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Certo dia, alguém me pediu que falasse de como encaro e tenho vivido o exercício da autoridade pastoral.

A Igreja é um povo identificado como religioso. Primeiro, no sentido mais profundo de viver e testemunhar a “religação” com o Mistério fonte e princípio da vida. E também no sentido sociológico e cultural: um povo que se caracteriza por adesão a mitos, rituais, crenças, doutrinas e instituições tidas por “sagradas”, na verdade, sempre criações humanas na história.

Apesar disso, bem mais do que instituição religiosa, é proposta de caminho de vida, o que se entende por espiritualidade. Caminho de intimidade com a Fonte da Vida, de vivência profunda da experiência de filiação divina, à imitação de Jesus em Sua relação com o Pai, Origem última. Daí brotam princípios, opções, atitudes, comportamentos e determinada mentalidade. Antes e acima de ser instituição religiosa e instância que prescreve comportamentos morais, a Igreja é experiência “mística”, íntima e global , que sensibiliza aos valores mais profundos da vida. A religião só serve se é instrumento para possibilitar isso.

Finalmente, a Igreja é essencialmente comunidade, roda horizontal de dons e ministérios, suscitados pelo Espírito Santo e articulados pela Comunhão, cuja base é o amor (Cf. 1Cor 13). Não se deve representá-la por imagens como escada e pirâmide – uns em cima, outros em baixo – ou defini-la como hierarquia (sagrado poder). Na verdade, o poder é de Cristo, mediante seu Espírito, poder que se difunde por todos os membros do Corpo. O Novo Testamento não emprega a terminologia do poder para falar de funções na Igreja, refere-se a elas como dons e ministérios, serviços. No Anglicanismo, falamos de “autoridade dispersa e compartilhada”.

A partir desses princípios, qualquer ofício de liderança tem que ser compreendido como “autoridade”, a saber, capacidade de ser “autor”, o que significa “o que faz crescer”, do verbo latino “augere”. E essa liderança é, essencialmente, dispersa pelo Corpo da Igreja e, necessariamente, compartilhada, pois baseada na complementaridade dos dons de cada pessoa. Só tem legitimidade a liderança que se afirme pelo poder de servir. De fato, poder é ser possível, é feixe de possibilidades, é ser capaz, capacidade de perceber, decidir e agir a serviço do conjunto.

A Igreja inteira é serviço, “diaconia”, ministério em favor da vida do mundo. Simplesmente foi assim que Jesus compreendeu Sua própria vocação: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida pela multidão” (cf. Mc. 10,15-45). Essa essencial e totalizante dimensão diaconal tem de manifestar-se em todos os aspectos, setores e atos da vida da Igreja. O culto é diaconia, não é de Cristo um culto clerical, centralizado no pastor, ou no padre ou na liderança institucional, ainda que seja leiga. O ensino ou estudo da Palavra tem de ser diaconal, não se pode compreender na Igreja um método autoritário, não dialógico, de ensinar. Paulo Freire, a meu ver, foi uma das pessoas que melhor compreendeu o Cristianismo e por isso foi capaz de elaborar uma “pedagogia” que se processa mediante o diálogo: “Ninguém educa ninguém, todos nós nos educamos em comunhão”. É justamente o que preconiza a 1Jo 2, 27: “A unção que vocês receberam d’Ele permanece em vocês, e por isso não há necessidade de que alguém os ensine. Todavia, como a unção d’Ele, que é verdadeira e não mentirosa, ensina a vocês a respeito de tudo, permaneçam com ela em tudo o que lhes foi ensinado”. É evidente que se refere ao processo comunitário de aprender, pelo qual se elabora o chamado “sensus fidelium” (consenso do povo fiel), pois o Novo Testamento tem no Espírito Santo o princípio da vida comunitária. Em outras palavras, trata-se do que Freire gostava de chamar de “educação como prática da liberdade”. A ação sociopolítica é diaconia, com o objetivo de fazer nascer na sociedade “novas criaturas”, pessoas aptas para exercer cidadania e assumir a própria dignidade, a qual se expressa pela participação e pela organização em vista de “transformar as estruturas injustas da sociedade” (4ª Marca da Missão, segundo o Anglicanismo).

A partir desta visão tenho enfrentado alguns problemas no ministério de bispo.

É que, com frequência, as pessoas não são educadas para a liberdade. É rara a “pedagogia da liberdade” mediante o diálogo, na verdade, a única conforme o Evangelho. A educação usual se destina a criar hábitos, não a favorecer opções e desenvolver atitudes profundas – o que costumo chamar de espiritualidade. O resultado é que inumerável multidão não deseje ser livre, o que almeja é só ser bem tratada, como cachorrinhos de madame, escravos ou escravas contentes com a própria sorte. Para captar benevolência, chega-se até a usar a dissimulação, facilmente se esconde o que realmente se pensa ou se emprega o expediente da falsa cortesia e dos presentes… sintoma de perversa concepção de “poder”.

