[email protected]
domsebastiaoarmandogameleira.com
“Toda vez em que vivi a verdade foi através de uma impressão de sonho inelutável: o sonho inelutável é a minha verdade”
“O inexpressivo é diabólico. Se a pessoa não estiver comprometida com a esperança, vive o demoníaco”
“Perder-se é um achar-se perigoso”
“A verdade tem de estar exatamente no que não poderei jamais compreender”
(Frases de Clarice Lispector, do romance A Paixão segundo G.H, que compõem o volume antológico AS PALAVRAS DE CLARICE LISPECTOR, curadoria de Roberto CORRÊA DOS SANTOS, ed. Rocco, São Bernardo-SP, pgs. 137-38, 2013)
ESPIRITUALIDADE É DEIXAR-SE CONDUZIR POR ALGUM ESPÍRITO
OS PRIMEIROS PASSOS
Falar sobre espiritualidade tem tudo a ver com a própria experiência e trajetória pessoal. Quando volto o olhar para trás, para minhas raízes, percebo o quanto foi importante ter nascido numa família cristã. Era uma família católica romana, de classe média do interior. A direção era do pai, comerciante e político, enquanto a devoção era levada adiante pela mãe. Todos os filhos e filhas tinham nome de santo/a: Maria, as duas filhas, José, Sebastião e Fernando Antônio, os filhos. Religião prevalentemente doméstica, com recitação do terço a cada noite. Os festejos eram particularmente em honra de Santo Antônio e de São Sebastião. Mamãe se identificava de maneira especial com Nossa Senhora das Dores e do Perpétuo Socorro, talvez pelos sofrimentos pelos quais sua vida era marcada. .Nossa Senhora do Bom Parto é minha madrinha de batismo, portanto sua comadre. Estudávamos em escola particular de uma parenta e amiga nossa, marcadamente devota de Nossa Senhora de Fátima, para quem rezávamos o terço cada dia antes do recreio coletivo. Era motivo de orgulho lembrar que a imagem tinha vindo diretamente de Fátima, Portugal, mediante obséquio de Dom Adelmo Machado, irmão da dona e diretora da escola. Bispo de Pesqueira naquele tempo e depois Arcebispo de Maceió. E de Maio a Outubro seguíamos em procissão noturna luminosa a cada dia 13, entre a sede da escola e a igreja matriz… e nós, crianças, a brincar com a reza: “Ave, ave, a velha Maria…” e com um desejo enorme de queimar com a chama da vela os cabelos da menina a nossa frente… Da religião oficial da Paróquia, só a missa do domingo, celebrada de manhã e em jejum, crianças e mulheres nos bancos, os homens lá atrás de pé e, na hora do sermão, aproveitando ou para dar umas baforadas ou conversar. Naturalmente, eram obrigatórias as grandes festas: Natal, Semana Santa-Páscoa, Nossa Senhora do Ó, a padroeira da cidade, e a procissão do Mártir São Sebastião… e as missas de defunto rodeadas de toques chorosos de sinos na torre da igreja que para nós guardava obscuros mistérios. Chegava o dia da Primeira Comunhão, naturalmente precedida por confissão aos ouvidos do padre. Confessar o quê? Algum nome feio, uma briga de colega, desobediência à mãe ou à professora (ao pai era bem mais difícil desobedecer)… imaginem se tínhamos algum “pecado” aos sete anos de idade, logo nós tão fiéis a todos os costumes piedosos do interior! Era “o acontecimento” e era raro que um de nós, em jejum, não caísse de fome com a vela enfeitada na mão direita e o baque no genuflexório, algo memorável e a criatura logo era puxada de volta quase da cor da vela branca enfeitada de fita, e a missa retomava o seu curso, a família de olho em seu desfigurado pimpolho. Nunca fui coroinha e nem do séquito do padre, só a missa e alguma novena de especial devoção da família.
UM NOVO MOMENTO
Um belo dia, lá pelos oito anos de idade, com um ano de comunhão, anunciei em casa que “queria ser padre”. Não sei como me veio a ideia, talvez inspiração longínqua de figuras como o padrinho e parente bispo, Dom Adelmo, e um primo padre, figuras porém que via raramente. Entre as brincadeiras de carrinhos, de construção de estradas no “município” (papai foi prefeito e deputado estadual por duas vezes), de bola e de trepar nas árvores, de rouba bandeira e de queimado, começou a entrar “a brincadeira de missa”, com hóstia de miolo de pão e água. Tinha até uma ou outra “fiel” para “assistir” e comer a hóstia, mais por bagunça que por devoção… Mamãe me perguntava como eu, tão pequeno, queria ir para o seminário, ficar longe da família, mas não foram capazes de impedir, quem sabe, naquele tempo, ter um filho padre ainda era uma honra e não se imaginava ir de encontro aos desígnios divinos, suponho. Assim, aos nove para dez anos saí de casa e fui para o internato na Capital. Ao ver nossas crianças com dez anos, comentávamos, minha mulher e eu, como era possível permitir que uma criança ainda tão pequena se apartasse de casa para viver em internato, entre desconhecidos, naquele tempo em regime quase despótico, de autoritária opressão e de repressão afetiva e sexual; com educação guiada por padres que nem sempre tinham equacionado corretamente seus conflitos pessoais, sobretudo afetivos, e tinham o autoritarismo como padrão pedagógico. Dessa fase, do chamado “seminário menor” a única lembrança boa eram os passeios, o recreio e o estudo das chamadas Humanidades, com maratonas, disputas, júris simulados e estímulo à leitura (Português, Literatura, Latim, Grego, Francês, História, Geografia, Civilidade, Religião – fiquei conhecendo, p.ex., o Apóstolo São Paulo…), porque o ensino de Ciências era um fracasso (Matemática, Física, Química, Biologia…), Inglês não se aprendia, embora houvesse a cadeira, porque gostar de Inglês podia ser sinal de querer se preparar para concurso de banco e deixar o seminário,,,). De qualquer modo, o que havia de estudos decentes ficou-me até hoje, e sou muito grato. Uma lacuna curiosa: estudávamos Literatura, mas desaconselhava-se a leitura de romances porque seus autores falavam de sexo e beiravam a pornografia…
O QUERIDO SEMINÁRIO DE OLINDA
