(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Em meio ao tenebroso momento que vivemos no país chega-nos a exortação apostólica do Papa falando de santidade. Tema abstrato e distante da realidade? perguntarão alguns. Alienação perigosa que remete a claustros, vitrais e fuga do mundo com seus conflitos? indagarão outros. Na verdade, não. O que propõe o pontífice em sua exortação é uma compreensão mais realista e humana do que seja o ideal de ser santo em um mundo fragmentado e dividido.
Acostumamo-nos a pensar nos santos como aqueles homens e mulheres que vemos retratados em quadros ou vitrais, em geral ajoelhados e em extática contemplação; ou em ascéticos exercícios de piedade que os faz vencerem o mundo e suas ambiguidades e contradições. Imaginamos tratar-se de pessoas que nada têm a ver com a profanidade das coisas e as limitações das pessoas e buscam a perfeição em uma ascensão ininterrupta a um estado de vida quase angélico e pouco humano.
O que propõe Francisco é, na verdade, o inverso disso. A santidade não é uma subida, mas sim uma descida ao encontro dos outros. Por aí passa o ponto de cruzamento entre a espiritualidade e a ética cristãs. Não se trata de um apelo para alguns poucos escolhidos que se distinguem do resto da humanidade, a qual se debate em dúvidas, tentações e imperfeições. Pelo contrário, é a radicalização do ser humano como caminho para o encontro com o verdadeiro Deus.
O caminho da santidade é, segundo Francisco, transfigurar o cotidiano, resgatar em meio ao ordinário o extraordinário. É também vigiar constantemente e estar atento às armadilhas que aparecem a cada momento da vida e superá-las inspirados pela experiência de amar e as opções fundamentais que daí decorrem. É discernir constantemente não entre o bem e o mal, mas entre o bom e o melhor. Assim as escolhas vitais qualificarão a existência, não deixando que esta seja arrastada por ideologias que a apequenam e lhe diluem a nobreza.
Na verdade, o que o Papa afirma, ousadamente, é que a santidade é um chamado para todos e não somente para os padres, as freiras, os religiosos. É um caminho para todo ser humano que não se conforma com este mundo e entende que deve fazer o possível para transformá-lo e humanizá-lo. É uma vocação para todo aquele ou aquela que não aceita que sua vida tenha que resumir-se a satisfazer pulsões, buscar sensações sofregamente e contentar-se com gratificações superficiais que se desvanecem rapidamente deixando gosto amargo e frustrante na boca e no coração.
Francisco adverte: “Não podemos propor-nos um ideal de santidade que ignore a injustiça deste mundo, onde alguns festejam, gastam folgadamente e reduzem a sua vida às novidades do consumo, ao mesmo tempo que outros se limitam a olhar de fora, enquanto a sua vida passa e termina miseravelmente.” A santidade não é apenas uma maneira de comportar-se religiosamente ou um estilo de rezar, mas uma maneira de conceber a própria existência enquanto serviço oferecido ao outro. E este serviço se deseja ao mesmo tempo fiel a Deus e às realidades humanas. E essas realidades humanas têm alcance maior do que simplesmente as relações interpessoais ou micro comunitárias. Mas alcançam as próprias estruturas que condicionam a vida dos outros homens e mulheres e podem favorecer ou contrariar a justiça, a paz e a vida plena para todos.
Neste sentido, santidade não é apenas uma “performance” sempre mais acurada de ascese e crescimento individual, mas um compromisso pela vida, sobretudo a dos outros e dentre estes dos mais vulneráveis e frágeis. Francisco diz explicitamente que “a defesa do inocente nascituro, por exemplo, deve ser clara, firme e apaixonada, porque neste caso está em jogo a dignidade da vida humana, sempre sagrada, e exige-o o amor por toda a pessoa, independentemente do seu desenvolvimento. Mas igualmente sagrada é a vida dos pobres que já nasceram e se debatem na miséria, no abandono, na exclusão, no tráfico de pessoas, na eutanásia encoberta de doentes e idosos privados de cuidados, nas novas formas de escravatura, e em todas as formas de descarte. “
É assim que a santidade está ao alcance de todos aqueles e aquelas que reconhecem sua própria finitude e desejam ser transformados pelo amor que é maior e os faz plenamente humanos. Ser santo não é para campeões de perfeição, mas para pecadores que se reconhecem como tais, mas se deixam configurar pela graça de Deus e pelo apelo que vem da alteridade desfigurada de todo aquele que sofre e necessita cuidado e atenção.
Como diz o grande filósofo católico francês Jean Luc Marion: “Pecadores e traidores é o que mais existe na Igreja. O extraordinário, o surpreendente, é que esta mesma Igreja ainda seja capaz de produzir santos.“ Francisco parece acreditar nesta capacidade. E não a restringe apenas a um seleto grupo de especialistas, mas a estende ampla e universalmente a todo aquele ou aquela que desejar viver plena e radicalmente sua condição humana criada e redimida pelo Deus da vida.
Obs: Maria Clara Bingemer é teóloga, autora de Testemunho: profecia, política e sabedoria, Editora PUC-Rio e Reflexão Editorial, entre outros livros.
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