade tem de ser semelhante à função da luz, do sal (cf. Mt 5, 13-16) e do fermento (cf. Mt 13, 33) e da pequenina semente de mostarda (cf. Mc 4, 25-32). Uma das manifestações mais importantes do serviço é o diálogo universal. Lembrou-nos Paulo VI: “A forma atual de nossa pregação tem de ser o diálogo” (Encíclica “Ecclesiam Suam”).
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
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