O leitor ou leitora certamente já percebeu que nossa formação cristã na infância, embora tenha deixado marcas indeléveis e sementes preciosas, era, na verdade, muito limitada por ser estritamente e quase exclusivamente “religiosa”, na verdade, não iniciava nem cultivava a fé. O que é ainda mais espantoso é que ainda hoje a formação nas Igrejas continue basicamente com o mesmo “vício”. Éramos “treinados/as” para absorver os “costumes” cristãos e, no seminário, já de pequenos, os costumes clericais, mas terminávamos sem saber realmente o que era a maravilha da fé cristã. Este passo se deu, graças a Deus, quando, aos dezessete anos, fui estudar Filosofia no Seminário de Olinda, naquele tempo seminário regional a serviço das dioceses dos estados do Nordeste. A Filosofia, já por si mesma, nos fazia refletir e aprofundar pessoalmente as razões de viver. Foi uma grande descoberta, tomar contacto com a clássica discussão a respeito da Verdade, desde os antigos tempos do povo grego e aprender como o que se pensa está estritamente vinculado ao que se pratica na vida, ou seja, o íntimo vínculo entre prática e teoria, ação e reflexão. Era entusiasmante perceber como a verdade do pensamento tem tudo a ver com a verdade da vida e que, por isso, a verdade, por mais abstrata que possa parecer, sempre é “histórica”. E que há interesses muito concretos ligados a verdades que, à primeira vista, se mostram abstratas e “válidas para sempre”. A História da Filosofia e as grandes questões da Introdução à Filosofia eram uma verdadeira “escola de vida”, sem falar da Ética, da Estética, da Cosmologia, da Metafísica e da Lógica, e da iniciação à Sociologia e `Psicologia…
O Seminário de Olinda era um dos baluartes da renovação em matéria de formação sacerdotal. Os diretores e alguns dos professores eram padres formados na Ação Católica, um dos movimentos até hoje mais importantes na Igreja Católica, por sua perspectiva metodológica e pastoral, e por sua consciência de diálogo com a sociedade em vista da transformação social da qual o povo devia ser o agente primário. Tínhamos conosco a nata do clero de Olinda e Recife. Imaginemos que foi na Ação Católica que Dom Helder progressivamente se “converteu”, passando de “trabalhar para os pobres a trabalhar com os pobres”; o famoso Betinho, o místico da Ação da Cidadania”, foi fruto da Ação Católica; como também o estimado Frei Betto e tantas outras pessoas, homens e mulheres que ainda hoje carregam no olhar, com admirável coerência, a lucidez da fé, a força indomável do amor pelo povo e a esperança de uma sociedade mais justa e fraterna. Imaginem que tínhamos Ariano Suassuna como nosso professor “voluntário” de Literatura e de Estética, aulas inesquecíveis… No Seminário, praticava-se a pedagogia da liberdade. Não eram costumes o que se incutia, mas visava-se ao processo interior de formação da própria liberdade, tendo sempre em vista que a formação da personalidade humana se dá em comunidade, mediante o planejamento comum, o diálogo e a crítica e a revisão da vida e da ação.. E a relação entre estudantes e dirigentes era de confiança recíproca. Nosso padre reitor era Marcelo Carvalheira que se tornaria Arcebispo da Paraíba e vice-presidente da CNBB. Um novo horizonte se descortinava e foi um momento de maravilhosas descobertas, um dos mais felizes de minha vida.
A AÇÃO CATÓLICA, UMA DAS MAIS EXITOSAS EXPERIÊNCIAS DA IGREJA CATÓLICA ROMANA
A Ação Católica nascera com o chamado do Papa Pio XI a que o povo leigo “participasse do apostolado da hierarquia”. O ponto de partida era este mesmo: só o clero era realmente “ativo” na Igreja e em suas mãos se concentrava todo o “poder sagrado” (hierarquia). O povo era totalmente passivo, sua atividade consistia em cuidar de sua “alma” e de sua salvação “individual”. Ou, como tinham dito outros papas, o povo só tinha o direito de obedecer e se deixar guiar por seus pastores. Pio XI chamava o povo da Igreja a ser ativo, como braço alongado da missão do clero no mundo. Pio XII, em seguida, deu um passo adiante, ao reconhecer maior autonomia à atuação do “laicato” e o Concílio Vaticano II corrigiu a perspectiva. Foram sobretudo a Itália, a França e a Bélgica o berço desse novo povo. Neste último país, com a intuição espiritual do Padre Cardijn, que trabalhava na formação de jovens operários/as, surgiu a chamada “Ação Católica Especializada”: cada ambiente social devia ser evangelizado por seus próprios irmãos e irmãs em condição social, começando pelos operários e operárias. A partir daí, aconteceu na Igreja Católica uma das mais importantes experiências metodológicas e missionárias que se conhecem. Pequenos grupos, reunidos periodicamente em torno do Evangelho, compartilhavam suas vidas com toda confiança fraterna e planejavam a ação no ambiente de vida e de trabalho. Dividia-se em dois grandes ramos, o de Juventude e o de gente adulta; havia o setor masculino e o feminino em cada ramo e os ambientes eram os de trabalhadores/as rurais, de operários/as, meio independente, juventude secundarista e juventude universitária. Organizava-se numa estrutura de articulação, desde o nível de base até o nível internacional, passando pelo regional e o nacional. . Era, de fato, um trabalho de formiguinha para levar o Evangelho a seus irmãos e irmãs, uma mensagem que fosse realmente fermento na massa na escola, no trabalho e no ambiente social. Tratava-se de cuidadosamente propor a conversão aos valores de Jesus, não só para transformar a vida pessoal, mas para também abrir olhos e ouvidos aos clamores dos povos da terra. Foi um dos movimentos eclesiais que está na preparação da Igreja para o Concílio Vaticano II. Clamava por uma Igreja participativa, carregada realmente pelo “Povo de Deus”. Não uma Igreja fechada em si mesma e em seu clero, mas feita transparente “sacramento” de Deus no mundo, “sinal e instrumento da união com Deus e da unidade da humanidade”, como diz o documento “Lumen Gentium” sobre a Igreja. Uma Igreja assim se abriria ao diálogo com a sociedade e assumiria “as alegrias e os clamores da humanidade”, como se diz na “Gaudium et Spes”.
