“Excitava-lhe, ter os punhos
amarrados,roupas íntimas rasgadas,
levar mordidas e murros no corpo e
ser tratada como prostituta.”
Dotada de elevado impulso sexual, sua mãe engravidou aos 15 anos. A gravidez não fora planejada e desenvolveu-se ao deus-dará. O filho vinha como um fardo que afetaria as finanças curtas da família, sendo a gestante aconselhada a ingerir uma garrafada de provocar abortamento. Sem interrupção, a gravidez prosseguiu sem eventos significativos. Entretanto, alguns dias após o parto, o bebê ainda com umbigo amarrado, sua mãe apresentou febre, tremores, delírios, urina avermelhada e convulsões. Os conhecimentos mais atualizados, à época, sugeriam fumegações, chás, cantos e rezas, mas nada pôde evitar o óbito materno. Não sendo o pai conhecido, o recém-nascido foi assumido pelos avós, incapazes de atender as necessidades de uma criança que dormia mal e chorava à espera de alimento e conforto.
Morava num arruado triste, de casas construídas com varas de bambu entrelaçadas, amarradas por cipós e paredes preenchidas com barro. Não eram casas confortáveis, apenas protegiam os moradores da chuva, do sol e de animais peçonhentos. Eram vagamente iluminadas por candeeiros de flandre alimentados com querosene Jacaré e a família dormia amontoada em papelões sobre o chão. A água para uso geral era armazenada em potes e porrões e a de beber em moringas. Ainda criança, começou a contribuir com a renda familiar vendendo água nas feiras, roletes de cana em cachos nos dias de festa e pirulitos caseiros em tábuas furadas pelas ruas movimentadas da cidade. Sentia-se perturbado pelo nascimento de uma nova criança no ambiente em que vivia, além de mal adaptado ao convívio com os outros no estado de empobrecimento crítico, sem acesso a serviços básicos, e aos 12 anos viajou para São Paulo, agregado a uma família que comercializava pássaros e saguins.
Embora percebam-se nas pessoas, em todos os tempos desde o início da humanidade, características que diferenciam crianças, adolescentes, adultos e idosos, a luta pela sobrevivência mascarou os estágios de desenvolvimento e o homem adulto nasceu dentro da sua infância. Jamais sentiu a alegria de correr para abraçar e beijar pai ou mãe. Não possuía aparência bela, no entanto, amável e gentil aprendeu a relacionar-se com seus semelhantes no ambiente em que vivia. Determinado a trabalhar para adquirir prosperidade, aos vinte anos tornara-se o maior comerciante de pássaros e pequenos animais exóticos em São Paulo. Com ideias revolucionárias, lutava para ir cada vez mais longe e tudo foi possível graças à sua genialidade. Criou uma equipe, sempre motivada, de cem adolescentes para vender cigarro em retalho nas ruas da cidade, instalou várias barbearias populares em locais estratégicos, adquiriu uma frota de duas dezenas de táxis e vários pontos de venda de material bruto para construção civil. Oferecia prêmio por metas alcançadas e com isto mantinha uma estrutura semelhante a imprimir dinheiro, dia e noite, sem parar. Amealhou boa fortuna e ao retornar ao Nordeste, montou uma rede de seis lojas em Sergipe, Alagoas e Bahia. Dedicado a tudo que fazia, deu um salto de qualidade na vida, quando em dado momento começou a descansar aos domingos e pensar na formação de uma família. Uma carência que nunca tinha experimentado antes.
Já havia passado três anos quando resolveu ir a São Paulo para rever amigos e matar a saudade da garçonete Ziper, que algumas vezes saciou seus desejos e cuja sombra permanecia viva dentro de sua alma, aderida por laços afetivos inquietantes. Mulher de orgasmos intensos, sentia gratificação quando sofria abuso sexual. Excitava-lhe, ter os punhos amarrados, roupas íntimas rasgadas, ter mordidas e levar murros no corpo e ser tratada como prostituta. Continuava formosa, atraente, esperta, delicada, humorada e de bem com a vida, mesmo sem motivação para continuar suas atividades, por conta do salário insatisfatório. Ele queria trazê-la consigo, mas fora preciso usar toda habilidade para encarar e superar a resistência por ela oferecida, e, somente retornou a Sergipe, quatro semanas depois, casado com a garçonete que saía de uma vida difícil e passava a ocupar um lugar nos degraus elevados da torre social. Deixava para trás um quarto e sala divididos, com aluguel atrasado, e passava a ter apartamento aconchegante na Avenida Beira Mar, casa de praia, chácara e carro de luxo com chofer. Vivia da maneira que queria e sentia-se muito bem.
