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A escola contemporânea forma o aluno para a vida,
ela não é mais um espaço apenas para ensinar,
mas para formar pessoas e construir conhecimentos.
E é ela quem ameaça o poder, ameaça as certezas, a doutrinação.
Esse é o real papel da escola. A escola crítica assusta o poder.

Não é de hoje que se discute a qualidade da educação no Brasil. Não há dúvida para a sociedade que ela vem sendo negligenciada por diversos governos, de diferentes concepções partidárias. A educação vem sendo tratada muito mais como projeto de governo do que projeto de Estado. Creio que nesse ponto encontraremos poucas divergências.

Mas há outro debate que exige um pouco mais de atenção e cuidado no que aponta soluções. Trata-se do projeto “Escola Sem Partido”, nome audível aos ouvidos e simpático a muitos cidadãos desavisados. E é aí que mora o perigo.

O programa debateu o movimento Escola sem Partido, que pretende incluir na legislação brasileira de educação nove artigos que tratam da missão da escola e dos deveres dos professores. O projeto define, por exemplo, que os professores devem ser “neutros” na escola e cria canais de reclamação para alunos.

O movimento Escola sem Partido surgiu em 2004 pelo procurador de Justiça de São Paulo Miguel Nagib. Em 2014, ganhou espaço no cenário nacional quando se transformou no Projeto de Lei 2974/2014, apresentado na Assembleia Legislativa Estadual do Rio de Janeiro (Alerj). O movimento é contrário ao que chama de “doutrinação ideológica” nas escolas e disponibilizou modelos de projetos de lei, estadual e municipal, a fim de que a iniciativa seja aplicada em outros locais do país.

Inicialmente, tratado por desprezo pela comunidade acadêmica, tornou-se em 2015, em meio a crise política que o país passava, no Projeto de Lei 867/2015, do deputado federal Izalei Lucas, PSDB/DF. Acabou agregando outros cinco projetos e está em discussão na Câmara Federal.

O projeto versa sobre a ética profissional do professor em sala de aula, criando uma série de regras comportamentais contra o “abuso da liberdade de ensinar”. O projeto cria canais de denúncia, incentivando pais e alunos a denunciar professores, inibindo a atuação de educadores.

O projeto de lei precisa ser contextualizado. Esse movimento surgiu e ganhou força num momento em que as relações políticas no Brasil estavam extremamente complicadas, e que há o desejo de uma parte da sociedade de que seja cerceado o pensamento dos professores. Fala-se sobre uma Síndrome de Estocolmo, onde o professor é um sequestrador intelectual dos alunos.

Mesmo que o PL não chegue a lugar algum, pelo menos se espera, ainda assim já se consolidou no imaginário de parte da população, que se sentiram respaldados e partiram para uma série de assédio moral nas escolas, uma perseguição ao educador por parte da família e do aluno.

O movimento Escola Sem Partido apresenta inúmeros equívocos e bizarrices, desde ser uma ação “preventiva”, passando por uma denúncia de que os professores são doutrinadores em favor do Partido dos Trabalhadores, até a tentativa de alterar o código penal e o ECA. Nesse caso definindo o conceito de assédio ideológico e prevendo até mesmo prisão de três meses a um ano. Ideia essa que foi criado pelo deputado federal Rogério Marinho PSDB/RN e que estrategicamente foi retirado do projeto.

Esse é um PL da mordaça, como se fosse uma escola com ou sem partido, proposto por uma direita delirante que perdeu o rumo e o debate. A acusação de doutrinação não tem procedência empírica e cientifica. Não há sequer apoio do setor privado, que claramente professa ideologia. Recentemente as escolas particulares do RJ realizaram um abaixo assinado se posicionando contra o Escola Sem Partido.

Afinal, que escola nós precisamos?

Não é uma pergunta para encontrarmos uma única resposta, mas podemos apontar alguns caminhos. Antes de mais nada, precisamos delimitar qual o papel da escola. Ela tem que ser o espaço da diversidade, igualdade e inclusão. É o espaço de apropriação de cultura, de ser estimulado pelo processo de aprendizado.

A escola moderna construiu uma unidade e identidade nacional, ela é uniformizadora, padronizadora.

Já a escola contemporânea forma o aluno para a vida, ela não é mais um espaço apenas para ensinar, mas para formar pessoas e construir conhecimentos. E é ela quem ameaça o poder, ameaça as certezas, a doutrinação. Esse é o real papel da escola. A escola crítica assusta o poder. O que estão propondo é uma superficialidade, e a superficialidade namora o fascismo.

Uma das críticas do Escola sem Partido é a dita “doutrinação” que ocorre nos estabelecimentos educacionais do país. Mal sabem eles que o livro didático sempre foi doutrinador e reacionário. Ele já é distribuído pelo MEC há quase três décadas e o negro por muitos anos foi excluído da história. Da mesma maneira que não conseguem entender que cerca de 70% dos professores no Brasil são formados por instituições privadas. Além do que na maioria das escolas públicas se reza o cristianismo antes das aulas. Isso não seria doutrinação?

Afinal, como se abordaria numa sala de aula a concepção de Estado ou concepção de homem e Estado? Seria doutrinação falar sobre a visão de Estado de Lock, Hobbes ou Rousseau?

A única doutrinação que se impõe à escola nos últimos anos é o horário de chegada. Um horário muito cedo que especialistas reforçam constantemente não ser o ideal para o aprendizado e que atende aos desejos do mercado.

Sentar em fila na sala, pedir autorização para levar lixo a sexta de lixo, não reclamar, não falar, ficar quieto e não questionar, isso é doutrinação. O que é estendido depois para o mundo do trabalho. Não questione o patrão, não atrapalhe. Não se questiona na escola, não se questiona no trabalho.