A Ação Católica conseguia, com seu método, de tal forma arraigar-se nas pessoas que, particularmente junto à juventude, era capaz de possibilitar um lúcido e profundo discernimento vocacional, levando a escolher profissões, para além de critérios de ganho material e prestígio de status social, coisa que hoje dificilmente se vê em Igrejas cristãs. Muita gente se decidia\ por profissões “de maior serviço” ao povo, o que levou muitas vezes a se apartar dos valores de sua classe social de origem e assumir a luta política no campo da promoção da igualdade, da democracia e da libertação. O método e o espírito de comunidade e disciplina coletiva que o inspiravam eram capazes de convencer as pessoas de que estavam sendo “chamadas” (vocação) a assumir a sublime
tarefa de Cristo no mundo (ministério, “apostolado”). Suas vidas eram vividas com a intensidade de quem tocava o mistério da graça e essa experiência deitava raízes profundas para a vida toda. Naquela época, a Igreja Católica podia, de fato, contar com um grupo relativamente numeroso e significativo de um laicato realmente consciente de sua opção de fé, de sua pertença e de sua missão enquanto discípulos e discípulas de Cristo, e por isso autônomo para assumir responsavelmente sua reflexão e ação, tornando a Igreja, depois de séculos de passividade, uma verdadeira “communio fidelium” (comunhão de fiéis). Sem dúvida, não se tratava de empresa fácil, depois de séculos de autoritarismo clerical e exclusão do povo de participar ativamente da Igreja. Não é de estranhar, então, que entre os anos sessenta e setenta a Ação Católica tenha sido abandonada pelo episcopado e entregue a sua própria sorte, chegando a ser perseguida no interior da Igreja e por regimes políticos autoritários conservadores e ditatoriais. Lamentavelmente, a Igreja Católica abandonava uma de suas experiências mais exitosas e com comprovadas condições de dialogar, como “sal, luz e fermento” (cf. Mt 5, 13-16), com o mundo moderno.
Mas a potência da própria realidade teve a força e o vigor de veicular adiante sua própria seiva. É preciso reconhecer que a Ação Católica foi tão importante que, hoje, mais ou menos invisível, permanece teimosamente viva na formação da CNBB, não esquecer que Dom Helder Camara, secretário geral da Ação Católica foi o fundador e, ao mesmo tempo, por anos, o Secretário Geral da Conferência Nacional dos Bispos, com sabedoria conseguindo atrair tanta gente de valor, inclusive da própria Ação Católica, para a assessoria da CNBB. Um número significativo de Bispos vieram da Ação Católica. O próprio Dom Helder, Dom José Távora, que se tornaria arcebispo de Aracaju; Dom Antônio Fragoso, o corajoso Bispo de Crateús, Ceará; Dom José Lamartine, bispo auxiliar de Dom Helder no Recife; Dom Cândido Padim, Dom Marcelo Carvalheira… e tantos outros. Giovanni Battista Montini, o futuro Papa Paulo VI, foi assistente da Ação Católica Universitária, na Itália. A Ação Católica esteve em estreita ligação com o surgimento do Movimento de Educação de Base, o MEB e com o trabalho de alfabetização inspirado pelo grande educador Paulo Freire. As Comunidades Eclesiais de Base são as herdeiras populares do método de “revisão de vida” da Ação Católica: frente ao Evangelho fazer as perguntas sobre a própria conversão pessoal e sobre nossa convivência em sociedade, para aí ser fermento na massa. Pode-se compreender o método da Leitura Popular da Bíblia fora dos trilhos postos na terra pela querida Ação Católica? Grandes personalidades da cena eclesial, intelectual e política eram militantes de Ação Católica. Lembremos Alceu Amoroso Lima, considerado o maior intelectual leigo da Igreja Católica do Brasil; Betinho, Patrus Ananias, o sociólogo-teólogo Luiz Alberto Gomes de Souza, o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira, Anita Paes Barreto, secretária de Educação do primeiro governo Arraes, em Pernambuco, Leda Alves, atriz, ainda hoje Secretária de Cultura no Recife, apaixonada pela arte popular como expressão estética da resistência do povo à opressão de tantos séculos…oh. e tantos outros e outras. O “Grupo Igreja Nova” por exemplo, que, na Arquidiocese de Olinda e Recife, criativa e tenazmente, se opôs com coragem aos desmandos do substituto de Dom Helder, acobertado pela política Vaticana de desmonte do Concílio Vaticano II, sem dúvida nenhuma, estava na esteira da herança da Ação Católica de Pernambuco no meio chamado de “independente”.