Depois de pouco mais de um ano, mês após mês, passa a assumir diversas atividades: academia, aulas de dança, massagens eróticas e curso de inglês. Sua órbita afasta-se a cada momento da órbita do marido e os encontros amorosos tornam-se fugazes. Vive alheia parcialmente ao ambiente, evita troca de olhares, situa-se em locais pouco visíveis e pouco iluminados, reclama de enxaqueca, cansaço, boceja em salvas e não veste mais as roupas provocantes que tornavam seu corpo desejado. Às vezes dormia no sofá e nas sessões de sibitezas seus movimentos corporais andavam enfraquecidos. Não mais demonstrava desempenho brilhante. Ele percebia o mundo ruindo. Não podia apagar da memória seus encantos, mas sim tentar esquecê-los e seguir adiante. Tornou-se impossível conviverem juntos sem diálogos, amizade, amor e pequenas brigas. A mudança de comportamento era sinal de alerta de mistérios ocultos.
Certa noite ela foi apanhada em flagrante quando camuflava marcas arroxeadas de pancadas no corpo com cosméticos. Ele sentiu-se magoado e aquela imagem arrepiou e remoeu sua alma. Ela baixou os olhos com remorso, pediu arrego pela falta cometida e jurou que ninguém jamais seria uma ameaça ao relacionamento entre eles. Entretanto, disfarçadamente quebrava a regra de fidelidade conjugal e prosseguia envolvendo-se em curtos romances. Quando surpreendida, levada às lágrimas, fazia seguidas declarações de dor, vergonha, e inúmeras promessas de mudanças. Mesmo com o arrependimento dela e o perdão do marido, não havia esconderijo em sua mente, capaz de ocultar dele mesmo o adultério.
As mudanças trouxeram uma deterioração conjugal. Ela deixava transparecer acentuada redução em seus sentimentos e não tinha vontade sequer de ir à cama. Casou por necessidade e ambição e agora queria a separação com igual divisão dos bens. A família interveio e juntos marcaram uma viagem de reconciliação. Agendaram um cruzeiro marítimo por lugares românticos. No roteiro: Búzios, Arraial do Cabo, Ilha Bela, Ilha Grande, bares, boates e shows. Ambos perdoariam, um ao outro, “os pequenos deslizes”, trocariam votos de fidelidade eterna e viveriam uma nova Lua de Mel.
No cais do porto, houve desembarque para um passeio pela cidade maravilhosa. Ainda na fila para alcançar o ônibus, surgem dois marginais de motocicleta e revolver na mão. Na confusão do assalto, três turistas foram feridos, ela de forma fatal.
Decorrido mais de um ano, ainda lamentava a ausência da falecida. Vivia retraído e apático, preferia ficar sozinho, não ser incomodado e vaguear em silêncio pela casa. Sem dormir bem, choroso, lamurioso e frágil, resolveu procurar auxilio profissional. Numa consulta a história é imprescindível e o médico deve examinar no paciente o corpo e a alma. Exibia na face tristeza intensa e suspiros. Reclamou dificuldade de atenção e concentração, desânimo para realizar suas atividades, sensação de inutilidade e temor irracional de nunca melhorar. Parecia não ter assimilado a perda da esposa e às vezes achava que deveria ter falecido junto a ela. Após seis meses de psicoterapia, medicação antidepressiva e estabilizadora do humor, não havia mudanças perceptíveis no quadro.
Depois de um feriado prolongado, voltou ao consultório, sem agendar, e desabafou: “o senhor vai ouvir-me para sentir como tenho razão. Não aguento mais tentar manter em segredo, até de mim mesmo, um trauma muito doloroso. Ela prometeu-me o paraíso e me trouxe o inferno. Ambiciosa e esperta, cometeu adultério e queria usurpar metade do que construí em vinte cinco anos. Sua morte não fora um acontecimento fortuito. Foi uma notável execução de pena de morte, em cumprimento a uma sentença de meu juízo”.
Fiz um breve relato com a finalidade de abrandar seu sentimento de culpa: é dado aos poderosos o direito de matar seus inimigos e o homem vencedor é aquele que mata à maior distância. Vi na televisão o presidente dos EUA assistir à morte programada de Bin Laden. O serviço de inteligência de Israel ultrapassa fronteiras para assassinar inimigos. A Santa Inquisição da Igreja do nosso Jesus Cristo matou com perversidade milhares de divergentes. Hoje prega o perdão e seus templos andam abarrotados de fieis. Para a igreja valeu a pena. Ele levantou-se apertou minha mão e saiu. Não aceitou medicação.
No final de dezembro recebi um cartão de Natal e quando o abri ouvi a música “bate o sino pequenino…”. Trazia escrito: “restaurei meu equilíbrio e surgem sentimentos de paz. Muito obrigado pela ajuda”. Aracaju, 29 de maio de 2018
Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.