Nas eleições, candidatos costumam esvaziar o sentido dos vocábulos

Usamos palavras para designar coisas que se referem a realidades vistas ou sentidas e palavras que se referem a desejos, esperanças, sonhos e ideias sobre o mundo.

Usamos também palavras retóricas para impressionar, palavras vazias para terminar uma frase, palavras que apenas fazem efeito momentâneo.

Somos a expressão de nossas palavras, uma mistura de sons, sentidos e sentimentos cheios e vazios. Não há coincidência entre tudo o que somos, dizemos e sentimos. Não há conhecimento claro das palavras que empregamos. E há exageros em nós… Existem hábitos, formas e tendências no uso das palavras que revelam o quanto estamos empobrecendo como humanidade.

Por isso, vale refletir um pouco mais sobre o sentido das palavras e sua referência às coisas.

Há palavras que se referem a coisas que se veem, a gestos reais que podem ser captados, a comportamentos que podem ser observados. Estas coisas e acontecimentos tornam as palavras críveis, tornam as palavras cheias. Palavras cheias são o contrário das palavras vazias.

Algumas palavras cheias criam em nós certezas mesmo dolorosas e palavras vazias nos enchem de dúvidas, nos fazem suspeitar da veracidade delas, nos deixam num estado de insegurança fluída.

Estamos sempre às voltas com as palavras. Pensamos com palavras, mas amamos de fato com gestos que enchem as palavras e as tornam expressões daquilo em que podemos acreditar.

Nos períodos de eleições para cargos políticos as palavras abundam. Há uma Babel de palavras e a maioria delas tem apenas forma e som de palavra, mas não tem conteúdo claro como palavra, não é palavra cheia que nos satisfaz e convence.

Criam-se palavras com sentidos diferentes dos habituais… Roubam-se palavras… Inventam-se novas palavras para servirem de moeda de convencimento dos eleitores… Fazem-se novos jogos de palavras… Confundem-se com as mesmas palavras… Criam-se medos com palavras… Mercado, inflação, deflação, desenvolvimento, ditadura… Palavras monstros sobre nós as quais temos que obedecer. Quem as inventou? Quem as impôs? O que significam no ordinário de nossa vida?

Precisamos parar e silenciar para ouvir melhor as palavras e descobrir a que fato ou a que sentimento se referem, descobrir se estão cheias ou se estão vazias, se correspondem a algo ou se são apenas sons para impressionar o público e a nós mesmas.

Ouçamos e reflitamos: “Vejam o que eu já fiz na política educacional, na saúde, na segurança, no Congresso”… “Lembrem-se, faço política sem salário”… “Eu diminuí a inflação”… “Obedeci às leis do mercado”… “Amo o Brasil”… “Respeito às mulheres”…

É interessante que as palavras pronunciadas individualmente em política nunca tem um sentido coletivo. É a obra ou o espetáculo de um só indivíduo. Os verdadeiros construtores das palavras, aquelas e aqueles que as tornam palavras cheias de sentido, nunca aparecem.

Apenas aparece o nome de um, daquele que talvez tenha assinado um papel e não tenha feito nada mais do que isso. Não aparecem os nomes dos que construíram uma escola, um hospital, uma estrada, que limparam um córrego, que enfim deram substância às palavras.

Não aparecem os nomes das professoras, das merendeiras, dos médicos e enfermeiros, dos pedreiros e engenheiros…

Não aparecem os nomes dos motoristas dos caminhões, dos lixeiros que limparam os locais, das cozinheiras, das famílias e das crianças dos muitos operários. A palavra política se individualizou e se hierarquizou a tal ponto que se esqueceu do trabalho coletivo e do sentido coletivo da vida pública.

Lembro-me da música “Operário em construção”… ‘ Tá vendo aquelas casas moço… eu ajudei a construir…’ Mas leva só o nome do governador que inaugurou… E ‘aquela Igreja’… Só leva o nome do bispo que mandou construir…

Cada vez mais o social é apropriado pelo individual narcisista e a gente se separa do que é nosso… É isso que Marx chamava de alienação, isto é, a separação daquilo que nos é devido, daquilo que deveria ser nosso.

Assim, um alienado é um separado daquilo ao qual deveria estar unido e por isso mesmo pode sofrer injustiça se outros se apropriam do que por direito é dela.