A FÉ CRISTÃ É ORAÇÃO, COMUNIDADE E POLÍTICA
Sempre tenho dito que foi no Seminário de Olinda, aos dezessete anos, que descobri o que é o Cristianismo. Em seguida, nos estudos de Teologia em Roma, a obra se confirmou. Fiquei sabendo de que, para além de costumes, práticas e observâncias, a vida cristã é como uma plataforma, uma maneira de viver que se estabelece sobre três colunas mestras ou fundamentais: oração, comunidade e política. Acolhi essa estupenda revelação e fiz minha opção de fé.
ORAÇÃO: não simplesmente no sentido de louvar e adorar Deus, pedir perdão de nossas faltas e pedir com confiança por nossas necessidades. Mas, antes de tudo, como atitude mística, contemplativa de estar em Deus e de permanentemente confrontar os passos de nossa caminhada com os caminhos de Jesus e de seus profetas e profetisas. A cada momento, perguntar-se por onde vai nossa condição de “imagem e semelhança” do Criador e Pai, que se manifestou esplendidamente na face resplandecente de Jesus (cf. 2Cor 3). É a oração de Jesus, quando, na montanha, em Suas vigílias da madrugada, buscava acertar o passo com os passos de Deus e, assim, se preparava para as batalhas da planície. Dom Helder Camara, em suas vigílias noturnas, revela muito bem como se dá essa oração, como, graças a Deus, se pode ver em sua correspondência já publicada em vários volumes.
COMUNIDADE: assimilar a vida em comum, mediante o diálogo, a tolerância, a capacidade de perdoar, a ajuda mútua, a promoção do bem comum. Não sentir-se isolado/a, mas membro de um corpo largamente plural, em talentos, dons, capacidades e também defeitos e falhas (cf. 1Cor 12-14). Ser capaz de projetos em comum e contribuir de acordo com as próprias possibilidades. E a orientação mestra de Jesus é muito clara nos evangelhos: achar a plena vida na entrega da própria vida (cf. Mc 8; 34-38); tornar-se o menor, como a criança, fazendo-se último e servo de todos/as (cf. Mc 9. 33-40); não ter só para si, mas partilhar os dons e os bens concedidos por Deus como Senhor da Criação (cf. Mc 10, 17-31). Finalmente, compreender a vida não como ambição pelos primeiros lugares, mas como serviço e entrega de si (cf. Mc 10, 35-45). Afinal, perceber profundamente que Deus não se revela como uma entidade à parte de nós, exterior, mas como a transcendência do Amor em nós, como dizia o grande Santo Agostinho: “Mais alto do que tudo o que há de alto em mim, mais íntimo que meu próprio íntimo” (cf. 1Jo 3-4).
POLÍTICA: se a comunidade, não o individualismo, é nosso supremo ideal de vida, então nasce necessariamente o sonho de fazer transbordar a experiência de comunidade até às extremidades da terra. Abraçamos a luta para que todas as pessoas sejam incluídas na posse do mundo e participem dos bens da Criação. Percebemos com lucidez que o poder é a dimensão constitutiva da pessoa e saímos a trabalhar para que todas as pessoas amadureçam e cheguem a partilhar, sem medo, o poder. Só somos livres se superamos o estágio infantil de “ser para si”, sentindo que só somos realmente em nós, na posse de nós, se amadurecemos para arriscar jogar-nos “para além de nós”. é quando o poder se faz amor. A Bíblia nos chama a entregar-nos às batalhas de Deus que visam a aproximar a sociedade humana dos ideais do Reino de Deus e do Xalôm (bem-viver, felicidade e paz), como vemos tão claramente nos Salmos, nas palavras das Profecias, nos Evangelhos e nos escritos do apóstolo São Paulo. É o ideal que alegremente anunciamos, enquanto temos a coragem de, ao mesmo tempo, denunciar quem opõe obstáculos à marcha dos pobres da terra. Com isso levamos adiante a herança profética de Jesus ao proclamar as Bem-Aventuranças: “Adiante (“bem-aventurados” em hebraico tem essa nuance de estimular a prosseguir firmes na caminhada) vós, os pobres, (movidos) pelo Espírito (de Deus, que é o sentido do termo “espírito”, de acordo com Mateus, pois não se trata de “pobres de coração”), e assim todas as oito bem-aventuranças (cf. Mt 5, 1-10). Na verdade, são todas atitudes de pobres movidos pelo Espírito ou de quem opta por ser solidário com eles e, por ter “fome e sede de justiça”, arrisca ser “perseguido/a por causa da justiça” É nesse espírito que o Papa Francisco convida a Igreja a celebrar o “Dia Mundial dos Pobres” e afirma enfaticamente que “a Igreja tem opção fundamental pelos pobres”, a saber, a opção pelos pobres está nos fundamentos constitutivos da Igreja. E, com força, declarou aos movimentos sociais do mundo inteiro: “Nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem trabalho, nenhuma família sem teto”. E animou a classe trabalhadora a tornar-se realmente o agente político dessa transformação, não aceitando mais a opressão sobre si e organizando-se para resistir.
