Com a vírgula, me dou bem, obrigado. Não por dominar essa e aquela regra. Acho mais pelo fato de a vírgula carregar no fundo alguma coisa de feminina, como se fosse uma mulher bonita, dessas que enchem os olhos, colocando um ponto de suspensão dos meus passos, quando salta a minha frente, a me fazer parar e segui-la no seu lento caminhar, para melhor apreciar a sua paisagem parceladamente. Em cada parada para reflexão, digo, para bem sorver a ninfa ambulante, a vírgula vai sendo pingada no texto. Meio estranho, mas é a figura que, agora, me veio à mente.

Estou certo que a vírgula nada tem a reclamar de meus textos. O mesmo, infelizmente, não posso dizer do pronome oblíquo. Bom, aí começa o meu suplício, tão intenso que o nosso relacionamento, já há muitos anos, é de extremos conflitos. Tudo por minha culpa, claro. Ora, convoco um pronome, digamos, o lhe, em lugar do o. A confusão é tremenda. O que vem sente-se incomodado em tomar o assento do outro. O que fica se queixa que era a sua vez de compor a frase, dentro das regras mais elementares. Como não conseguem se comunicar comigo, para um protesto, um pedido de revisão, vão cavando, no decorrer do tempo, um profundo abismo com o que venho produzindo, como a dizer que se cuida de mata espessa, na qual eles, por sua fidalguia, não ousam avançar. E, aliás, no que fazem muito bem, porque o chapéu do lhe não cabeça na cabeça do o, no que me penitencio de ser o causador de tantos choques, para o desespero dos senhores gramáticos.

Já com a crase, é caso antigo. Primeiro, tivemos um bom relacionamento ao tempo dos bancos escolares. Na prova oral do vestibular, o ponto sorteado na disciplina de Português foi o da crase. Tinha as regras na cabeça e esnobei, digo, deitei falação. Mas, com o tempo, a cabeça se encheu de conceitos jurídicos, de normas emanadas deste e daquele diploma, de princípios disso e daquilo, e aí fui relegando a crase a um canto, como se fosse uma amante que engordasse as ancas e não me agradasse mais. Pobre da crase, desprezada e esquecida, sem voz para me dirigir uma palavra, uma sequer, para remédio, a me alertar para o fato de estar viva, pleiteando voltar aos meus textos, de onde, aliás, não deveria ter saído. O concreto é que, um dia desses, um velho amigo, depois de ler um dos meus artigos, me pergunta pela crase, e eu, sem justificação plausível, saí pela tangente, alegando rompimento de relacionamento, alicerçado na incompatibilidade de gênios, alimentado pela afirmativa de Vinicius, no sentido de que o amor é eterno enquanto dura. Acabou, cada um para seu canto. Não sei se a resposta colou.

De qualquer forma, confesso, como não temos censor gramatical, nem nunca tivemos, vou vendendo meu peixe, sem que ninguém reclame nota fiscal. Mas, lá no fundo da consciência, admito voltar a folhear uma gramática, na tentativa de enfiar algumas regras na cabeça, quer acerca da dosimetria da crase e da aplicação correta dos pronomes oblíquos. Enquanto isso não ocorre, talvez pela falta de tempo ou de entusiasmo, sinto, de longe, os dois me observando, querendo pular das gramáticas para ingressar no meu texto, nem que seja na base de fórcipe, na bandeira de que amor velho nunca morre. Sei não. Tenho um leve palpite que vou terminar caindo na cantada. (13.07.13)

Obs: Publicado no Correio Sergipe
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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