Na última metade da década de oitenta, o Governo do Estado construiu postos médicos em vários povoados localizados nas margens do município de Itabaiana, com a finalidade de prestar assistência médica básica aos trabalhadores da agricultura. Realizavam atendimento a enfermos que podiam se locomover, curativos, aplicações de injeções, vacinações e primeiros socorros simples. O posto médico localizado no pé da serra, numa reserva mágica da natureza ainda a conservar muitos traços primitivos, era um lugar isolado e sossegado para sonhar. Deslumbrante e inesquecível cenário confortável para trabalhar. De sua janela via-se um pequeno regato que corria em silêncio durante o verão, entretanto, se caía muita chuva do céu, ouvia-se ocasionalmente o som agradável do movimento de suas águas. Na primavera, quando a luz do sol penetrava pelas frestas das árvores, tornava-se possível contemplar uma grande diversidade de beija-flores e borboletas a rondarem as plantas das margens do riacho.
A solenidade de inauguração reunia a população do povoado e daí por diante cabia a Regional de Saúde fazer o posto funcionar. Encarregaram-me de fazer, no dia seguinte, os primeiros atendimentos e o anuncio de minha presença causou rebuliço na pequena aglomeração de doentes na sala de espera. Eram pessoas de miúda escolaridade cuja maioria não aprendera nem todas as letras, nem todos os números. Estavam ali para consulta médica e esperavam o tratamento necessário e indispensável. Sentia-me serenamente vaidoso, pelo conceito elevado e exagerado que a população guardava na memória sobre meu desempenho no exercício da profissão. Queriam falar sobre seus incômodos, serem tocadas por minhas mãos e receberem minhas orientações. As dificuldades estimulavam minha curiosidade insaciável e arrebatadora de novos conhecimentos, por acreditar que melhorando o aprendizado podia cuidar melhor dos doentes. Acostumei a ser estudante de medicina por toda minha vida e procurei doar um pouco de mim à aqueles que examinava.
Quando entrei no consultório havia um paciente deitado na cama. Aparentava 25 anos, vestia camisa de botão e calção. Trazia uma fita vermelha envolvendo a coxa e uma castanha de caju pendurada como medalha. Perguntei: o que o traz aqui? “Foi um estalo na coluna quando levantei um pneu. Já faz quase um mês. Preciso de ajuda para virar-me e não posso levantar sozinho. Tenho dificuldades para vestir-me, tomar banho e caminhar. Parece que tomei Benzetacil na bunda e a perna não para de formigar. Já usei remédios de dois médicos e chá de raspa de canela de jegue velho, prescrito por João de Filipinho e não houve melhora”. Depois do exame expliquei-lhe que havia necessidade de uma cirurgia na coluna e ele argumentou: “Se quem opera cotovelo fica com braço de radiola, quem operar a coluna vai ficar como Frei Damião. Vou arriscar a operação em São Paulo”. Entreguei-lhe um pequeno relatório e no outro dia partiu na boléia de um caminhão carregado de bode.
Na terceira madrugada da viagem, depois de ferroadas excruciantes a cada movimento do caminhão, deu entrada, deitado numa maca, no Pronto-Socorro do Hospital de Santo Amaro em São Paulo. Enquanto dois médicos lhe examinavam, seus berros aflitos percorriam os corredores. A chefe do plantão percebeu o sofrimento, adentrou na sala e indagou aos médicos em formação: o que me dizem? Fizeram um relato da situação, tratando a médica como professora. Foi o suficiente para perceber o conceito elevado que a Dra. Mary possuía. Aproveitou o momento, retirou do bolso o relatório e entregou-lhe. A médica começou a ler muito atenta, abriu um sorriso discreto e ao terminar a leitura perguntou-lhe: é Dr. Luiz Carlos Andrade de Itabaiana? A tempestade cessou. Sentiu-se no céu e confirmou balançando a cabeça para cima e para baixo. Foi internado e submetido a cirurgia. Algumas semanas depois voltou para Itabaiana sem dor e sem limitações. Quase sempre quem fazia uma viagem a São Paulo trazia muitas histórias para contar. A todos seus amigos, em qualquer esquina e em todos os bares, repetia a mesma conversa: cheguei em São Paulo ainda não havia amanhecido o dia. No Pronto-Socorro, entreguei à médica plantonista, a carta que falava de minha doença. Ela leu e perguntou-me: esse médico é Dr. Luiz Carlos Andrade de Itabaiana? Isso é que é médico famoso! Eu estava trancado no chão e graças a sua fama em São Paulo, a cirurgia devolveu-me a própria vida.
Foi só coincidência. Mary, foi minha colega de escola por nove anos: três anos no Colégio Atheneu e seis na Faculdade de Medicina. Rosto e forma física atraentes, mesmo com mamas gigantes e pouca largura nos quadris. Não existe mulher sem encantos e sem desejo em despertar atenção. Vestia roupas apertadas que mostravam sinuosidades, dobras, bochechas e rasgos que atraiam e encantavam os olhos. Usava blusa de corte muito descido, deixando à mostra o colo dos seios belo e mais excitante do que se podia imaginar. Suas mamas exageradas não podiam ficar escondidas. Estudante posuda, mas bem preparada. Durante um debate, divergimos sobre a conduta a ser tomada em um paciente enfisematoso. A turma ficou dividida. Eu não estava acostumado a engolir as decisões dos outros e no calor do debate a chamei de Mary Peitobrás. Um vulcão de gargalhadas explodiu na sala e daquele momento em diante, mesmo contra sua vontade, passou a ser Mary Peitobrás. Após dois anos sem trocarmos uma palavra, apertou minha mão, no dia de nossa formatura, e desejou-me felicidades. Foi a São Paulo para fazer residência médica e nunca mais retornou.
Hoje, não posso aperta-lhe a mão, olhar o colo de seus seios, admirar suas curvas e desejar os rasgos, que fazia questão de marcá-los e que aliciavam meus olhos, mas, posso mandar-lhe, do ponto mais humano do meu coração, mil beijos e muitos abraços, independente da condição social, afetiva ou emocional em que se ache. Aju, 02 de Junho de 2017.
Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.