COMO A IGREJA CRISTÃ TEM COMPREENDIDO A SI MESMA
De fato, a compreensão que a Igreja tem tido de si mesma é acentuadamente ideológica (justificadora e legitimadora) daquilo que é e do que faz), como se Jesus tivesse fundado uma organização religiosa e essa fosse exatamente aquela que conhecemos. E idealista (como se não fosse um movimento e uma instituição inserida na realidade social deste mundo e, por consequência, em interação com os sistemas sociais. Além disso, o pano de fundo dessa compreensão de si, mesmo para o Protestantismo, ainda é, acentuadamente, a Cristandade medieval. As raízes dessa atitude, porém, estão em tempos bem mais remotos. E isso ainda é um pesadíssimo obstáculo para a Igreja levar à prática aquela compreensão que se descortinou no Concílio Vaticano II e em acontecimentos como a Conferência de Medellín, na Afroameríndia, cujos cinquenta anos estamos a lembrar. E prosseguir adiante neste mundo de hoje que corre veloz. O ilustre e já falecido Cardeal Carlo Martini, de Milão, cotado para ser papa, chegou a dizer que a Igreja estava em atraso de pelo menos duzentos anos. No Protestantismo se vê até hoje a grande dificuldade de fazer aceitar a Teologia da Missão Integral e as perspectivas abertas pelo “Pacto de Lausanne”.
PADRÕES ANTIGOS VOLTAM A INFLUENCIAR AS COMUNIDADES
Uma coisa é certa: Jesus está sempre adiante da Igreja e Sua presença é sempre perturbadora. Ele havia desencadeado um movimento profético de anúncio do Reinado de Deus. Em sua atividade pessoal, como líder do grupo de discípulos e discípulas, começou a dar sinais concretos de uma espiritualidade que acolhe a chegada do Reino. Os evangelhos são o registro claro disto: o marco de referência é a tradição profética, particularmente a profecia de Isaías; no ponto mais remoto se acha a figura e a obra de Moisés, o grande libertador do povo da servidão; a mesa comum, que acolhe as categorias mais diversas de pessoas, é o grande símbolo da fraternidade que caracteriza o Reino; para que se estabeleça a comunhão de sãos e enfermos, de pecadores e piedosos, de pobres e gente privilegiada, de senhores/as e servos/as, de dirigentes e do povo comum, de judeus e estrangeiros, de homens e mulheres em igualdade; para que se estabeleça aquela igualdade que caracterizava o período das doze tribos, sempre visto em Israel como o “tempo ideal”, era preciso “mudar radicalmente de vida e pôr os pés com firmeza sobre os valores da Boa Nova (cf. Mc 1, 14-15), E, segundo os evangelhos, esses valores eram, antes de tudo, o serviço recíproco e a posse partilhada dos bens. Se há um único Pai, todos os seres humanos são chamados a aceitar ser irmãos e irmãs entre si. Portanto, relações de igualdade e de fraternidade, garantia da liberdade.
Ora, a Igreja surgiu com os Apóstolos e discípulos para guardar a herança de Jesus e levar adiante sua mensagem de transformação das pessoas, mediante novas opções, e da sociedade através de novas relações. Jesus permanecia como o único fundamento e o Mestre da caminhada. Seu desaparecimento levou a buscar formas diversas de organização e de convivência nos variados pontos onde as comunidades surgiam. Houve enfrentamentos com o sistema do Judaísmo, dada a abertura de Jesus para outros povos e a relativização de costumes que para a Lei eram sagrados. Para Jesus, porém, o que separava era a obediência profunda ao mandamento do amor sem fronteiras, e não a nacionalidade e seus tabus culturais. Na medida em que as comunidades foram se espalhando pelo Império Romano e cresceu a estranheza entre costumes romanos e jeito cristão de viver, vão se dando as perseguições, primeiro localizadas, depois gerais. Ser de Cristo era considerado sacrilégio e negação dos deuses (ateísmo). Muitas pessoas resistiram corajosamente e foram martirizadas, como vemos no Apocalipse; outras, porém, hesitavam e temiam, buscando então ser “aceitáveis” e achar uma maneira de conviver com seu passado judeu ou seu passado gentio, como se percebe nas admoestações de Apocalipse. Já desde as segunda/terceira gerações de cristãos, vê-se um retrocesso em relação à radicalidade de Jesus e de Paulo. Basta olhar a maneira como se fala da condição e do comportamento das mulheres e dos servos, p. ex. Jesus havia proclamado a plena igualdade, como se vê nos evangelhos, e o mesmo se vê nas palavras do Apóstolo Paulo (cf. Gl 3, 28s; Rm 16, 6-16; 1Cor 11, 11-12). Mais adiante, porém, começamos a ver recomendações que parecem acomodar as coisas pela volta aos padrões patriarcais anteriores (cf, Cl 3, 18-4, 1; Ef 5. 21-6, 9; 1Tm 5, 1-6, 2; 6, 17-19; Ti 3, 1-7). Já estramos aí num período de acomodação e de organização, com menos espírito de profecia e criatividade. Os modelos antigos começam a se infiltrar na forma de ser das comunidades.
