A senhora, todos sabem, nunca foi como a Amélia, que, na opinião do saudoso Mário Lago, era mulher de verdade. Desde que surgiu no cenário das instituições políticas, sua presença sempre foi cercada daquelas suspeitas que envolvem mulheres que se casam com um e flertam com outros.
Lembra-se de seus tempos na Grécia, quando ainda menina? Na verdade, nem todos os habitantes de Atenas tinham entrada livre em seus jardins. Segundo alguns pesquisadores, apenas 20 mil atenienses desfrutavam da liberdade que a senhora veio a introduzir nas decisões políticas. Os 400 mil escravos, os metecos (estrangeiros que viviam em Atenas) e as mulheres ficavam de fora, excluídos da cidadania e, portanto, do direito de participar da vida pública.
Na Idade Moderna, Rousseau, Tocqueville e Montesquieu colaboraram muito para a sua maturidade. Com o seu charme, aos poucos a senhora fez a vetusta nobreza, toda enrugada, recolher-se a seus aposentos privados à espera de morte condigna, embora algumas famílias reais insistam em prolongar-lhe a agonia. Mas, em geral, o fazem de braços dados com o parlamentarismo, como meras figuras decorativas, permitindo que a senhora ocupe o espaço das decisões que resultam do confronto plural de partidos e opiniões diferentes.
Seu melhor atributo, a liberdade, exaltada na tela de Delacroix, aparece com os seios à mostra, guiando o povo. Pena que as suas duas outras filhas, a igualdade e a fraternidade, ainda não tenham saído da pré-escola, repudiadas por quem se farta com as desigualdades e se impõe pela discriminação.
Um fenômeno curioso é como a senhora é mais falada que amada, exaltada que praticada, evocada que realizada. Veja o Brasil. Desde a queda do Império, a senhora foi sequestrada por nossas elites e, embora o nosso povo continue a pagar, como resgate, cotas de sofrimento e miséria, a senhora ainda enfrenta dificuldades para ganhar praças e ruas. Quando tentou fugir do cativeiro, seus áulicos a puniram com rigor, fazendo-a desaparecer de nosso cenário político, como ocorreu no Estado Novo, na década de 1930, e na ditadura militar, entre 1964 e 1985.
Com o fim do regime dos generais, a senhora voltou à cena, timidamente, ainda refém dos mesmos políticos que se locupletaram com a ditadura. Tancredo Neves morreu à porta de sua casa e, nos braços de Sarney, a senhora experimentou a vertigem inflacionária, favorecendo a sua queda na Casa da Dinda. Para salvá-la, foi preciso que o povo ocupasse as ruas, resgatando-a de quem pretendia, em seu nome, transformar a coisa pública em negócio privado.
Veio o governo Itamar Franco e criou o real, moeda que, no bolso da maioria, continua virtual. E fez a cama para FHC, Lula e Dilma, apoiados pelos mesmos partidos tolerados pela ditadura militar, embora acobertados em siglas diferentes. Assim, os interesses das elites ficaram assegurados, salvos das turbulências conjunturais, enquanto o Brasil se tornou campeão mundial de desigualdade social. Hoje, ocupa o vergonhoso 73º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano.
O Brasil conta com 13,4 milhões de desempregados e 15 milhões de analfabetos funcionais. Agora, em pleno ano eleitoral, querem de novo conspurcá-la, pois os donos do poder, tão bem estudados por Raimundo Faoro, não admitem que a senhora tenha plena vigência em nosso país. Todos podem vencer as eleições, exceto quem não está de acordo com o atual modelo econômico, financeiramente concentrador e socialmente excludente. Daí o terrorismo conservador, as pressões dos especuladores, e a arrogância da Casa Branca, disposta a desestabilizar o país caso seja eleito um candidato que não agrade ao deus Mercado.
Ora, querida democracia, por que a tratam tão mal? Sua presença entre nós é mero jogo de cena, a ponto de não suportar a sua vigência em nossa vida política, como o comprova o golpe parlamentar de 2016? Dos que se gabam de estarem comprometidos com a senhora, quem, de fato, admite a alternância de poder no Brasil?
Os que fazem terrorismo eleitoral em seu nome confessam que a temem, pois se acostumaram a governar o povo, jamais com o povo e em benefício do povo.
Obs: Frei Betto é escritor, autor do romance policial “Hotel Brasil” (Rocco), entre outros livros.
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