É evidente, então, que têm dificuldade de efetivamente participar e de se responsabilizar por decisões e empreendimentos. Querem que o bispo decida e “mande”, naturalmente na linha dos próprios desejos. Se contrariadas, as pessoas reagem, no mínimo omitindo-se de apoiar e executar o que se decide, espécie de “greve branca”. Se o que se decide não dá certo, é mais fácil, acusa-se o bispo de ser o responsável pelo fracasso.

Soma-se a isso outra dificuldade. Há nas Igrejas, como em qualquer grupo humano, pessoas, mesmo sinceras e extremamente dedicadas, que se apropriam do poder, só sabem decidir e agir sozinhas, não conseguem trabalhar em equipe. Facilmente se lamentam de que ninguém as ajude, mas acotovelam quem quer que se aproxime para colaborar, a não ser que se submeta, inteiramente a seus gostos, ordens e até caprichos.

Resulta, desse modo, na Igreja um sistema de liderança “clericalista”, que marca tanto o clero como o laicato, que concentra desde a reflexão até a ação, passando sobretudo pela decisão. Em contrapartida, temos o mais das vezes um povo apático, submisso, sem autonomia nem iniciativa. Em outras palavras, a Igreja reproduz as estruturas do sistema do mundo, marcado pela sonegação de informação e de instrução, pelo autoritarismo da liderança e pela ausência de real liberdade. O que é uma lástima, pois a liberdade é a marca fundamental da vida cristã, da condição de “nova criatura” (cf. Gl 5). É a liberdade a fonte de nossa dignidade de filhos e filhas de Deus. É triste pensar que até pessoas muito sinceras e piedosas não tenham a chance de ser livres. Quem vive assim não chega a conhecer o Deus vivo, só ídolos. E não se educa para a democracia que exige a responsabilidade e a coragem de de participar.

Autoridade pastoral só se dá de fato quando acontece aquilo que o bispo Cipriano de Cartago dizia na antiga Igreja da África: “O bispo está na Igreja e a Igreja está no bispo”. Uma relação eminentemente comunitária, coletiva, de articulação de consenso que confere ao bispo a autoridade de representar o sentir do corpo da Igreja (“sensus fidelium”). Nessa mesma linha se expressava: “Nada fazer sem o conselho dos presbíteros e sem o consenso do povo”.

Tenho enfrentado conflitos e até raros desacatos, por parte de algumas pessoas do clero e do laicato que, ou só sabem obedecer e, por isso, não se dispõem a participar e assumir decisões em conjunto, ou só sabem mandar e por isso se sentem contrariadas por um processo participativo e descentralizado, que exige diálogo, paciência, renúncia a fixar-se em pontos de vista, em suma, capacidade de viver a unidade na diversidade. Em outras palavras, dificuldade de viver a Igreja como roda horizontal de dons e serviços, em base ao princípio do “sacerdócio comum do povo de Deus”.

Certos pastores e pastoras têm dificuldade porque se sentem investidos(as) e “ungidos(as)” de autoridade divina “individual” (separada, “privilegiada”) e se deparam com pessoas que nem sempre estão dispostas a acatar submissas sua liderança autoritária. E eles mesmos ou elas não se dispõem a acatar a autoridade do bispo, uma vez que se sentem pessoas “ungidas” diretamente por Deus, sem intermediários. Com efeito, autoridade pastoral é participação no múnus pastoral espalhado (“disperso e compartilhado) na Igreja por Cristo Pastor. Ao contrário, minhas dificuldades têm sido de como convencer as pessoas de que a autoridade é de Cristo vivo, no centro da Igreja e é daí que se espalha em todo o Corpo, por dons e ministérios, compartilhados para o bem do conjunto. O bispo, sem dúvida, é elo significativo dessa corrente. Para apoiar, estimular, articular e promover a unidade na diversidade. É certo que há momentos em que o bispo tem de indicar direção e tomar decisões, mas sempre com o cuidado de auscultar a Igreja, pois “o Espírito Santo pode falar pelo menor de irmãos e irmãs”.

Alguns dirão que é difícil, quem sabe, utópico. É certo que não é fácil, porque o Evangelho vai sempre na contramão do sistema do mundo e de nossos desejos carnais (cf. Gl 5, 16-26). Jesus porém já nos advertira: “Entre vós tem de ser diferente…” (cf. Mc 10, 42-45).

Na verdade, o Evangelho é proposta de relações humanas maduras, enquanto é frequente desejarmos permanecer “crianças” a chamar atenção para nós e a apossar-nos do “brinquedo” da vida, a preço de impor a própria vontade ou de submeter-nos à vontade alheia, ambos, atalhos da idolatria, não o Caminho (cf. Jo 14, 6).

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….

Imagem enviada pelo autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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