No século II, as comunidades vão sendo perturbadas por diferentes maneiras de interpretar a herança de Jesus. Começam as acusações de heresia, fortalece-se a autoridade central do “epíscopo” (que vem a ser em seguida o “bispo”), aumenta a sensação de que é preciso determinar melhor as “doutrinas” da Escritura, discute-se sobre o Canon da Bíblia… as comunidades vão progressivamente retomando em sua prática rituais judaicos e também da religião gentia. Na medida em que a Igreja intensifica seu diálogo com a sociedade, sobretudo a sociedade do Império, vai-se tornando a “religião da sociedade” e vai absorvendo esquemas mentais presentes no mundo greco-romano: o Neo-Platonismo, marcadamente espiritualista e distante da materialidade da vida e do mundo, considerada como elemento “inferior” e desprezível; o Gnosticismo, orgulhoso de sua superioridade espiritual, se imaginava um grupo de eleitos privilegiados por se salvarem mediante o conhecimento íntimo da divindade e de seus propósitos; o Estoicismo aparecia como uma moral elevada, própria de quem se aproximava das elites. Entre os séculos III e IV, completou-se a acomodação da Igreja ao Estado, o Cristianismo, com os imperadores Constantino e Teodósio, se tornou a religião do Império e como braço de poder do Estado vai impor-se, passando de perseguido a perseguidor… E foram fortes, então, os embates para perseguir “hereges”, restando a dúvida se os chamados e combatidos “hereges” eram realmente traidores da fé, ou apenas pessoas ou correntes que acentuavam outros aspectos da doutrina. Ainda me lembro de um de meus professores de Teologia que nos dizia que ainda hoje se discute se Nestório era realmente “nestoriano”…
Com a queda do Império Romano debaixo das invasões de povos que desciam do Norte da Europa, os apelidados de “bárbaros”, a Igreja restou como a grande instância de liderança social, moral e política. Sobre ela se funda o edifício do Medievo, a saber, a Cristandade que perdurou por dez séculos e foi a época de poder absoluto do papado, em aliança com os senhores feudais, os príncipes e os imperadores. É nesses dez séculos que estão os fundamentos do Catolicismo Romano como o conhecemos e de seu sistema autoritário e até cruel. Não podemos esquecer as Cruzadas, inicialmente contra os muçulmanos para abrir à Europa o comércio com o Oriente, e depois contra os chamados “hereges” na própria Europa. Não podemos esquecer a Inquisição, com torturas e fogueiras, contra tanta gente acusada de heresia e, quem sabe, na verdade eram apenas críticos do sistema estabelecido e lideranças do movimento popular dos pobres. Muitas mulheres foram queimadas na fogueira sob a acusação de bruxaria, quando na verdade eram apenas lideranças do movimento popular e competentes curandeiras pela capacidade de manipular ervas medicinais. Estrutura-se a Cúria Romana como poder central em torno do papa, com seu sistema de espionagem internacional, processos secretos e arbitrários. No século XI, o papa Gregório VII empreende ampla reforma para, sobretudo, limitar a interferência dos príncipes e senhores feudais nos negócios eclesiásticos e que chegavam à simonia (compra de cargos e ministérios sagrados) e às investiduras (indicação para cargos eclesiásticos), Ora, os senhores seculares, que eram de fato o laicato representativo e com poder na Cristandade, com a reforma que buscava estabelecer a “libertas Ecclesiae” (liberdade da Igreja) ficavam limitados em seus poderes, os eclesiásticos, porém, continuavam a gerir negócios seculares, pois continuavam com seus direitos de príncipes e senhores, e o papa agia como poder polítioa até acima dos imperadores.
A REFORMA PROTESTANTE
A partir do século XI se fortalece ainda mais o movimento popular dos pobres, incluindo pessoas e grupos explorados, grandes figuras espirituais, como Francisco de Assis, Pedro Valdo, Joaquim di Fiore e Celestino V, o qual, eleito papa com grande aprovação popular só aguentou o cargo por alguns meses e foi preso por seu próprio sucessor, Bonifácio VIII, e assassinado na prisão. Naquele movimento popular devem ser incluídas as bruxas, algumas figuras espirituais de monjas e místicas. A burguesia começou a se formar passando a adquirir cada vez mais autonomia em relação dos feudos e, a partir das feiras e do comércio, faz com que comecem a reaparecer as cidades, os “burgos”.
É a partir desse amplo contexto que se compreende a revolta da Reforma Protestante. Não foi apenas um fato religioso, mas significou a confluência de fatores econômicos, sociais, políticos e culturais. A Reforma foi, na verdade, a face religiosa de uma mudança global de época, pois o que se gestava era um novo sujeito histórico, a burguesia, com sua forte consciência de “indivíduo” e a experiência de mobilidade social num mundo rigidamente estratificado e corporativo, como lembrei em meu artigo anterior sobre “31 de OUTUBRO, DIA DA REFORMA”. Na verdade, a Reforma manifestava a necessidade de passar a uma nova idade da civilização. A Cristandade medieval era a identificação da Igreja com a sociedade rural feudal por dez séculos; era a confusão entre Igreja e poder mundano; era a exclusão do laicato, particularmente acentuada desde o século XI; era a marginalização dos pobres, relegados a viver nas margens da Igreja; era a exclusão das mulheres. Mas o diálogo foi impossível. Acostumada desde o século IV a identificar-se com o poder de Estado e seus mecanismos autoritários, as autoridades maiores da Igreja não tiveram as condições de escutar o clamor que vinha, de uma parte, do movimento dos pobres, e, doutra parte, da burguesia nascente que começava a formar as nações (Alemanha, Inglaterra, Suiça).e destroçar o Sacro Império Romano Germânico.. Por isso, a reação católica foi de contrarreforma e de fechamento em si mesma, sem esquecer, porém, que teve aspectos positivos de purificação. De qualquer forma, o Concílio de Trento cristalizou no Ocidente a quebra em dois blocos, Catolicismo e Protestantismo, e acentuou o reflexo de “autodefesa” e de polêmica antiprotestante.