A sociedade brasileira é conservadora. Temos 52 milhões de matrículas na educação básica e ainda assim isso nunca se converteu numa ideologização da sociedade a ponto de ser possível questionar a ordem vigente de maneira contundente. A qualidade vergonhosa da educação, que está abaixo da média mundial, sequer é apontada suas origens, como a má gestão pública ou a responsabilização do gestor. Alias, não se discute a qualidade ou a crise da educação e das escolas no Brasil.

Gaudêncio Frigotto, professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), explica quais os riscos que o programa Escola sem Partido traz à educação brasileira.

Outra discussão desse movimento é a pretensa “neutralidade” da educação ou da escola. A escola não é ambiente fechado. Pelas circunstâncias históricas não há neutralidade. Segundo Durkhein, a possibilidade de você se afastar do objeto e observá-lo sem nenhuma intervenção de suas ideias intimas não é possível. É uma concepção infantil e desonesta.

Qual é a neutralidade do Estado? Ele é criado para a sustentação de um determinado modelo econômico.

Construímos nossos valores profundamente influenciados pelas instituições da sociedade civil, como as igrejas, grupos de escoteiros, em meio aos amigos, clube social, etc. A neutralidade não passa de uma ficção. O juiz ao tomar suas decisões não se dissocia de suas convicções, ele deve ser imparcial, mas jamais é neutro.

O Estado moderno foi construído pelo pensamento de direita, como a economia liberal, valores de família judaico-cristã, pensamento conservador. Portanto, carregado de ideologia. A nossa constituição também não é neutra. Ela é formada sob determinados olhares e valores. O pensamento crítico diz que a lei é de determinada forma e ela mesma aponta a crítica, suas divergências e aonde pode mudar.

Se o professor ficar repassando apenas conteúdo, ele reproduzirá o sistema, ou seja, também estará sendo ideológico e não crítico. A verdade, portanto, torna-se uma imposição, porque não permite questionamento. O mais grave professor ideológico é aquele que só passa conteúdo sem nenhuma crítica. O pensamento crítico é investigativo, os conteúdos são ideológicos.

As grandes descobertas surgiram com o ousar em pensar diferente. Como deixar de discutir o papel dos sindicatos e a luta pela jornada de oito horas de trabalho? E a emancipação da mulher, o direito ao voto conquistado com manifestações contra um regime patriarcal e repressor? A liberdade de ensinar, pluralismo de concepções pedagógicas são elementos excluídos do projeto.

O aluno precisa questionar e ter outros olhares sobre a realidade. Isso se dá com professores críticos que permitem a possibilidade de debate. Como debater temas como ocupação das escolas? Ali os estudantes estavam defendendo as escolas públicas e os desmontes delas.

Não podemos ser cúmplices e formar alunos adestrados e acríticos para a lógica empresarial. Os educandos estão na escola para criar.

Por fim, a tão falada liberdade que os pais devem ter para definir que tipo de moral seus filhos devem receber. Essa se assemelha as repúblicas fundamentalistas, onde é determinado o que os professores devem ensinar apenas dentro do que aquela concepção religiosa determina. Esse fundamentalismo tem tanta força que consegue acabar com a espiritualidade e substitui-la pelo dogma.

A direita brasileira é liberal na economia, mas no campo moral ela é conservadora. Acusam que formar para a cidadania é ideologia, mas não explicam como se dará o controle do conteúdo.

Dar uma aula que condiz com a moral de cada família é ufanismo. Para cada aluno seria um programa de educação. No fundo eles querem uma escola sem ideologia, sem construção do conhecimento e sem capacidade de criação. Atacam o pluralismo, a constituição e a LDB.

Para pensar como seria, na prática, uma Escola sem partido.

Se essa lei for aprovada, vai surgir um tribunal pedagógico. Como ser plural e ao mesmo tempo neutro? A escola não é a única formadora de opinião. A mídia e a igreja tem muito mais poderes de doutrinação e são mais eficazes.

Esse movimento é antidemocrático. Em recente debate no canal por assinatura GloboNews, mediado pela jornalista Waldvogel, o líder do Escola Sem Partido encerrou com uma ameaça aos professores e um incentivo aos pais contaminados pelo neomacartismo à brasileira: “Eu quero dizer o seguinte aos pais que estão me ouvindo aqui: se sentirem que os seus filhos estão recebendo orientação moral que conflite com a orientação moral que você, pai, dá na sua casa, pode processar esse professor. Eu digo isso: você tem direito a dar ao seu filho a educação moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. A lei garante esse direito”.

A pergunta que se faz: a escola sem partido será de que partido?

As escolas criaram ao longo do tempo um espaço para os pais participarem da elaboração pedagógica, como os CMPs, Conselhos Escolares, que juntos integram a comunidade escolar e elaboram o PPP. Ali se discute a gestão democrática e debatem o currículo. O nome vem para confundir, final, todos não querem partidos nas escolas. É uma liberdade de pensamento fundada na proibição.

A luta de todos é a defesa da escola pública, pela garantia de acesso e permanência dos alunos, pela qualidade da educação e garantia de gestão democrática. No fundo, esse jogo de palavras tenta encobrir as escolhas e mentiras. A única coisa neutra que eu conhecia era o detergente lava louça que eu uso.

Luciano Pimentel, professor da rede estadual de ensino do RS.

Obs: Vídeos e imagem enviados pelo autor.
O autor é professor, escritor e ativista em direitos humanos, desde Passo Fundo, RS

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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