A política individualista do tempo das eleições tão cheia de palavras vazias nos aliena… Ela nos desapropria do bem social que nos pertence, da obra de construção da cidade que é nossa, da educação de nossos filhos, do cuidado com nossa saúde, da imprensa local…

Aliena-nos do poder como vontade de viver nossa vida com dignidade. É como se fôssemos apenas empregados do governo ou do desgoverno de nosso país. E o pior é que deixamos de ter a competência e a utilidade de nosso trabalho para ser apenas um peso nos encargos sociais.

Sobre nós cai a culpa da inflação, da necessidade de reduzir gastos, de congelar salários, de terceirizar, de desempregar, de gastar e de economizar. Não seríamos mais necessários? Quem somos nós, simples cidadãos, para a política?

Esta alienação está também nas religiões… Alguns pregam, aconselham sobre todas as situações, fazem milagres e recolhem os benefícios para si mesmos.

As palavras são vazias de coisas tangíveis no imediato da vida. São palavras promessas sempre para depois como se o beneficiário sempre necessitasse de intermediários para que ‘deus’ o ouvisse.

Trágica relação com os deuses. Cheia de comércios ilegítimos, de poderes indevidos, de ilusões fantasiosas. É uma relação semelhante com a que temos com os políticos… Sempre intermediários e mais intermediários, poderes e mais poderes que se interceptam uns no meio dos outros sugando nossa vida.

Embora sejamos, cidadãos cidadãs, os executores das construções, dos ensinamentos, das ajudas, das curas, dos processos educativos, dos sentidos eles são tornados inutilizados, desvalorizados, dependentes das palavras dos que estão no topo social comandando com palavras vazias de conteúdos, mas cheias de um poder vazio porque não reconhece a força do coletivo.

É um poder que rouba a força dos outros para aparecer como o único executor dos bens necessários à vida social. Um poder que manipula, que engana, que confunde para dominar. Esse poder tem funcionários que se fantasiam de bons profissionais, mas na realidade têm apenas a capacidade do domínio do público pela mentira e pela coação.

Veja-se, por exemplo, as noticias veiculadas pelas grandes redes televisivas por seus jornalistas e repórteres encenando mentirosa convicção. Recebem sem dúvida grossas porções que caem da mesa dos donos invisíveis do capital dominante e ditam suas ordens.

Dessa forma e de outras, os poderosos roubam o conteúdo da palavra comum, seu ‘cheio’, seu real sentido tomado da vida cotidiana. Tornam-na vazia ou esvaziada porque indevidamente apropriada por outros. E para coroar o roubo criam a descrença no próprio valor do povo, na sua capacidade criadora, no seu pensamento, nos milagres coletivos que são capazes de realizar…

Esses acumuladores do valor alheio adoram torres, palcos elevados, palanques, holofotes porque neles consagram o vazio de suas palavras. E o mais grave é que eles e elas parecem acreditar em suas farsas, estão inebriados por sua própria imagem, embriagados por suas palavras como se fossem elas as verdades criadoras de um mundo mais justo.

Antigamente alguns filósofos acreditavam que a verdade estava na coincidência de uma coisa com a palavra que a nomeava. A palavra tinha sua importância se coincidia com a coisa, com a obra realizada, com a mudança de comportamento.

Era a proclamação de uma ética do discurso, de uma confiabilidade naquilo que se diz, um fundamento seguro para qualquer esperança anunciada.

Hoje estamos num caos relacional. Perdemos a real propriedade e fundamento da palavra pronunciada. As palavras descolaram-se das coisas, as pregações das ações, o amor dos corpos reais. A falsa virtualidade invadiu nossas relações… Perdemo-nos na multidão de novas palavras achando que lá não estaríamos sozinhos…

Talvez novos dicionários se façam necessários para entender o que nosso coração quer dizer nesse momento crítico da política, da religião e da comunicação humana.

Palavras e coisas… Precisamos uni-las de novo!

Publicado em Carta Capital em 27/09/2018

Obs: Ivone Gebara é filosofa e teóloga feminista. Foi professora do Instituto de Teologia do Recife e trabalhou na formação de agentes de pastoral para o meio popular sobretudo do nordeste do Brasil. Doutora em Filosofia e Doutora em Ciências religiosas é autora de muitos livros e artigos. Vive atualmente em São Paulo e pertence à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora.

É autora de mais de 30 livros publicados e dezenas de artigos sobre a temática.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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