Alguns papas da era moderna podem facilmente exemplificar essa mentalidade que, infelizmente, ainda não foi superada de todo, mesmo em pontos cruciais e centrais. Ainda no século XIV, Bonifácio VIII, na Bula Unam Sanctam ainda pretendia falar quase como um deus: qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, só tem assegurada a sua salvação se tiver alguma relação com o Pontífice Romano. Gregório XVI chegou a proibir a estrada de ferro e a energia elétrica nos Estados Pontifícios, sob o temor de que fossem dois veículos para introduzir nos “territórios da Igreja” as ideias modernas. Pio IX, ao perder vergonhosamente, os Estados Pontifícios, declarou-se prisioneiro voluntário no Vaticano e buscou com unhas e dentes reforçar sua autoridade espiritual universal. O Concílio Vaticano I foi pressionado a proclamar o dogma da infalibilidade pessoal do papa, algo bem diferente da verdade tradicional da “indefectibilidade” da Igreja como corpo global de fiéis. Aos cardeais que lideravam a corrente que desaprovava ou, ao menos, julgava inoportuna tal proclamação, ao trazerem como argumento que a Tradição não permitia ver a questão com clareza, o Papa os advertiu: “A Tradição sou eu, a Igreja sou eu”, tal o sentimento de poder absoluto. Em sua luta contra a Modernidade, reuniu no “Syllabus” um conjunto de “erros modernos” e elencou no “Index” os livros proibidos à leitura da parte dos membros da Igreja Católica. Pio X chegou a publicar uma carta encíclica em que condenava os erros do “Modernismo” e chegou a se escandalizar com a ideia de que todos os seres humanos são iguais, pois Deus havia criado a diferença, uns acima e outros embaixo, para a harmonia do conjunto. Mesmo Leão XIII, o Papa da “Rerum Novarum”, o documento que abria a Igreja às questões sociais, ainda considerava que a situação dos pobres é ocasião de facilitar aos ricos a salvação mediante esmolas e “obras de caridade”. A ideologia do poder estava tão fortemente arraigada que homens de boa vontade, inteligentes e até santos pudessem permanecer nessa cegueira. O problema é constatar que ainda permanecemos sob o peso dessa longa história, que funciona como ideologia e só fortalece o fechamento da Igreja em si mesma, coisa que nem mesmo o Concílio Vaticano II conseguiu mudar, pois logo em seguida, por mais de trinta anos, tivemos um claro processo de desmonte do Concílio, justamente por esse estrato “rochoso” de uma tradição que se recusa a finalmente trilhar novos caminhos. Assim, podemos compreender por que o Papa Francisco muitas vezes se assemelha a uma “voz que clama no deserto”.
A POUCA AUTORIDADE DA BÍBLIA
Ninguém pode negar que a Bíblia é pouco conhecida pelo povo cristão em geral e muitas vezes mal conhecida e mal interpretada. Além disso, sua autoridade tem pouco peso para transformar obedientemente a Igreja em efetiva “ouvinte da Palavra”. Do ponto de vista da exegese moderna, o núcleo central de todo o Primeiro Testamento é a memória e celebração da Libertação da servidão no Egito, à qual segue o a organização do povo de Deus em tribos, com o projeto de manter-se povo livre e igualitário. Esse núcleo será sempre lembrado no futuro pelo profetismo, pelos salmos e pelas meditações ao longo do tempo. Sobretudo durante o exílio em Babilônia houve uma longa e profunda meditação desse passado, de tal forma que boa parte da literatura bíblica que conhecemos tem sua origem na situação de exílio e no período da reconstrução e de resistência no país. Importância particular têm os escritos do profeta Isaías e da corrente que levou adiante sua mensagem. O chamado Novo Testamento tem suas raízes na tradição antiga. A mensagem de Jesus e de seus discípulos e discípulas assume igualmente a centralidade do Êxodo, do Tribalismo e da Profecia. Para o profetismo e para Jesus a fé exige o compromisso de denunciar a opressão dos poderosos opressores do povo e anunciar que, mediante nossa ação, é possível criar um mundo novo de fraternidade, de liberdade e de paz, essa é a grande utopia, a grande marca do futuro. Para isso, é preciso superar a imagem superficial do Deus da “religião” espontânea e idolátrica. Não é por acaso que a Bíblia proíbe terminantemente fazer imagens de Deus. Ele não se revela como “alguém” ou “algo” exterior a nós e a nosso mundo. Ele se revela no mistério de nossa liberdade, como a dimensão transcendente que está entre nós e em nós. O ser humano, homem e mulher, pessoal e coletivamente, já é a imagem feita pelo próprio Deus (cf. Gn 1; Ex 32;1; Dt 5, 7. 8-10). No Novo Testamento Jesus é encontrado como a imagem de Deus por excelência (cf. Cl 1, 15; Hb 1, 3).
RELIGIÃO E FÉ
Muita gente confunde simplesmente religião e fé. Ora, “religião” é algo que surge espontaneamente na humanidade. As pessoas são religiosas e os povos são religiosos. Há na humanidade a suspeita de que na origem de tudo há um mistério escondido que dá origem a nosso mundo e dá sentido a nossa vida. Incansavelmente a humanidade busca “reler” (interpretar) ou “religar-se” com essa origem misteriosa. A partir de elementos disponíveis em nossa experiência, damos forma a essa sede e a essa suspeita. Formulamos mitos, rituais, sacrifícios, formamos enfim imagens da divindade. É claro que essas imagens têm muito mais nossos traços do que os de Deus, que nunca vimos. Por isso, mesmo que a religião seja algo bom e até necessário, ela, no entanto, será sempre, de certa forma, idolátrica (cf. a reflexão do Livro da Sabedoria religião e idolatria). Na religião o que adoramos e promovemos são os valores que prezamos, a partir de nossas experiência concretas de vida, pessoal e coletiva. Não há ninguém que não cultive um valor como supremo em sua vida. Nesse sentido, todas as pessoas são “religiosas”, mesmo que não o admitam reflexamente. E como o material com que fazemos nossas religiões provém de nossas experiências coletivas, está referido aos sistemas de vida (economia, relações sociais, relações políticas, cultura), na religião necessariamente se refletem esses sistemas. Por isso, a religião funciona frequentemente como aparelho ideológico de legitimação dos sistemas sociais. Alguém pode ser uma pessoa muito religiosa e não ser uma pessoa de fé, ou alguém pode dizer-se sem religião e ser uma pessoa de plena e inabalável fé. Por isso, religião não é o mesmo que fé. Esta já não é algo assim espontâneo, mas se trata de um compromisso pessoal de optar por um caminho que consideramos firme, no qual por isso pomos nossa confiança e nos comprometemos de ser fiéis: fé é firmeza, como a de quem está com os pés assentados numa rocha inabalável, por isso podemos confiar e comprometer-nos a ser fiéis até o fim (cf. Hb 11, 1-12,4). No concreto, fé é compromisso de pôr-se à disposição para, mediante a práxis (ação e palavra) de vida, tornar este mundo sempre mais próximo dos sonhos de Deus. É pôr a própria vida a serviço desse projeto, como fez Jesus e muitas outras figuras, dentro e fora das religiões. É por isso que não há equivalência entre ateísmo e idolatria. O primeiro é a negação de todos os deuses que produzimos, enquanto a segunda erige em divindades as criaturas, a começar do próprio “ego” e suas realizações. A própria teologia cristã inclui um capítulo que se chama de “Teologia Negativa que é a negação de todas as imagens (físicas, mentais e afetivas) da divindade para “permanecer sempre na busca do Senhor!, como dizem os Salmos. Deus está sempre para além de nossas representações. Até as melhores doutrinas e os melhores sistemas religiosos contêm muito mais os trações de nossa face que os traços do Deus vivo. Por isso, quando dizemos que o “nosso Deus” é o único verdadeiro, já estamos a falar de um ídolo que nos confere glória e poder sobre as demais pessoas e povos. O Deus vivo, na verdade, se revela naquela faixa de transcendência que nos habita. A Primeira Carta de São João declara que Deus é essa experiência da transcendência em nós, Está entre nós e em nós, como Emanuel, “Deus-conosco”. Nas palavras da epístola, “quem ama, conhece (por experiência) Deus”.
Por isso, a questão central de nossa espiritualidade, a que constitui o centro de nossa busca é aquela que se refere à antropologia e à pedagogia do PODER. Não se trata apenas de algo que temos ou não temos, como se fosse uma qualidade a mais. Na verdade, o poder é o que somos, o que nos constitui essencialmente. Podemos ser menos ou mais poder, mas não podemos ser sem poder. Poder é ser, é existência e vida. Só o cadáver já não pode nada, ser é poder, é ser possível, é a capacidade de ser inerente à realidade. Poder é ser possível. No ser humano chega ao nível mais elevado, que é justamente a pessoa, com a capacidade de ser até para além de si mesma. É em redor do poder que gira nossa capacidade de ser e se define nossa adoração ao Deus vivo ou aos ídolos. Sim, a pessoa se define pela capacidade (poder) de ser livre. É a busca da vida toda; pois é na liberdade que se realiza a “pessoalidade”, é quando o ser humano chega à posse de si mesmo. Aí se abrem dois caminhos que são, na verdade, a alternativa dos caminhos espirituais: ou permanecemos na imaturidade, na busca de nos afirmar pelo poder sobre as outras pessoas (opressão) e sobre as coisas (posse), como crianças que se agarram ao brinquedo (a vida é nosso brinquedo) e se recusa a compartilhar, pois o que se pretende é a “vida para si”. É o caminho da imaturidade e por isso do fechamento em si com medo de perder-se, é escravidão aos próprios instintos e caprichos, o que se revela justamente na ânsia insaciável de mando (poder sobre as pessoas) e de posse (poder sobre as coisas). Na verdade, as pessoas são reduzidas a coisas. Há uma relação profunda entre a maneira como nos relacionamos com as coisas e aquela como nos relacionamos com as pessoas. Nesse caminho não se chega a amadurecer, pois o ser humano permanece a buscar fora de si a posse de si. O caminho do amadurecimento é o oposto: a pessoa toma posse de si, sente-se realmente “em si” mediante o processo de se jogar “para além de si”, ou seja, quando o poder se faz amor a ponto de estar disponível a entregar a própria vida. Ora, só se entrega totalmente quem se possui totalmente. É justamente esta a experiência da transcendência, quando a pessoa humana se experimenta para além de si mesma, chegando assim a consumar a alegria de viver em plena paz. Mesmo sem o saber, até mesmo dizendo-se “ateia”, a pessoa chega a Deus, pois é Ele essa dimensão “para além” de tudo. É o que nos quer fazer compreender a Primeira Carta de São João: “Quem ama (quem está além de si). Conhece (por experiência) Deus”. Experimenta, vive em si mesmo, a dimensão transcendente da vida que é, de fato, Deus. Por isso é fundamental investir durante a vida todo no esforço para chegar a alcançar esse nível espiritual, chegando assim a vencer a idolatria e assemelhar-se ao Espírito (cf. Jo 3, 5-8). Pois, para amadurecer na experiência do poder é preciso ser guiado/a, de várias maneiras, ou caminhos, é o que podemos chamar de “pedagogia do poder”, educar-se durante a vida toda para ter uma autêntica experiência de PODER. Jesus indicou claramente os dois caminhos pedagógicos para alcançar essa maturidade antropológica: Vale a pena meditar calmamente os textos que descrevem a subida de Jesus a Jerusalém no Evangelho de Marcos, por exemplo (cf. Mc 8,22-10, 52). Aí está mais do que claro qual é o “caminho”: o serviço reciproco, na relação entre as pessoas (fraternidade) e a partilha da posse das coisas para que todas as pessoas possam possuir o mundo (igualdade). Amadurecer como pessoa para abrir-se à vida comunitária e transbordar a práxis comunitária na práxis política, eis o eixo central da espiritualidade cristã. No começo da Igreja, no Império Romano, quem seguia Jesus era tido como ateu, indicação clara de que a fé do Evangelho está muito além do religioso, pois o decisivo é a práxis do amor que transfigura o poder em experiência do Deus vivo.
Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
Imagem enviada pelo autor.